A História da Minha Cidade é uma Farsa

Eu sou de Santo André. Hoje a cidade comemora 471 anos, de acordo com a prefeitura e com os habitantes da cidade em geral.

471 anos é tempo pra caramba. A história usada para justificar esse aniversário é conhecida: Santo André é supostamente herdeira da Santo André da Borda do Campo, vila fundada por João Ramalho em 1553 no caminho entre São Vicente e São Paulo depois que ele se perdeu na floresta. A coisa é tão difundida que até o clube de futebol da cidade é apelidado de “Ramalhão”, em referência ao João Ramalho.

Beleza, mas a verdade é que essa história é uma grande mentira. É uma daquelas fake news que a gente escuta continuamente desde a infância e nunca acredita. João Ramalho tem uma das histórias mais misteriosas do século XVI. Não se sabe exatamente quando ele chegou ao Brasil e nem como, mas a estimativa mais confiável é a de que ele foi sobrevivente de um naufrágio entre os anos de 1510 e 1515, se estabelecendo na região de São Vicente e depois subindo a serra. Depois disso, ele conheceu e se tornou próximo ao cacique tupiniquim Tibiriçá, que foi o primeiro líder de povos originários que se aliou aos portugueses na colonização do Brasil. Inclusive desposou sua filha Bartira.

Aí começam as controvérsias. Porque Tibiriçá, de acordo com os registros históricos, residia próximo ao local onde hoje é o Largo de São Bento, na capital. Isso é de conhecimento público desde quando Martim Afonso de Souza chegou ao litoral paulista, em 1532. Tibiriçá e João Ramalho ajudaram os portugueses a se estabelecerem no Planalto Paulista, apesar da relação conturbada de João Ramalho com os padres jesuítas. Nesse contexto, nasceu a famigerada vila de Santo André da Borda do Campo, que tanto Santo André quanto São Bernardo do Campo usam para dizerem que estão comemorando 471 anos de idade.

Em ambos os casos, as alegações beiram o ridículo. A história da Vila de Santo André da Borda do Campo é bem conhecida: a vila foi fundada em 1553 em algum local no caminho entre São Vicente e o atual Pateo do Colégio, marco da fundação da cidade de São Paulo. Só esse fato já elimina qualquer possibilidade da vila em questão estar sediada na área da cidade de Santo André. É só olhar os relatos da época, as estradas históricas entre São Vicente e São Paulo e qualquer mapa da região para entender que não fazia nenhum sentido a existência de um caminho entre São Vicente e São Paulo que passasse pela área da atual cidade de Santo André. Nesse sentido, São Bernardo do Campo também comemora um aniversário de mentirinha, mas ao menos a probabilidade da vila ter sido lá é maior.

Sim, probabilidade. Porque NUNCA foi encontrado qualquer vestígio da vila de Santo André da Borda do Campo. Estima-se que a localização da vila era na encosta da serra, de acordo com os documentos da época, mas estranhamente nunca se encontrou qualquer rastro da antiga vila (por mais que alegações do tipo fossem feitas desde o início do século XX). Então, na prática, ninguém sabe exatamente onde era a vila.

Para piorar, a história da vila de Santo André da Borda do Campo não é exatamente uma história feliz e de triunfo. A Vila foi extinta e incorporada pela aldeia de São Paulo em 1560, basicamente porque os ataques dos Tamoios eram frequentes e botaram todo mundo para correr. Daí os habitantes saíram da encosta da serra, onde estavam mais vulneráveis, para a área da aldeia de São Paulo, que era geograficamente menos vulnerável aos ataques de outros povos indígenas (como mostrou o Cerco de Piratininga em 1562, inclusive).

A questão é que toda essa história não tem nenhum vínculo com a cidade de Santo André. A cidade de Santo André tem toda a sua história de fundação baseada numa mentira, numa ficção, numa lenda sem qualquer base comprobatória, mas que é reproduzida sem nenhuma crítica no próprio site da prefeitura como parte da história da cidade.

Tanto que, após 1560, toda a área em questão foi entregue ao ouvidor de São Vicente Amador de Medeiros. A família dele se importava tão pouco com a região que quase oitenta anos depois, em 1637, a região toda foi DOADA aos monge beneditinos, e separada em duas fazendas: Fazenda São Bernardo e Fazenda São Caetano. Sem qualquer vestígio da existência de Santo André.

Mais várias gerações se passaram e, em 1717, surge a primeira capela onde hoje é São Caetano do Sul, formando a base dos municípios de São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. Mais várias gerações se passaram, e só começaram a se formar habitações onde hoje é a cidade de Santo André no meio do século XIX, quando a ferrovia Santos-Jundiaí foi construída passando pela região. Ainda assim, a estação de trem de chamava São Bernardo. Em 1889, São Bernardo se tornou um município autônomo, englobando toda a região do ABC. Ainda nessa época nem se falava em Santo André.

Isso mudou no início do século XX, graças aos esforços do Senador Estadual José Luis Fláquer, que passou a argumentar que a antiga Santo André da Borda do Campo estava sediada na então cidade de São Bernardo. Era uma hipótese provável, uma vez que o município em questão abarcava toda a região atual do ABC Paulista. Então se recuperou o nome de Santo André de forma totalmente artificial, e a centro urbano que cresceu em torno da então estação de trem São Bernardo foi renomeada para Santo André em 1910. Se Santo André quisesse comemorar de verdade sua data de fundação, sem inventar lendas que não fazem sentido nenhum, esse ano seria uma das opções.

A outra opção seria o ano de 1938. O desenvolvimento associado a industrialização e a linha férrea fez com que o distrito de Santo André se tornasse maior que a sede do município de São Bernardo. Então, em 1938, o então interventor federal Ademar de Barros promulgou uma lei transferindo a sede do município para o Distrito de Santo André. Seis anos depois, em 1944, São Bernardo e Santo André se separam, tornando-se dois municípios distintos.

A verdade é que Santo André deveria estar comemorando, em 2024, seu aniversário de 86 anos. Ou, na mais generosa das hipóteses, deveria estar comemorando 114 anos de idade. Mas as elites da cidade se apegam a uma lenda sem qualquer comprovação de que a cidade tem quase quinhentos anos. Uma lenda que só faz a cidade passar vergonha, que enseja uma comemoração “de mentirinha”: Santo André, assim como São Bernardo do Campo, obviamente não estão em nenhuma listagem dos municípios mais antigos do Brasil. Se tivesse de fato sido fundada em 1553, a cidade de Santo André seria a sétima mais antiga do Brasil.

Hoje, 08 de abril, Santo André vive mais um aniversário. Mais um dia em que a cidade renega a sua verdadeira história para abraçar uma lenda de fundação sem nenhum nexo. A realidade sobre Santo André é que a cidade surgiu como uma vila de trabalhadores industriais que se formou em torno da estada de ferro. Reconhecer essa história e construir o legado de Santo André em torno dessa história industrial seria bem mais justo e nobre do que ficar se apegando a lendas de quase meio milênio atrás.

Mas a realidade é que a mentira grandiosa é sempre mais tentadora. E é por isso que a história da minha cidade é uma farsa.

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