O Governo Bolsonaro é o Anarcocapitalismo na Prática

Anarcocapitalismo é uma ideologia derivada do liberalismo clássico, desenvolvida essencialmente por Murray Rothbard na segunda metade do século XX. Rothbard foi um economista que teve Ludwig Von Mises como orientador na década de 1950, radicalizando o liberalismo da escola Austríaca, que já tinha componentes abertamente fascistas . É só ler o livro ‘Liberalismo’, de 1927, para ver rasgados elogios do autor ao fascismo. Além disso, Mises foi conselheiro econômico do chanceler austrofascista Engelbert Dollfuss.

Apesar de tudo isso, Mises chegou relativamente ileso aos anos 50, trazido aos EUA com patrocínio da Fundação Rockefeller em 1940. Não questionaremos aqui as motivações para o patrocínio da fundação ligada ao homem mais rico do planeta nos últimos 150 anos a Mises, mas parece que é um bom primeiro passo para quem for contar a história das think tanks conservadoras.

Muito porque esse patrocínio permitiu a Mises se estabelecer em Nova York. Também permitiu a Mises orientar Rothbard, e influenciar outros autores que ganhariam proeminência na Escola Econômica de Chicago, como Milton Friedman e Friedrich Hayek. O estabelecimento de Mises nos EUA seria essencial para que, na década de 70, o neoliberalismo se estabelecesse como contraponto ao keynesianismo no país e, posteriormente, no Chile, no Reino Unido e em grande parte do mundo, tornando-se praticamente uma “política única” nos anos 90, referendada pelo Consenso de Washington.

O anarcocapitalismo, por sua vez, é uma versão exacerbada e fundamentalista desse liberalismo de Mises. Tão fundamentalista que Rothbard terminou seus dias na pouco relevante Universidade de Nevada, em Las Vegas, ao passo que sua teoria defendia basicamente a destruição dos fundamentos do estado em nome da auto-regulação em níveis extremos. Autor de frases como “O estado é uma organização criminosa coercitiva que subsiste em um sistema regularizado de roubo de impostos em larga escala” e “As liberacionistas feministas dificilmente podem negar o fato de que toda cultura e civilização na história, da mais simples à mais complexa, foram dominadas pelos homens”, Rothbard diz que a desigualdade é algo da natureza humana e diz que toda e qualquer organização estatal é criminosa, começando aí pela cobrança de tributos. O lobby das think tanks conservadoras fez esse tipo de pensamento se tornar relativamente popular entre jovens nos últimos anos, especialmente via sites temáticos, canais no YouTube e por traduções de livros que não tiveram nenhuma relevância real quando lançados (porque soavam absurdos), mas hoje parecem ser uma espécie de ideal de vida para essa turma aí.

Outra característica do anarcocapitalismo é o tradicionalismo, como utilização do argumento “isso sempre foi assim, portanto é bom” enquanto justificativa de posições. É mais ou menos a lógica desse texto aqui. Algo como “Historicamente, as sociedades sempre foram desiguais. Portanto, a desigualdade é o estado natural das coisas. Portanto, desigualdade é bom”. Esse tipo de argumento absurdo é o que embasa a visão do anarcocapitalismo contra o Estado, afinal, para o anarcocapitalismo, o estado é uma formação artificial e coercitiva, devendo ser destruída a todo custo.

Ok, mas o que isso tem a ver com Bolsonaro? Em seu novo livro, Guerra Pela Eternidade, o etnógrafo e pesquisador da extrema direita Benjamin Tetelbaum nos fornece uma chave de análise interessantíssima para governos como o de Bolsonaro e Trump: ambos tem como agenda principal a destruição do estado, em nome de um tradicionalismo apoiado por crenças quase tribais levadas a cabo por grupos como evangélicos fundamentalistas, por exemplo. Para Tetelbaum, o tradicionalismo é ainda pior do que o fascismo, porque fornece uma motivação espiritual para esse processo de destruição do estado.

Além da pesquisa de Tetelbaum, é fácil perceber que, em comum com o anarcocapitalismo, o tradicionalismo é movido pelo desejo de destruição. Bolsonaro e Trump são emissários personalistas de uma agenda de destruição do estado em nome de interesses individuais (o de “poder supremo” talvez seja o principal deles – Bolsonaro adora ser chamado de “chefe supremo”, especialmente quando está junto com os militares) e também em nome de um retorno idílico a um tempo em que as motivações das pessoas eram religiosas e a relação delas com o mundo era movida pelo misticismo. Isso significa que, além do Estado, Bolsonaro e Trump querem destruir elementos basilares da civilização, como a educação, a ciência e os sistemas de saúde.

Só que Trump já saiu do poder, o que enfraquece qualquer perspectiva do tipo nos EUA. Isso significa que esse projeto tradicionalista é um projeto que hoje tem Bolsonaro como seu principal expoente. Tendo Bolsonaro como seu principal expoente, é prudente dizer que as “forças tradicionalistas” tentarão se agrupar nos espaços de poder brasileiros enquanto Bolsonaro estiver no poder. E isso não é força de expressão: Steve Bannon já mostrou que vai apostar todas as suas fichas no Brasil daqui em diante.

Só que o tradicionalismo do Bolsonaro é basicamente o anarcocapitalismo de Rothbard em seu roteiro e em seus objetivos. A agenda de destruição do Estado e das redes de promoção de bem estar social, seguida por um discurso de “promoção da liberdade“, é a retórica bolsonarista para promover as mesmas ideias que Rothbard promovia: liberdade de subjugar minorias, de defender relações desiguais, de promover desigualdade de gênero, de justificar desleixo governamental em uma escala assassina. Tudo em nome da famigerada “liberdade”. Isso se transforma uma impossibilidade tão crônica de se responsabilizar por qualquer coisa que já virou até meme:

A Culpa é Sempre dos OUTROS – Governo Federal

Quais os efeitos disso? Bem, a agenda de Paulo Guedes, de desregulamentação extrema, tem incorrido em aumento das desigualdades, aumento da pobreza, aumento do desemprego e aumento da insegurança alimentar. Em outros temas, como o da saúde, o desleixo do governo incorre em quase 600 mil mortes na pandemia, além das inúmeras tentativas de uso da máquina estatal para favorecimento pessoal. Porque essa é uma característica também que aproxima Bolsonaro e o anarcocapitalismo: já que a máquina estatal está sendo destruída, você tem a liberdade de se favorecer dela se isso for fazer com que no fim o estado deixe de ser esse paquiderme gigante e opressor contra as pessoas.

Na prática, porém, o efeito é mais nefasto: a economia segue estagnada porque as pessoas não tem mais dinheiro. A massa salarial está diminuindo em um cenário de desemprego galopante. E, ao mesmo tempo, o país ganha novos bilionários: quarenta e dois em um ano, para ser mais exato. Como eu mesmo comentei no Twitter:

Paulo Guedes e sua política destrutiva não são nada além de um programa de destruição anarcocapitalista. O objetivo final é deixar o mercado regular tudo, sem interferências estatais. É por isso que Bolsonaro contrata pessoas que são até caricatas de tão burras: porque ninguém inteligente conseguiria conduzir racionalmente um processo de destruição do estado como esse que vem sendo conduzido. É necessário se cacifar com pessoas burras, subservientes e absolutamente ideologizadas ao redor. Pessoas que realmente vislumbrem a destruição do estado como um objetivo místico, uma vez que, para elas, o estado e suas instituições são “destruidores dos valores tradicionais” e “promotores do comunismo”. É por isso que Bolsonaro aponta todos os dias contra as instituições que não consegue controlar, inclusive ameaçando-as nominalmente. A vítima da vez é o STF. Bolsonaro tem de fato o objetivo final de destituir os onze ministros, embora nesse momento essa hipótese soe muito improvável.

Mas alguém pode perguntar: “ah, mas Bolsonaro não é ancap, veja os militares”. Aí talvez esteja o argumento último que mostra como Bolsonaro governa o Brasil como uma sociedade anarcocapitalista. Bolsonaro não é militar no sentido tradicional do termo. Ele saiu da caserna em um acordo judicial com o único objetivo de não ser expulso. Bolsonaro foi o presidente que mais humilhou os militares na História do Brasil. Bolsonaro forçou os militares a produzirem cloroquina, queimou os militares tornando o General Eduardo Pazuello o ministro da saúde de agravou a pandemia, interferiu impedindo a punição do próprio Pazuello por participar de um ato político e ainda forçou a mudança no comando das Forças Armadas. A queda na popularidade das Forças Armadas é notória:

Isso ocorre porque Bolsonaro não trabalha com a lógica militar ou em conjunto com os militares. Bolsonaro é miliciano e atua com a lógica miliciana. Que é EXATAMENTE a lógica anarcocapitalista de gestão de segurança e defesa. Anarcocapitalistas defendem a auto-organização de forças de segurança para conter situações de desordem. Em resumo: milícias. Das comunidades no Rio de Janeiro aos garimpeiros ilegais em áreas indígenas, passando pelos jagunços pagos por grandes latifundiários, a lógica de atuação que faz os olhos de Bolsonaro brilharem é a lógica da milícia. A lógica dos grupos paramilitares, que não precisam obedecer nenhuma regra e fazem suas próprias leis.

Essa lógica fica notória na convocação de sujeitos como o Sérgio Reis para as manifestações de 07 de setembro. Os chamados sempre envolvem violência verbal, ameaças físicas, celebração da violência e desprezo às leis. É a lógica miliciana. É a lógica anarcocapitalista. E é a lógica do Bolsonaro, que está levando, cada vez mais, o Brasil para um processo de destruição cada vez mais difícil de reverter. Destruição da economia, destruição das instituições, destruição das florestas, destruição das perspectivas e destruição das vidas humanas.

É por isso que Bolsonaro precisa sair do poder HOJE. Cada dia a mais sendo governado por Bolsonaro é mais dificuldade em reconstruir o país.

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5 comentários sobre “O Governo Bolsonaro é o Anarcocapitalismo na Prática

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