Uma cidade ressentida

Não gosto de me prender a clichês, mas um que é verdadeiro é o que o de que a mágoa destrói a vida das pessoas. Imagine a mágoa como uma facada: na hora ela queima, incomoda, dói e sufoca. Pode matar por asfixia ou por hemorragia.

Depois de algum tempo, a mágoa, se não tratada, pode matar por outros motivos. Assim como uma inflamação em uma ferida não tratada. A ferida pode infeccionar e provocar uma septicemia. Pode levar a vida e o amor próprio à falência. Pode amargurar as pessoas, tornando-as insensíveis, individualistas e vingativas.

O tempo é como o sistema imunológico: trabalha para que nos esqueçamos das mágoas e possamos retomar nossas vidas. Ele serve para cicatrizar as feridas. Para que não sintamos mais a dor, o incômodo e a opressão provocados pela mágoa.

Nesse cenário, a capacidade de perdoar é, ao mesmo tempo, anestésica e cicatrizante. É como se, ao mesmo tempo, você tivesse tomado morfina e suturado sua ferida. Até a alegria entorpecida e emocionada, a leveza após o perdão, tornam as situações semelhantes.

No entanto, existe algo pior do que a mágoa: o ressentimento. O ressentimento passa a existir quando você é magoado e perdoa a pessoa. Só que, em seguida, você é magoado novamente. E perdoa novamente. E é magoado novamente. E perdoa. E é magoado. Esse ciclo faz com que as pessoas passem a tratar as outras com ressentimento, “acostumadas” com a dor e com a perspectiva de que determinada pessoa possa, em todas as situações, tomar a atitude que toma em todas as situações.

O ressentimento endurece as pessoas. Da mesma maneira que um lutador de muay thai tem a tíbia endurecida pelos golpes cotidianos, as pessoas tem seus corações endurecidos pelos golpes cotidianos da vida e das pessoas. E tornam-se cada vez mais secas, ressentidas, sem esperança e sem amor.

É o que acontece com São Paulo hoje. Vivemos em uma cidade ressentida. Que talvez faça parte de um país ressentido (mas há controvérsias). São Paulo é uma cidade que sofreu na mão de vários canalhas. E não falo apenas dos políticos, que seriam o alvo mais óbvio. A lista é imensa, mas vou colocar alguns poucos exemplos aqui.

Em São Paulo, policiais e bandidos, sem controle do Estado, se enfrentam sem pudores, ressentindo a população, que passa a se prevenir individualmente. Seguranças particulares, câmeras, controle e carros blindados são uma forma de ressentimento. E há um ressentimento maior: o das pessoas que perdem abruptamente conhecidos, sejam eles policiais, bandidos ou cidadãos que não tem nada a ver com a história, mas fazem parte das estatísticas de homicídios, que cresceram 86% em São Paulo.

A população de São Paulo ficou ressentida com a corrupção sob o comando de um sujeito que comprou mais de cem imóveis em sete anos à frente do Departamento de Aprovações da Prefeitura, prédios irregulares foram aprovados, em um loteamento do espaço urbano paulistano que só beneficiou construtoras e especuladores imobiliários, aumentando o risco de acidentes aéreos. E com diversas outras formas de corrupção, que marcaram governos como o de Celso Pitta.

A população de São Paulo ficou ressentida com Gilberto Kassab, cuja ânsia por proibições esdrúxulas virou até chacota. E com José Serra, que o projetou para a política. A eleição mostrou que São Paulo, tal qual uma mulher que passa anos apanhando do marido e toma coragem, resolveu largá-lo para ficar com seu inimigo, ainda que esse inimigo tenha amigos canalhas.

E quais são as consequências do ressentimento? O ressentimento, tal qual no Muay Thai, torna as pessoas mais resistentes, mais duras, mais secas. Faz com que as pessoas apanhem, não sintam a dor e batam mais forte de volta.

A crise na segurança faz proliferar o discurso de que “bandido bom é bandido morto”, em uma mentalidade individualista cujo pensamento tem algumas fases bem específicas:

“A vida está ruim por causa da violência e dos riscos de perder o que eu tenho” => “seria bom se não existisse violência” => “a violência é culpa dos bandidos” => “então a minha vida não estaria ruim se a violência, culpa dos bandidos, não existisse” => “bandido bom é bandido morto”

Qual é o erro?

1) “Perder o que eu tenho”, na primeira frase. Só tem medo de perder quem TEM alguma coisa. E, na nossa sociedade, infelizmente não é todo mundo que tem algo. E, obviamente, quem não tem nada (e, portanto, nada a perder) tem maior propensão de utilizar meios não autorizados pela lei para obter vantagem. Nesse sentido, a mentalidade de muitos brasileiros em “levar vantagem em tudo” e “dar jeitinhos” não é apenas uma característica cultural, mas é fruto da pobreza e da desigualdade social que acometeram grande parte da nossa população durante toda a história do país. Quem não tem nada a perder obviamente vai tentar arrumar um jeito de levar alguma vantagem ou dar algum jeitinho para sobreviver, não se importando se faz isso à margem da lei.

2) “A violência é culpa dos bandidos”. Nem tanto, né? Existem bandidos e bandidos, vamos deixar bem claro. O sujeito de má índole existe no Brasil, dos EUA, na Suécia ou na Nova Zelândia, independente da formação ou do nível econômico. Por outro lado, existem aqueles que só passaram a viver à margem da lei porque foram criados em um ambiente degradado, em que muitas vezes viver à margem da lei era a melhor forma de progredir na vida. Em uma cidade como São Paulo, várias periferias são opressoras a ponto da criminalidade parecer mais atrativa que o trabalho formal para muita gente.

3) “Bandido bom é bandido morto”. Errado. Bandido bom é o bandido que deixa de ser bandido e é reinserido na sociedade. O Estado de São Paulo tem incríveis 180 mil presos, de acordo com a própria Secretaria de Administração Penitenciária. A abordagem punitiva nem sempre é a mais adequada, ainda mais quando constatamos que a administração é falha e permite o controle da atividade de grupos criminosos de dentro dos presídios. E isso é totalmente contraproducente, com o gasto de quantidades enormes de dinheiro público e um índice pífio de ressocialização dos presos. A privação de liberdade, após um crime, não pode ser encarada como privação de dignidade. Mas é isso que ocorre nos presídios superlotados. Isso quando a privação de dignidade não vem antes, em uma “resistência seguida de morte

Outras abordagens, como a dos prédios irregulares, tem a ver com o exemplo já citado do “levar vantagem em tudo”. Só que usada da maneira inversa: a “abordagem cultural” justifica aos detentores do poder econômico a ação contra a lei, pelo simples pressuposto de que “é uma característica cultural, todo mundo faz”.

E, assim, São Paulo segue cada vez mais ressentida, cada vez mais machucada, cada vez mais precisando de um afago. Porque a única solução para acabar com o ressentimento é o carinho sincero, demonstrado através de atitudes da preocupação altruísta. E isso não acontece apenas com São Paulo. Muitas outras cidades sofrem da mesma maneira. Estão ressentidas. Estão cansadas de apanhar por todos os lados. Estão lutando para não se tornarem cidades secas, que agridem seus moradores da mesma forma como têm sido agredidas por alguns deles.

É contra esse ressentimento, nas vidas e nas cidades, que as pessoas devem lutar cotidianamente.

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Um comentário sobre “Uma cidade ressentida

  1. No aspecto 2, existe bandido independente da classe social. Pobre e rico. Não apenas rico, também existe trabalhador pobre, o que é a grande maioria. Apesar de ser menos atrativo, preferem viver uma vida honesta. Questão unicamente de caráter. Influência interfere, mas quem faz a escolha é a pessoa. A não ser que seja obrigada a ser criminoso, nunca fiquei sabendo disso. Há a questão da lei e a punição. Não basta apenas a lei, ela deve ser cumprida. Aqui no Brasil o rico se livra fácil de uma acusação de crime (Depende. Se a vítima for mais rica, aí fudeu!) , bons advogados, justiça parcial e juízes sem nenhum tipo de segurança para exercer sua função. E o pobre ? não tem acesso a um bom advogado. Uns são presos (não ficando muito tempo), outros soltos. Por que ? o nosso sistema penitenciário largado. Não cabe mais ninguém. Estão extremamente lotadas. Além das condições precárias e falta de organização. Parece um esgoto cheio de ratos ou aterro sanitário (Falando nisso, e o destino dos nossos lixos, hein ?). E logo, daí nunca saíra um homem apto a viver em sociedade, podendo voltar até pior. Um policial mais do que ninguém sabe disso. Não justifica, mas por isso comete várias vinganças. Políticos não estão nem aí, não há ideologias, apenas interesses pessoais e empresariais. População é acovardada por uma questão histórica, cultura e de caráter de cada um. Esse é o cenário do Brasil. Um país que não dá esperança de mudança. Enganados por hipocrisias (“País do futuro”, “povo mais alegre do mundo”, “estamos no Século XXI” etc) damos um jeitinho de nos acomodar.

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