O Afeganistão Atual é a Vitória do Intervencionismo dos EUA

É meio assustador ter que escrever sobre isso, mas as comparações entre o Vietnã e o Afeganistão andam explodindo nos últimos dias, especialmente na mídia de esquerda, a ponto de alguns partidos políticos e órgãos de imprensa considerarem a derrocada do estado tampão afegão uma “vitória contra o imperialismo”. Não quero fazer nenhuma retomada histórica aqui (longe disso, tem gente que fez isso de forma muito melhor do que eu poderia fazer, inclusive com experiências locais), mas é bom esclarecer alguns pontos para acabar de vez com esse discurso “o inimigo do meu inimigo é o meu amigo” que alguns grupos insistem em encampar.

O Afeganistão não é o Vietnã

Aglomeração em avião de Cabul, 2021, à esquerda. Aglomeração em heliponto de Saigon, 1975, à direita (Fonte: Revista Fórum)

A imagem acima tem sido muito utilizada para falar que o processo de fuga dos estrangeiros em Cabul foi similar à derrota dos EUA no Vietnã em 1975. Embora as imagens sejam realmente comparáveis, essa é uma simplificação grosseira que ignora os processos envolvidos em ambas as ocupações.

O Vietnã foi o grande desastre militar norte-americano no contexto da Guerra Fria. Os vinte anos de guerra serviram para consumir um montante incontável de recursos e aniquilaram, nas estimativas mais pessimistas, três milhões e meio de vidas. Para entender o Vietnã, é preciso recorrer a uma guerra anterior: a da Coréia. Foi na Guerra da Coréia que os EUA adotaram a “estratégia de dois estados” para impedir o avanço comunista. No contexto coreano, essa estratégia foi relativamente bem sucedida, culminando no acordo que estabeleceu o paralelo 38º como fronteira entre a Coréia comunista (ao norte) e a Coréia capitalista (ao sul). A partir daí, os EUA conseguiram estabelecer uma política de pesados subsídios à Coréia do Sul para que, com o tempo, o “desenvolvimento capitalista” servisse de propaganda do modelo de sociedade. Algo similar ocorreu também entre Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental, e, em algum momento, até mesmo entre China e Taiwan. No Vietnã, no entanto, essa estratégia fracassou miseravelmente. E fracassou por inúmeros motivos, que não são assunto desse texto, mas por um deles em especial: os comunistas tinham uma guerrilha com profundo conhecimento local (os vietcongues), capazes de atacar furtivamente e de proporcionarem enormes baixas às forças dos EUA. Com isso, o Vietnã do Norte (comunista) foi ganhando espaço e destruindo qualquer possibilidade de um Vietnã do Sul capitalista, até o momento em que os EUA reconheceram a derrota e a retirada resultou em caos, como podemos ver nas cenas resgatadas de Saigon.

Os EUA aprenderam com a lição, e mudaram completamente sua abordagem intervencionista desde então. Qual foi o laboratório para a nova abordagem intervencionista dos EUA na Ásia? O Afeganistão. As próprias condições do local fizeram com que os EUA não se envolvessem diretamente na guerra. Como é perceptível nos últimos 20 anos, o Afeganistão é um lugar complicadíssimo de chegar e de se estabelecer, não só por conta das características da população, mas por conta das características do relevo do país e de sua localização, nas montanhas da Ásia Central. O Afeganistão, no início da década de 1980, estava numa localização estratégica para vários dos interesses dos EUA: tinha fronteira com o Irã, novo inimigo dos EUA após a Revolução Iraniana; era essencial para conter o avanço da União Soviética rumo ao Oceano Índico; colocava os EUA numa posição privilegiada em relação ao conflito da Caxemira, entre Índia e Paquistão; e ainda fornecia acesso à China, facilitando o fomento de movimentos de independência no Tibet e em Xinjiang.

Qual foi essa nova abordagem? Os EUA perceberam, com os vietcongues, que em alguns casos é melhor fomentar exércitos guerrilheiros locais do que invadir o país. Quando os soviéticos invadiram o Afeganistão, em 1979, os EUA começaram a investir em armas e em treinamento para as milícias de resistência mujahideen, que foram essenciais para vencer os soviéticos e se tornaram quase míticas, a ponto de receberem homenagem em Rambo 3:

“This Film is dedicated to the brave Mujahidden fighters of Afghanistan”. Créditos de Rambo III, cortesia do Mateus Otávio

A parte que os norte-americanos esqueceram de equalizar é que uma milícia de guerrilheiros recrutados preferencialmente em escolas islâmicas se tornaria um grupo de… fundamentalistas islâmicos. Era bastante óbvio que isso ia acontecer, mas valia qualquer coisa para combater o comunismo naquele contexto. Como vimos anteriormente, o Afeganistão era essencial para os EUA por vários motivos.

A LÓGICA COLONIAL E O TALEBAN

Um outro fator que precisa ser colocado aqui é que tem muita gente dizendo que as atitudes do Taleban são “primitivismos” ou “heranças tribais”. Não são. Óbvio que cada povo tem suas tradições (e existe mais de um povo habitando o Afeganistão, bom frisar), mas o Taleban é um projeto de radicalização muito simples dos EUA: eram eles que estavam disponíveis ali nos anos 80 para pegar em armas contra o exército soviético. Se depois isso se voltou contra os EUA e provocou o conjunto de atentados de 11 de setembro de 2001, acabou sendo um efeito colateral indesejado. E foi esse efeito colateral que forçou os EUA a invadirem o Afeganistão e a passarem vinte anos lá. A comoção dos atentados exigiu do governo George W. Bush muito investimento militar e respostas assertivas no exterior, ainda que isso implique em eventualmente bombardear casamentos.

O Taleban era perfeitamente tolerável para os EUA. Quando eles implodiram os Budas de Bamiyan, em março de 2001, ninguém na comunidade internacional falou nada além de “poxa vida, que pena”. O problema foi mexer com o inabalável orgulho dos EUA. Mais do que um problema, uma oportunidade. Porque o Afeganistão é um país extremamente mal estruturado e países mal estruturados são oportunidades de lucro para aventureiros capitalistas. Terras raras, petróleo, ópio, tráfico de armas. Tudo isso é uma oportunidade para quem quer enriquecer cometendo abusos em uma terra distante sem ter que prestar contas disso depois.

Só que a desorganização afegã é diferente daquilo que imaginamos. Os ocidentais tem uma mania triste e colonialista de achar que locais cuja organização política é diferente da organização política centralizada e capitalista dos países ocidentais, nas mãos de uma elite econômica, política e cultural, são locais primitivos. Por vezes trágicos, como o Afeganistão, por vezes exóticos, como a Mongólia. Mas a limitação em geral é dos povos ocidentais: esses povos estão ali vivendo há milênios de forma muito eficaz nas estepes. A vastidão da Ásia Central favorece esse tipo de organização. Grupos étnicos, por vezes nômades, acabam controlando a terra por meio da pastagem e do comércio. E para eles está ótimo assim. Foi nessa lógica que os mongóis formaram o maior império do mundo no século XIII. Também foi com essa lógica que os afegãos tiveram uma relação profícua com o Império Mogol entre os séculos XVII e XVIII, e depois expulsaram os britânicos em três guerras entre meados do século XIX e o início do século XX. O colonialismo foi responsável direto pelo fundamentalismo religioso como arma política centralizadora, porque só o fundamentalismo religioso poderia promover a coesão de países como o Afeganistão em torno de um modelo colonialista e extrativista de sociedade.

As mulheres não tem direitos? Isso é apenas um efeito colateral tolerável. São feitas execuções à luz do dia punindo crimes como adultério? Uma pena, mas ao menos eles não se tornaram um país comunista. O fundamentalismo islâmico por diversas vezes foi utilizado pelos poderes coloniais como estratégia de controle, especialmente nos países árabes, mas também no Afeganistão. Quando o fundamentalismo islâmico passa a se voltar contra esses poderes coloniais, torna-se terrorismo. Enquanto está a favor, pode fazer atrocidades como o esquartejamento do jornalista Jamal Khashoggi. em muitas oportunidades o fundamentalismo também surgiu como resposta a opressão colonial. Por isso a figura da guerra contínua é tão importante.

E aparentemente o Taleban está vivendo essa transição. Alguns setores mais progressistas da sociedade capitalista assistem chocados, mas sim, eles se tornaram o governo de fato e de direito no Afeganistão mais uma vez. E, por estarem em um local estratégico, serão aceitos progressivamente pelo mundo todo, mesmo cometendo todas as atrocidades que cometem. Porque os laços entre países, atualmente, se dão em uma base comercial e financeira. E o Afeganistão tem em suas terras produtos desejados pelos grandes players do mercado internacional, além de servir como entreposto de ligação entre a China e o Oriente Médio.

O Taleban foi a única forma de uma sociedade tribal se organizar? Balela. Mas foi a forma que os EUA impuseram, para fazer valer seus interesses. Agora os EUA são expulsos, porque o Taleban já subjugou o conjunto de tribos e de etnias afegã através de muito esforço de guerra nos últimos vinte anos. E é assim que as coisas funcionam para os EUA: suas intervenções deixam países inteiros em estado de terra arrasada. Foi assim com o Iraque em 2003 e com a Líbia em 2011 também. Para os EUA, é melhor que esses países estejam destruídos. Porque estando destruídos, esses países não podem ser propaganda de um modelo de sociedade que faça frente ao capitalismo liberal meritocrático que os norte-americanos vendem dia e noite como modelo único para o mundo.

Um comentário sobre “O Afeganistão Atual é a Vitória do Intervencionismo dos EUA

  1. Só um adendo ao texto, os EUA meio que forçaram a barra e deram um jeito dos Soviéticos invadirem o Afeganistão. O financiamento começou meses antes da invasão!

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