Ontem eu vi que o sujeito nomeado pelo Bolsonaro para ser Presidente da Fundação Palmares, o Sérgio Camargo, cometeu mais uma de suas atrocidades racistas, entrando numa polêmica racista ao ofender a Alcione, inclusive falando besteiras estilo “a sua música é ruim” e coisas do tipo. A questão é que não é a primeira vê que isso acontece, não será a última, e não é só o Sérgio Camargo que usa esse expediente no governo Bolsonaro: é uma tática largamente utilizada por vários expoentes do regime: o próprio Bolsonaro, Ernesto Araújo, Abraham Weintraub, os filhos Carlos e Eduardo Bolsonaro, o General Augusto Heleno e outros nomes de menor expressão dentro da constelação de anjos caídos do bolsonarismo.
A questão aí é que isso não é casual. Tudo o que o esses caras falam, especialmente em publico, é pura estratégia olavista “never play defense”. Sempre ataque, nunca se defenda, nunca peça desculpas. O objetivo é despertar o ódio das pessoas pra elas não agirem racionalmente. Olavo de Carvalho fala isso há quinze anos em seu famigerado “Curso On-line de Filosofia”. Ele se enfiou em quarentena e começou a fazer lives muito antes do conceito existir, por um motivo muito simples: seu discurso de ódio sempre foi marginalizado na sociedade. O insight do Olavo de Carvalho foi entender que seria possível transmitir esse discurso de ódio e garantir um séquito de seguidores de forma remota. Entendendo isso, foi uma decisão muito natural para ele sair de Curitiba e ir para a Virgínia Ocidental em 2006.
Parte relevante dessa estrategia está na legitimação dos discursos de ódio. Primeiro, eles começam a ser propagados em ambientes fechados, como o curso on-line de filosofia. Depois, começam a se infiltrar na arena do debate público. Como? Com a criação de factoides e de inimigos como forma de colocar no debate público posições que deveriam ser absolutamente intoleráveis. Enquanto as pessoas sentem ódio o abominável se naturaliza.
E se naturaliza porque também é estratégia eleger inimigos e projetar todo o ódio nele. Primeiro foi o PT. Então esses caras começaram a projetar no PT tudo aquilo que sempre quiseram fazer de fato. “O PT tem um regime autoritário”. Pronto, o olavismo já pode defender ditaduras. “O PT faz doutrinação ideológica”. Pronto, agora o Olavo de Carvalho já pode receber para dar cursos de doutrinação ideológica para PMs, que depois vão fazer coisas estilo administrar escolas públicas. “A esquerda comunista defende a morte através do aborto”. Pronto, agora o Bolsonaro pode matar milhares de coronavírus sem prestar contas. “A esquerda defende bandido”. Perfeito, está aí a legitimidade pra polícia entrar na casa das pessoas matando a esmo, especialmente se a vítima for negra e pobre.
Essa naturalização do discurso de ódio tem o objetivo óbvio de igualar todos no sentimento de ódio. De fazer todo mundo se mover de maneira irracional, sem pensar nos movimentos e nas consequências dos movimentos. Com isso, já estamos discutindo com caras quase que abertamente nazistas, que defendem coisas estilo eugenia, acreditam em raça superior e pregam a eliminação física de quem pensa diferente.
E a culpa não é nossa: é uma cilada retórica pelo asco. Ninguém está preparado pra isso. Nossa sociedade não se preveniu adequadamente contra discursos de ódio porque achou que eles não voltariam mais após os absurdos da Segunda Guerra Mundial. Isso é especialmente verdade em países que guardam menos marcas da Segunda Guerra: enquanto a Europa está cheia de memoriais e de cenários de batalhas e campos de concentração, Brasil e EUA, para ficar em dois exemplos, não foram diretamente atacados em suas áreas continentais. E cultivaram, nas décadas seguintes, uma forte retórica anti-comunista, que resistiu ao fim da Guerra Fria. Na década de 90 nós fazíamos piada com o Francis Fukuyama por ele ter dito que “a História acabou”. Hoje nós lamentamos pelo fato de que ele não estava correto.
Identificar o discurso de ódio como cerne do problema e a incapacidade das instituições em contê-lo é o primeiro passo para entender o tamanho do problema em que estamos enfiados. E a maioria das pessoas, instituições e grupos de interesse ainda não entenderam isso. Ou pior: já entenderam, mas preferiram não fazer nada porque a situação de caos institucional atual é conveniente para seus interesses. Mas daí vem a cobrança da sociedade civil, que normalmente percebe antes das instituições o tamanho do problema. Como responder a isso? Com paliativos, que tem efeitos limitados, mantendo um status quo desregulado, bom para os acionistas, mas são bons para o marketing, fazendo com que as empresas e grupos de interesse fiquem com uma imagem mais positiva diante do cidadão comum.
Um desses grandes paliativos é o combate às fake news. Causa extremamente nobre. Precisa ser muito maluco (ou bolsonarista) para ser contra o combate às fake news. Mas e se o problema não for as fake news? E se as fake news forem só o sintoma?
Precisamos entender de uma vez por todas: o problema não é só as fake news. Fake news são só o sintoma. O problema é o discurso de ódio da extrema direita, que não se furta a criar factoides todos os dias para se viabilizar, se inserir na discussão política e se naturalizar. Fake news é só como o discurso de ódio de manifesta.
Se fizermos um esforço sobre-humano pra acabar com as fake news e não atacar a origem do problema, que é o discurso de ódio, as fake news fatalmente voltarão. Ou pior: nem vão embora, se consolidando como contracultura “proibida” (e portanto muito mais atraente). Essa é grande parte da potência do discurso olavista: eles se consideram uma contracultura, há uma sensação de pertencimento, de transgressão, um ímpeto revolucionário que se abate sob uma série de instituições podres para destruí-las.
Daí, no final, o combate às fake news, de forma quase contraditória, acaba fortalecendo o ecossistema de fake news. É como se estivéssemos dando toneladas de analgésicos em um tratamento de câncer sem nenhuma sessão de quimioterapia. É algo que traz uma aparência momentânea de que o problema está sendo solucionado. Enquanto isso, o problema se agrava e se espalha. O que fizemos nos últimos anos contra o discurso de ódio foi tratar câncer com analgésico. Depois, como esperado, nos assustamos em ver como o discurso de ódio estava espalhado em todas as áreas da sociedade.
Se tem um jeito de sair dessa (e não sei se tem), é voando acima da tempestade. Retomar os pensamentos simples, ter empatia pela dor das pessoas (atualmente, em um contexto de pandemia, é ESSENCIAL, mais do que nunca), conversar, fazer novos projetos, cultivar esperança de construir juntos um futuro melhor. É meio contraditório, eu sei, mas situações-limite são ideais para viabilizar utopias. Vejam o caso da renda básica universal: até outro dia, causava risos em todas as rodas de conversas de economistas. Hoje, virou uma discussão séria, porque as circunstâncias levaram a isso.
Quem melhor fez isso nos últimos anos? Bernie Sanders. Bernie criou, de 2016 pra cá, uma rede de pessoas com esperança, uma utopia, a presunção de que é possível projetar um futuro melhor para as famílias comuns dos EUA. As manifestações antirracismo nos EUA são uma profunda denúncia contra a desesperança: se o governo e a polícia querem sufocar toda a esperança que resta, as pessoas saem na rua quebrando tudo e dizendo: “não temos mais nada a perder, e vocês não vão tirar a única coisa que nos resta”. Dar esse recado no meio de uma pandemia, ignorando o risco de vida, tem uma potência imensa. A potência de afirmar com ações que “não vale a pena viver sem a esperança de construir uma sociedade em que todos sejam tratados de forma igual”. A esperança que Bernie cultivou nas classes mais baixas e nos estudantes dos EUA nos últimos anos está intimamente relacionada aos protestos antirracismo, ainda que Bernie não seja especialmente forte entre a comunidade afro-americana.
No Brasil, o cenário é diferente. A esquerda ainda vive um momento de ressaca e de ressentimento interno, exacerbado nas incontáveis derrotas políticas e institucionais ocorridas de 2015 para cá. A esquerda tem sido muito mais reativa do que ativa no Brasil, o que faz com que o discurso de ódio do olavismo, encarnado na figura do Bolsonaro, ganhe ainda mais potência na imposição de pautas. Daí chega num momento em que a discussão adquire tons inacreditáveis, como esse citado no início do texto envolvendo a discussão entre o Sérgio Camargo e a Alcione.
É horrível falar isso em um cenário em que literalmente estão morrendo de coronavírus 1500 pessoas ao dia. Uma pessoa por minuto. O caos faz com que as pessoas se rendam ao ódio ou ao medo. Mas não adianta.
Enquanto as pessoas não tiverem esperança elas vão continuar caindo na retórica do ódio que é característica do olavismo, apropriada pelo Bolsonaro.
Eu também estou com dificuldade de ter esperança. Tá dificil. Tá doendo. Eu estou sim com medo. Mas precisamos ter esperança. Precisamos criar novas utopias. Precisamos sonhar com um modelo de sociedade que nos conecte às nossas origens, a Terra em que vivemos, que nos permita sonhar além da individualidade e compreender a grandeza de estarmos juntos lutando por uma vida melhor para nós e para nossos filhos.
O maior ato de resistência possível hoje é não nos rendermos ao ódio. É mantermos a esperança. Porque o ódio é sempre covarde. O ódio é reflexo do medo. E o medo, por sua vez, é reflexo da expectativa da perda. Todos os que tem medo se consideram proprietários de alguma coisa, material ou simbólica, e tem medo de perder essa coisa. Daí sentem ódio de quem pode “tomar essas coisas”. Qual é a resposta perfeita a isso? É a que está começando a surgir nos EUA: não temos nada (portanto, não temos nada a perder), mas temos esperança de um futuro melhor e vamos lutar por ele.
No fim, é essa ideia simples, de nos esvaziarmos do conceito de ter é nos concentrarmos no que podemos nos tornar juntos que vai nos fazer resistir e lutar até vencer o ódio. E, por consequência, as fake news. Tenhamos esperança, pois.