É desnecessário fazer uma descrição muito detalhada dos protestos desse histórico 13 de julho em São Paulo. Mesmo porque o Luís Felipe dos Santos já publicou no Impedimento um texto que, para mim, deve ser considerado o definitivo sobre o assunto. Também leiam o relato do Bruno Bonsanti, que estava lá e sentiu na pele toda a truculência da Polícia Militar.
O que é necessário compreender nesse momento, antes de qualquer outra coisa, é que esse conjunto de manifestações já não diz mais respeito à tarifa de ônibus. Elas se tornaram manifestações pela ocupação do espaço urbano e pela própria liberdade de manifestação.
Dito isto, são necessárias algumas ponderações importantes:
O Contexto Internacional
No final da década de 60, em que manifestações ecoaram por todo o mundo, estávamos em um momento de esgotamento do modelo econômico vigente (o modelo de desenvolvimento baseado na indústria Fordista/Taylorista). As manifestações ecoaram, naquela época, como um elemento de libertação daquela lógica sistemática vigente no período, englobando diversas demandas sociais (como a questão do racismo, por exemplo). Ocorreram nos EUA, na França, originaram guerrilhas na América Latina e no Norte da África, e isso porque as mazelas desse modelo foram percebidas e a classe política perdeu o crédito. Por mais que tenham havido frustrações no meio do caminho, os protestos abriram a percepção de toda uma geração para um novo tipo de participação política. Prova disso é que nos EUA Nixon foi obrigado a renunciar à presidência após a explosão do caso Watergate, em 1974, em que seus partidários foram presos ao tentarem colocar escutas no Comitê do Partido Democrata.
Atualmente, a maioria nem se deu conta, mas estamos em outra “era” político-econômica. Essa era de desenvolvimento é baseada na disseminação da informação. A informação não é apenas um ativo, é elemento essencial no próprio processo. A multiplicação da capacidade de processar e armazenar informação permitiu a fragmentação dos meios de produção em escala mundial, e esse processo de desenvolvimento e democratização da informação, que culminou na Internet, foi o grande responsável pelo desenvolvimento econômico nos últimos anos (e pela liquidez absurda de capital em escala internacional que inundou os países e governos na última década).
Só que esse momento já está acabando também, a exemplo do modelo fordista no final da década de 60. Óbvio que as tecnologias precisam chegar em muitos lugares, mas a própria disseminação de informação tem um limite. E ele foi alcançado com o desenvolvimento das tecnologias móveis de acesso à Internet, como o 3G/4G e a tecnologia wi-fi.
Tudo isso, aliado a uma crise econômica provocada pelo excesso de liquidez, que levou a criação de diversas bolhas especulativas, especialmente a imobiliária, fez com que o nível de vida da maioria das pessoas caísse bastante. Especialmente dos jovens, que estão em busca de seu primeiro emprego. Caso emblemático é o da Espanha, em que 56% dos jovens de até 24 anos estão desempregados.
E há um componente adicional em toda essa história. A era atual é caracterizada pela disseminação da informação, e isso provocou uma profunda democratização da informação através da Internet. Essa democratização fez com que imprensa e governo fossem cada vez mais questionados em suas motivações. A versão deles quase nunca confere com o que as pessoas vêem acontecer diariamente.
E a exposição dos absurdos cometidos pelos governos, com a anuência da imprensa, na maioria dos casos, fez com que surgissem as revoluções chamadas de “Primavera Árabe”, que depuseram governos na Tunísia, no Egito, insuflaram a revolta contra Khadafi na Líbia, provocaram uma guerra civil na Síria e manifestações nunca antes vistas em diversos países islâmicos tradicionais. (para ler mais sobre como essas revoluções começaram, sugiro esse texto). Essas manifestações inspiraram movimentos como os “Occupy”, em diversos lugares do mundo, ou dos indignados, na Espanha. Todos eles tendo em comum o desejo de recuperar o espaço público para a população.
E em São Paulo?
Em São Paulo os protestos começaram por algo aparentemente elementar, mas de suma importância para os mais pobres: o aumento de R$ 0,20 no valor da tarifa do transporte público municipal (e também da CPTM e do Metrô, de alçada estadual).
Após as duas primeiras manifestações, o movimento cresceu. Na terça-feira, dia 11, dez mil pessoas (oficialmente) desceram a Rua da Consolação. Nessa quinta-feira 13, no entanto, a história aconteceu. A manifestação já começou tumultuada, com mais de cinquenta prisões arbitrárias, entre eles a de alguns jornalistas, como Piero Locatelli, da Carta Capital. Ele foi preso por portar vinagre em uma embalagem, rapidamente “confundida” com gasolina pelos policiais.
O fato é que, apesar de tudo isso, a manifestação transcorria em relativa paz (tirando um ônibus que foi pichado e teve os vidros quebrados perto da Praça da República, bom frisar) até a esquina entre a Rua da Consolação e a Rua Maria Antônia, onde policiais fizeram um bloqueio, fechando a passagem. Onde surgiram mais policiais da tropa de choque, que rapidamente começaram a jogar bombas a esmo no pessoal que protestava, incluindo jornalistas.
A partir daí, foi o caos. 55 feridos foram atendidos, mas a Secretaria de Saúde paulistana disse que “não houve feridos no protesto” (e a Globo News repercutiu a nota com visível constrangimento). Vários jornalistas foram feridos, dentre eles Giuliana Vallone, da Folha de São Paulo, que tomou uma bala de borracha no olho e não morreu por poucos centímetros (a maioria não sabe, mas se uma bala de borracha entra no globo ocular, atinge o cérebro e É LETAL SIM. Foi mais ou menos o que rolou com Kevin Espada e o sinalizador em Oruro)
O que é necessário dizer é que toda eventual depredação se torna legítima a partir do momento em que um policial militar, que é um representante do Estado, agride cidadãos protestando (e independente da causa, diga-se). O que ocorreu entre o Anhangabaú e a Avenida Paulista ontem foi uma verdadeira perseguição, com bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo, policiais atirando com balas de borracha em inocentes, em sujeitos ajoelhados em sinal de rendição, e isso nem merece ser descrito. É a falência moral de um Estado brasileiro, como disse muito bem o José Antônio Lima.
Em um cenário em que o Estado, que deveria defender o cidadão, o agride de maneira covarde, qualquer reação é válida. Qualquer depredação é válida, inclusive ao patrimônio privado. TUDO, absolutamente TUDO é culpa da Polícia Militar, que atentou contra a vida das pessoas a quem deveria proteger.
Só que a culpa não é tanto dos policiais em si. Os policiais militares em São Paulo ganham pouco e são boicotados há muito tempo. Quando o Secretário de Segurança era Antonio Ferreira Pinto, os policiais eram presos em seus batalhões e jogadores em missões suicidas na periferia. Isso ajudou muito no assassinato de quase 100 policiais em 2012. E também na formação de grupos de extermínio dentro da PM e na quase generalização da mentalidade de “atirar primeiro e perguntar depois”. Com Grella no comando da Secretaria, algumas ações foram feitas para coibir isso, mas as cobras já estavam criadas e as próprias ações do governo foram bem tímidas, para dizer o mínimo.
Foi isso o que aconteceu nesse protesto de 13 de junho. E, dado o caráter persecutório da atuação da polícia, é óbvio que a repressão foi ordem do comando. Talvez do próprio comando da PM, que quer queimar o filme do Secretario de Segurança, por conta das investigações. Talvez do próprio Secretário de Segurança. Talvez do próprio governador Alckmin, que disse que não ia “permitir vandalismo”. Tudo isso, adicionado aos editais canalhas da Folha e do Estadão (que não serão postados aqui, desculpem), fez com que a bomba relógio explodisse. A repressão policial, antes de tudo, foi um enorme e cretino modo de demonstrar força.
E é uma prerrogativa da tropa de choque. Quando o choque chega, é SEMPRE com a ordem de dispersar a multidão, usando a força que for. Alguém deu essa ordem. A ordem era “não deixem os manifestantes chegar na Avenida Paulista”. E foi o que justificou toda a violência.
Depois de toda a violência, os policiais cumprem outra ordem de cima: a de terceirizar a culpa. Mas, nesse tempo de telefones celulares com câmeras, ela não é mais terceirizável sem ressalvas. É o que prova o vídeo do policial que quebrou o vidro da própria viatura:
EDIT: atacaram uma galera DENTRO DE CASA também, pra “pararem de filmar”.
E agora?
O movimento vai aumentar. Vai aumentar muito. O que aconteceu nas ruas de São Paulo ontem mexeu com os brios das pessoas. Um dos sentimentos mais puros do ser humano ainda é o senso de justiça. E a manifestação de ontem virou o jogo a favor dos manifestantes: se até ontem a maioria do exposto na mídia era acerca do vandalismo em estações de Metrô, orelhões e lixeiras, ontem tudo mudou. As cenas que ganharam o mundo foram as da repressão policial. E isso fez muita gente que não tem nada a ver com a causa se compadecer da gurizada.
Os governos estadual e municipal estão agindo muito mal. Aumentando a distância entre a informação oficial e a informação real. Agindo em relação ao movimento ora com menosprezo, ora com raiva, ora subdimensionando o real tamanho da coisa. A verdade é que o governo estadual e a prefeitura não sabem o que fazer. Eles tentaram “dispersar” a manifestação, da mesma forma que a tropa de choque fez ontem. Mas, a cada vez que a manifestação é dispersada, ela se reagrupa mais forte e mais convicta dos seus ideais.
Na Turquia, os protestos começaram em torno de uma árvore, que seria destruída para a construção de um prédio em uma praça. Em São Paulo, começaram pelo preço da passagem de ônibus.
Essa discussão precisa ser aprofundada. Chegando aos empresários de ônibus, que formam uma verdadeira máfia (em Santo André, tem empresário de ônibus acusado até de assassinato de prefeito), que ganham muito dinheiro e prestam um serviço horrível, sob concessão. Chegando à discussão sobre o modelo da cidade, que privilegia há mais de 50 anos quase que exclusivamente o carro, gastando bilhões de reais anualmente para o aumento da malha de vias, em detrimento de sistemas eficientes de transporte coletivo. Por que os motoristas de carro não podem pagar, por exemplo,uma taxa sobre o IPVA, para subsidiar o transporte público?
É muito necessário discutir soluções urgentes para uma cidade como São Paulo, em que o cidadão leva em média três horas por dia entre sua casa e o trabalho. O cidadão paulistano perde EM MÉDIA um oitavo do seu tempo de vida, durante a semana, no trânsito, seja no transporte individual ou no coletivo. Tem gente que leva muito mais tempo que isso. Por que? Porque a cidade foi construída, especialmente na época da ditadura militar, para a segregação entre diferentes tipos sociais (para mais informações, leia esse texto), e isso traz consequências terríveis hoje, especialmente em relação aos deslocamentos.
Depois desse protesto do dia 13 de junho, a tarifa virou a menor das questões. Os próximos protestos precisam antes, antes de qualquer outra coisa, pela liberdade de protestar. De falar sem ser reprimido. De ir e vir. De se apropriar da cidade. De resgatar o prazer de se viver em São Paulo sem ter que constatar todos os dias o quanto essa cidade se tornou inviável.
No meio de todo esse caos, é necessário surgir esse senso coletivo, essa maravilhosa catarse em se engajar em algo junto com todo mundo, em andar pela cidade com mais um monte de desconhecidos única e exclusivamente porque todos ali tem um objetivo em comum. Para terminar tudo, olhar para uma cidade melhor e pensar: “eu fiz pouco, mas ajudei a mudar isso daqui”
É para isso que devemos protestar.
Excelente texto Leonardo! Vou compartilhar!
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Opa, que é isso, valeu, Diego!
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vou reblogar!
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Perfeito cara, seu blog é sensacional! Parabéns!
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