Às vezes eu penso que não vai ter quarentena no Brasil. Lockdown, ruas paradas e tal. Nem mesmo quando a gente chegar em um número absurdo de mortes por dia, com corpos nas casas, nas ruas e tal. Tudo por alguns motivos muito simples que explicarei a seguir:
1) O Brasil é um país de altíssima segregação espacial, especialmente nas grandes cidades. É muito difícil a “cidade dos ricos” se misturar com a “cidade dos pobres”. Em São Paulo, isso é notório, ainda que as próprias periferias também tenham suas centralidades. Mesmo no Rio, há uma segregação muito clara entre os morros e o restante da cidade. Não é algo integrado. A impressão é a de que o Estado só chega até a entrada do morro. Com isso, o fato é que ricos e cidadãos de classe média não vão ver a morte tão de perto. Vão ver notícias, se assustar com números, vão ficar sentidos pelas perdas da diarista ou dos funcionários do mercado, e vão até perder um ou outro parente, mas não vão se incomodar porque não vão ver o grosso da coisa. Não vão viver crise de perto o suficiente para se assustarem.
2) O Brasil é um país acostumado com a morte. São 40, 50, 60 mil homicídios ao ano. São 37 mil mortes em acidentes de trânsito todos os anos. O brasileiro assiste todo dia programas policialescos que passam a impressão de que só há morte e sangue no país. Isso gera uma sensação de alerta constante, medo, sensação de morte todo santo dia.
Essa sensação de alerta também gera outra coisa: incapacidade de se alertar quando a crise é verdadeira. A sensação de crise e de caos constante faz com que as pessoas enxerguem um cenário grave só como “mais uma crise, mais alguns mortos, nada anormal”
3) O brasileiro acha que vai morrer todo dia. Acha que o assaltante está à espreita na esquina pronto pra matar. Que vai sofrer um acidente fatal. Que vai ficar doente e vai morrer porque vendem todo dia que “o SUS é uma bosta”. Isso também contribui pra minimização do coronavírus, afinal a mentalidade é a de que “vamos todos morrer mesmo”. É por isso que motociclistas entregadores via aplicativo, por exemplo encaram esse período com certa naturalidade: Eles saem todas as manhãs pra trabalhar correndo o risco de terminar o dia mortos debaixo de um carro ou de um caminhão, e não se importam com isso, afinal “precisam levar o dinheiro pra casa”.
4) O brasileiro é muito místico, no sentido de buscar soluções não científicas pra seus problemas. Não adianta falar de ciência: o brasileiro mais simples acredita mais no pastor, na benzedeira ou na simpatia que no conhecimento científico. Isso é cultural entre os mais velhos, por exemplo. Pra essas pessoas, que buscam por soluções milagrosas e individuais, uma solução coletiva e restritiva não faz muito sentido.
5) Visão negativa da política: o Brasil tem passado por uma onda enorme de negação da política há alguns anos já. Isso faz com que fontes oficiais não tenham credibilidade, não importa o que aconteça. A sensação de ausência de serviços públicos nas periferias piora essa percepção. Para quem mora nas áreas mais pobres, o Estado só chega como polícia, normalmente de forma violenta. É óbvio que nesses lugares a visão da política será negativa, ainda que as pessoas saibam que precisam se proteger.
6) Falta de uma estrutura de bem estar social: a ausência de uma estrutura decente de promoção de bem estar social e um cenário de desmonte da pouca estrutura existente. Além de aumentar a descrença no estado, isso força as pessoas a “se virarem” e desconfiarem da ajuda anunciada.
Nesse tópico, a própria má vontade do governo também é decisiva. Em um momento de exceção, em que grande parte das pessoas perdeu sua renda, o governo está levando quase um mês para viabilizar um auxílio insuficiente, de R$ 600, que é absolutamente decisivo para as pessoas terem o que comer em casa.
Resumindo: o Brasil pegou essa crise no pior momento possível. Fatores culturais se somaram a fatores contextuais pra chegarmos nesse momento não só com um governo ruim, mas com uma sensação geral de descrença que faz o brasileiro simplesmente se acostumar com a morte massificada. A morte já estava inserida no nosso cotidiano e normalizada antes da pandemia.
Esse cenário é triste e desalentador, mas nos previne de criar a ilusão de que o brasileiro vai simplesmente se iluminar e ficar em casa no meio dessa pandemia. Se não houvesse ninguém falando pro brasileiro ir pra rua, talvez até ficasse em casa, reclamando.
Mas o presidente fala todos os dias para o brasileiro voltar pra rua, então muita gente não vai ficar em casa mesmo. E não vai ficar porque o discurso do Bolsonaro é um discurso de senso comum, que reverbera a reclamação dessas pessoas já descrentes com a política e que não acreditam na ciência.
Se a tragédia chegar, “poxa, que pena, chegou, é só a morte de novo, já conhecemos isso, foi a vontade de Deus”.
Não tenhamos ilusões. Não achemos que as coisas vão simplesmente se ajeitar. Essa pandemia só será mitigada e suprimida com muito trabalho. Especialmente no caso do Brasil, em que um monte de gente poderosa está trabalhando contra.
Perfeito seu texto, seus tweets compilados. Acho que é isso mesmo. Somos um povo melancólico com a melancolia impregnada na mente. A sensação de insegurança constante, a falta de perspectiva de ascensão social, a falta de acesso a aparelhos culturais, de bons programas na TV, de educação sexual e etc, etc e etc nos transformou num povo que só espera pelo pior. Eu mesmo me sinto assim. Sem grandes perspectivas, se rolar, rolou. E o presidente reverbera e é o nosso espelho.
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Triste, mas resume quase tudo que penso. Adiciono que o Brasil não parece ser um país, uma sociedade, uma comunidade. Parece um ajuntado de pessoas, tal qual favelas, que foi crescendo e crescendo. Parece que não queremos nos compadecer, e não sendo uma sociedade, pode esgarçar-se que não fará NENHUMA diferença. De forma geral, “as mortes no meu círculo de influência serão sentidas”. Com indiferença, o que sinto nos discursos é a falta de humanidade, de empatia: às favas com os outros mortos, são só números numa planilha. Vejo ainda um cativeiro dos mais pobres, arriscando, “livres”, a saída de casa para trabalhar para o patrão, quando existe. Viver numa bananolândia de 209 milhões (daqui a pouco, 207 milhões) de pessoas que, ao que parece, do rico ao pobre, não teriam ações muito diferentes daquelas dos que hoje estão no poder. É improvável que as figuras de poder (escolha um dos 3 poderes, em qualquer esfera) não sejam o reflexo de todos. Criei asco da bandeira verde amarela, cooptada e vilipendiada enquanto símbolo. Fico apenas com as cores do meu estado, se muito. Parece que falta tudo nessa pandemia.
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Será que nem as filas pra internação nos hospitais vão chegar aos olhos da elite?
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Estamos acostumados a ver hospitais públicos com pessoas nos corredores ou até mesmo no chão diariamente. Só vai cair a ficha da “elite” negacionista se um parente ficar sem atendimento nos hospitais top de linha.
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