Os Números do Coronavírus e a Necessidade dos Profissionais de Ciências Humanas

Na pandemia de coronavírus, dois tipos de profissionais tem se destacado, com toda a razão: os profissionais voltados ao planejamento em saúde (epidemiologistas, virologistas e infectologistas, principalmente) e os profissionais voltados à leitura dos dados produzidos (matemáticos, estatísticos). Todos esses profissionais são extremamente gabaritados e fazem um trabalho de qualidade reconhecida, dando às pessoas visões bastante embasadas sobre os números e a evolução da pandemia.

É perceptível, porém, que todo esse conhecimento não tem sido exatamente proveitoso em boa parte dos países. Na Itália e na Espanha, por exemplo, os sistemas de saúde já entraram em colapso. E as análises desses profissionais acerca do tema são algo simplistas, raramente apontando soluções práticas de curto prazo. Isso não é culpa desses profissionais. Eles não foram capacitados para isso. Está faltando alguém para dar racionalidade a esse processo.

Desde o início da pandemia, os dados relacionados ao coronavírus sempre me pareceram muito familiares. A dinâmica da curva não me parecia nova, inclusive já montei alguns modelos SIR (susceptible – infected – recovery), como o abaixo, em que simulei uma infecção de duração média de 3,5 semanas com 2% de mortalidade sobre um universo de 211 milhões de habitantes em vários cenários quanto à quantidade de contatos:

É fácil perceber, nesse modelo, que aqueles prognósticos apocalípticos de que infecções podem causar milhões de mortes se nada for feito são bastante realistas. É por isso que iniciativas de supressão de contato são importantes (reparem como que o número de infectados e mortos variam de acordo com a quantidade de contatos, que variam de 1,2 – a linha vermelha – até 4,4 – a linha marrom). Embora esse modelo não seja uma representação fiel do mundo real, mostra a importância da supressão de contato como ferramenta de combate às epidemias.

O exemplo acima, porém, pode ser muito melhor explicado por estatísticos e epidemiologistas, bem como as variáveis que o regem. Estou usando esse exemplo para expor aquele que é o verdadeiro mote desse texto: o que saber o que esses dados significam. Em situações como uma pandemia, levantar um monte de dados sem saber para o que eles vão servir não é só uma coisa inútil: é um exercício que custa vidas. Então, quando levantamos dados estilo a evolução espacial e temporal do número de casos e a relação entre esses casos e o número de leitos de UTI existentes, por exemplo, é preciso ter algo em mente: esses dados são indicadores de políticas públicas.

Ao traduzirmos esses dados como indicadores em políticas públicas, eles passam a ser muito mais palatáveis e traduzíveis em ações reais. Porque, em tempos que demandam ações rápidas, esses indicadores são importantíssimos. E inserem um terceiro componente na discussão. Além dos epidemiologistas e dos estatísticos, é preciso falar com os formuladores, implementadores e avaliadores de políticas públicas para construir soluções multidisciplinares para a pandemia. Sim, cientistas sociais das diversas áreas das humanidades, que estudaram a vida inteira para compreender as diversas facetas da sociedade e traçar soluções para situações agudas como a da pandemia.

A pouca presença desses profissionais nas equipes estratégicas, constantemente “trocados” por políticos pouco familiarizados com o tema, que agem no “feeling”, talvez ajude a explicar o pobre apontamento de soluções práticas para a questão do coronavírus até agora. Todos agem no escuro, com uma ponta de desespero, com base no último modismo disseminado pelos órgãos de imprensa. Uma hora a estratégia é a de testes massivos. Em outro momento, é o “isolamento vertical”. Daí as pessoas contrapõem essa ideia com o “isolamento horizontal”. Um monte de termos que as pessoas passam a falar sem nem saber o que são. E tudo isso por um motivo: falta inserir nas equipes estratégicas o profissional de políticas públicas, não só para fazer diagnósticos tecnicamente embasados por indicadores, mas também para atualizar diariamente esses diagnósticos, apontando caminhos para seguir.

Os dados epidemiológicos em geral são ótimos indicadores tanto PARA políticas públicas quanto DE políticas públicas. Isso significa que os indicadores epidemiológicos servem tanto para fazer bons diagnósticos situacionais que embasem a formulação e a implementação de políticas públicas, e também, ao mesmo tempo, embasam o monitoramento e a avaliação de políticas públicas já existentes, trazendo luz para que essas políticas sejam adaptadas a novos contextos. Mas, novamente: quem normalmente sabe fazer isso é o profissional que atua com políticas públicas. E, num período de pandemia, que demanda ações urgentes, esse profissional deveria estar sendo mais requisitado, tanto pelo setor público, para ajudar a definir as ações estratégicas tendo como perspectiva o resultado amplo dessas ações, quanto pelo setor privado, para analisar contextualmente o cenário atual, traçar cenários futuros para a sociedade e montar soluções de atuação para as empresas. Sem o profissional de políticas públicas, generalista, capaz de pensar de uma maneira ampla, acabamos nos colocando em discussões que não deveriam nem existir e que consomem um tempo precioso, como a do efeito econômico do isolamento social. Se os profissionais de políticas públicas generalistas fossem ouvidos, as políticas de saúde andariam em consonância com as políticas de estímulo econômico, ao invés de cultivarem uma falsa concorrência (há um ótimo texto sobre o tema aqui).

Sobre indicadores epidemiológicos em si: indicadores trazem consigo algumas características. Para nós, uma das características é especialmente importante: a confiabilidade dos dados disponíveis. Um indicador com dados de alta confiabilidade é um indicador que teve dados recolhidos por anos, com acurácia científica, sem variações no método. Nós, formuladores de políticas públicas, amamos séries históricas construídas de maneira contínua, com um método definido, com um propósito igualmente bem definido. Tudo isso é exatamente o que NÃO temos com o coronavírus. Em meio à pandemia, estamos falando de boletins diários feitos por secretarias de saúde sobrecarregadas, com dados alimentados por hospitais igualmente sobrecarregados. É óbvio que esses dados não serão confiáveis, e quando os dados não são confiáveis, a instrução é sempre a de prestar mais atenção na trajetória dos dados no tempo do que propriamente nos dados individualizados. Isso prejudica, por exemplo, comparações com outros países que estão utilizando métodos diferentes na detecção dos casos de COVID 19. Porque a bagunça tende a permanecer o mesmo TIPO de bagunça, então os dados podem não ser confiáveis, mas a evolução desses dados tende sim a ser mais confiável. Existem algumas ressalvas relativas a esses dados quantitativos, no entanto:

SOBRENOTIFICAÇÃO: o único lugar em que isso existe enquanto estratégia política é na mente ególatra do Bolsonaro, que tem síndrome de perseguição e acha que toda e qualquer ação de todo e qualquer agente político não alinhado ao bolsonarismo no Brasil e no mundo tem como único propósito “prejudicar o maravilhoso governo de Jair Bolsonaro”.

Casos como o do “porteiro do pneu”, explorados exaustivamente pelo presidente, são raros, mas denunciam algo que já foi falado aqui: em momentos de sufocamento do sistema de saúde, a qualidade dos dados finalísticos (os dados que são gerados onde o serviço de saúde é de fato prestado) fica comprometida. Especialmente quando não existem protocolos muito bem definidos de comunicação desses casos, com padronização dos dados coletados. O que mostra mais uma vez a necessidade do profissional de ciências humanas: é esse profissional que sabe como fazer essa padronização de forma a conseguir os dados mais importantes, que vão embasar diagnósticos para o desenvolvimento de políticas públicas adequadas para a situação.

Mas é bom ressaltar que, em um caso específico, a sobrenotificação pode existir sim: o caso da contagem dos dados em duplicidade. Nos últimos meses, isso já ocorreu na contagem de casos de coronavírus nos EUA e na China. Em ambos os casos, porém, a correção foi rápida, e o erro de contagem não ocasionou grandes prejuízos. Afinal, é muito fácil conferir contagem em duplicidade dos pacientes.

SUBNOTIFICAÇÃO: para os nossos propósitos, trabalharemos aqui com duas modalidades de subnotificação, que serão explicadas a seguir. Essas duas modalidades são a subnotificação espacial e a subnotificação temporal.

Ambas trazem enormes prejuízos para o desenvolvimento das políticas públicas. A imprecisão desses dados abrem espaços para que agentes políticos tomem suas decisões com base em achismos, ao invés de embasarem suas políticas na ciência. Isso pode jogar o trabalho de epidemiologistas e de estatísticos no lixo, e o motivo, mais uma vez, é o mesmo: os pesquisadores das ciências humanas, que desenvolvem, coletam, leem e traduzem os indicadores de políticas públicas em uma linguagem compreensível, estão afastados do processo de combate à pandemia.

A subnotificação espacial é a subnotificação “de senso comum” – são notificados menos casos do que existem. Em uma pandemia de alta propagação, os motivos são os mais diversos: faltam testes, os testes existentes são mal distribuídos, faltam estruturas hospitalares para o atendimento da população, dentre muitos outros motivos. Alguns deles são esdrúxulos, como o fato de que, nos EUA, o teste para COVID 19 era pago (e bastante caro, inclusive). Isso desestimulou completamente a procura pelo teste, e ajudou a doença se espalhar pelos 50 estados norte-americanos de maneira catastrófica.

Identificar os motivos que impedem a testagem da população também é função do cientista social que propõe soluções para a construção de indicadores de políticas públicas. As próprias estratégias passam por aí. Vamos testar em massa ou vamos testar só os que apresentam sintomas? Testando em massa podemos identificar os infectados, isolando-os. A Coreia do Sul fez isso com sucesso. Mas a Coreia do Sul tinha um enorme estoque de testes prontos depois de uma epidemia de MERS em 2015. Não é todo país que tem essa estrutura, e é de se imaginar que essa estrutura tenha um custo e leve um tempo para ser construída. Tempo que, em um cenário de pandemia, nem sempre existe.

É esse tipo de contexto complexo, repleto de variáveis, que é objeto de análise na construção da estratégia de combate a uma pandemia. Quem trabalha com políticas públicas entende de administração pública o suficiente para lidar com esses contextos. E esses dados, em geral, quem produz é a pesquisa em ciências humanas. É ela que mostra as áreas da sociedade que estão mais vulneráveis em relação às estruturas de saúde, por exemplo. É esse tipo de pesquisa que mostra as áreas em que existem moradias subnormais (comunidades e ocupações, por exemplo), onde há maior propensão à insegurança alimentar e a problemas de saúde que podem agravar o COVID 19.

Um exemplo prático: esse trabalho, dentre outros, mostra que a incidência de tuberculose entre os moradores de rua do município de São Paulo é muito maior que a média. Suspeita-se que tuberculose é um dos fatores agravantes para a COVID 19. Mapear a distribuição dos moradores de rua em São Paulo e fornecer moradias temporárias protegidas para eles é uma forma de criar estratégias de mitigação para evitar que as ruas de São Paulo se tornem um hotspot de proliferação descontrolada do novo coronavírus, o que seria catastrófico não apenas para os moradores de rua, mas para toda a população da cidade.

Analisar esse tipo de dado é essencial para lidar com a subnotificação respeitando seus perfis espaciais. Sem isso, vamos ficar presos a contas simples e profundamente imprecisas, como a abordagem “provavelmente temos dez vezes mais casos que o diagnosticado”. Em um contexto de pandemia, isso importa muito menos do que “potencialmente, onde esses casos estão localizados no espaço?”. Essa é a pergunta mais importante para ajudar a conter a pandemia, e quem pode ajudar a responder essa pergunta são os dados produzidos por cientistas sociais, que devem ser traduzidos em ações práticas pelos profissionais que entendem de políticas públicas, para que diagnósticos corretos proporcionem estratégias corretas de combate ao coronavírus.

A subnotificação temporal, por sua vez, é a subnotificação causada pelo solapamento do sistema de diagnósticos, que faz com que o tempo de diagnóstico do coronavírus se torne um fator importante no cálculo da propagação da pandemia. O sistema de saúde brasileiro tem um problema histórico sério para fazer bons diagnósticos, por um motivo muito simples: diagnósticos custam dinheiro. Nos hospitais públicos, esse dinheiro é escasso. Nos hospitais privados de classe média, é comum haver diretrizes para poupar valores, até porque a burocracia de liberação por exames por parte de convênios médicos é uma das coisas mais insuportáveis que existem. Então, na maioria das vezes, o médico está sozinho com o paciente, precisando dar um diagnóstico, mas não tem instrumentos para isso. Não é à toa que o Brasil é recordista mundial no diagnóstico de viroses.

Era bastante previsível que essa estrutura débil de diagnósticos não resistiria em uma crise do tamanho da crise relacionada ao novo coronavírus. A demanda por exames diagnósticos está batendo todos os recordes (só em São Paulo são 14 mil exames de coronavírus esperando para serem feitos no Instituto Adolfo Lutz, o triplo da capacidade do Instituto) e não temos como lidar com essa demanda. Qual é o resultado? Os dados oficiais não refletem a realidade. Nem em relação a diagnósticos e nem em relação às mortes. Quando há uma fila de espera de 15 dias para o resultado de um exame, tratamentos são comprometidos, medidas de isolamento não são devidamente realizadas e isso pode causar impactos decisivos na propagação da epidemia.

Mas é pior: não há um protocolo. Não há integração entre a rede pública e a rede privada nesse sentido. Isso quer dizer que os dados estão todos embaralhados. O exame demora 15 dias para alguns e 3 dias para outros. Existem várias pessoas que já morreram, já foram enterradas e ainda não tem diagnóstico definido. Isso afeta completamente a trajetória da epidemia, confundindo epidemiologistas e estatísticos. Tudo porque, de novo, estamos lidando com indicadores de políticas públicas ruins. Quem é que sabe olhar para esse contexto e criar ações de padronização, que possam melhorar a qualidade desses indicadores? Isso mesmo, os profissionais que desenvolvem pesquisa teórica em ciências sociais e os profissionais que atuam na prática desenvolvendo soluções em políticas públicas.

A pesquisa teórica em ciências sociais pode ajudar a definir as características da sociedade que hoje está vulnerável ao coronavírus. Precisamos entender as características dessa sociedade e o que pode acontecer com ela nesses 15 dias de delay nos testes. Precisamos entender as conexões sociais das pessoas para entendermos o que são de fato os padrões de propagação da doença. Na Coreia do Sul e em Singapura, por exemplo, o coronavírus se propagou à partir de cultos religiosos. Identificar esses padrões de relacionamento social que podem influenciar na velocidade de propagação do vírus é um papel de quem atua nas ciências humanas.

Por outro lado, quem atua com políticas públicas é capaz de mapear todo o processo de diagnóstico, identificando gargalos e mostrando ao agente político onde devem ser alocados recursos imediatamente para que esses gargalos sejam sanados e os processos melhorem. Quem atua com políticas públicas também é capaz de criar ações de padronização para que os dados sejam mais confiáveis mesmo com algum delay, servindo de fato para que epidemiologistas e estatísticos tracem a trajetória da epidemia com maior confiabilidade.

Seria possível citar mais um monte de argumentos aqui, mas eles seriam desnecessários para provar aquele que é o grande argumento desse texto: o combate ao coronavírus só vai funcionar se for uma ação conjunta entre profissionais de ciências biológicas, ciências exatas e ciências humanas, conduzida por agentes políticos que realmente tenham a humildade de implantar o conjunto de soluções proposto por esses profissionais e viabilizado por técnicos que realmente entendam de políticas públicas e de como o Estado se organiza.

O grande problema aqui é que apenas os profissionais das ciências biológicas tem sido ouvidos, bem como o das ciências exatas. Não há nenhum demérito deles nisso, eles estão fazendo um trabalho incrível. Mas o sistema fica completamente disfuncional se os profissionais de ciências humanas e os formuladores de políticas públicas não são incluídos nessa estrutura de combate ao coronavírus. Esses profissionais são necessários para mostrar quais são as melhores soluções, como elas se aplicam a cada contexto e também como elas podem ser implantadas na prática. Não há espaço para achismos ou para soluções do tipo “tentativa e erro”, e também é por isso que profissionais de ciências humanas e de políticas públicas são tão necessários no momento.

Somos uma sociedade só, e estamos unidos diante de um inimigo comum. Só venceremos esse inimigo se todas as nossas capacidades forem utilizadas para isso. Todas, sem exceção. Se não fizermos isso, continuaremos nos guiando por um tripé penso, confeccionando políticas com base em achismos, e as perdas serão muito maiores. E, quanto maiores as perdas, maiores as chances delas chegarem em nossas famílias e em nossos amigos. Não podemos arriscar.

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