O Propósito da Ciência e o Propósito da Vida

No último dia 29 de janeiro, minha minha colega – e, antes de tudo, amiga – Adriana Dias faleceu, após uma duríssima batalha contra um câncer cerebral.

De alguma forma, mantivemos a esperança de que ela ficaria conosco por mais tempo. Ela sempre desafiou as estatísticas. Tinha um quadro sério de osteogênese imperfeita – aquela doença em que os ossos quebram por qualquer coisa – e passou por mais de 30 cirurgias durante a vida, em geral por causa de fraturas desencadeadas por sua condição genética. Não poderia existir pessoa melhor para ser a voz que viabilizou a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, tendo feito até um instituto para reunir as pessoas com doenças raras, o Instituto Baresi.

A Adriana também tinha como bandeira a tentativa de igualar os direitos das pessoas com doenças raras aos direitos das pessoas com deficiência. Quem pensaria nisso? Trabalhar a intersecção entre diferentes políticas, enxergando o todo, é uma coisa rara. Conseguir aplicar isso em sua militância política cotidiana, mais raro ainda.

Para além de uma militante obstinada, a Adriana era uma cientista de mão cheia. Eu tive a imensa sorte de fazer minha graduação em Ciências Sociais na mesma turma que ela na Unicamp. Eu confesso que no começo meu sentimento em relação a ela era um pouco de encantamento e um pouco de ceticismo. A graduação em Ciências Sociais não foi a primeira dela: quando ela ingressou, já tinha 31 anos de idade e muita experiência nas costas. Apesar de não ser a primeira, a graduação em Ciências Sociais foi a que definiu parte decisiva de seu legado. Foi na antropologia que a Adriana começou a pesquisar a atuação de grupos neonazistas nas redes sociais, e isso foi absolutamente inovador. Ela conseguiu enxergar esse fenômeno uns dez anos antes de todo mundo, criou um método de análise e se tornou a grande autoridade brasileira no tema. E isso tudo trabalhando sozinha na maior parte do tempo, sofrendo ameaças, e sendo tida como alarmista dentro da própria academia.

Era impossível não se encantar com a Adriana. Ela sabia muito, muito mesmo, de todas as coisas. Enxergava tudo com uma curiosidade quase infantil, e eu me identificava demais com isso, porque eu também tenho essa curiosidade infantil (mas nem de longe sou genial como era a Adriana). Ela tinha tido experiência em outras áreas antes de vir pras ciências sociais: as mais importantes foram na medicina e na psicologia. Mas, academicamente, sempre se identificou como antropóloga. E também como um monte de coisas relacionadas as suas realizações como agente política.

Eu tive duas pessoas mais velhas que eram minhas referências de “pessoa mais velha e sábia” na graduação: o Ubaldo e a Adriana. Infelizmente, os dois partiram cedo demais. Com o Ubaldo, morei um ano na moradia estudantil. Ele tinha entrado na Unicamp em 1979, e não se formou em nenhum curso, mas participou muito do movimento estudantil, sendo atuante em coisas incríveis como a própria construção da moradia estudantil na Unicamp. Passou umas quatro vezes no vestibular, e estava planejando prestar novamente em 2003. Era um poço de cultura geral e me ensinou um monte de coisas sobre assuntos completamente aleatórios. Durante o primeiro ano da minha graduação eu ficava acordado todos os dias até umas seis, sete da manhã. Por incrível que pareça, sóbrio, conversando com o Ubaldo e com quem mais aparecesse em casa. E sempre aparecia alguém.

Infelizmente, como era de se esperar, a convivência entre um senhor de 41 anos e um jovem de 18 anos que nunca tinha morado longe dos pais teve rusgas. Por mais que eu admirasse o Ubaldo, no final do ano decidimos que era melhor não morarmos mais na mesma casa. Na mesma época, ele começou a ter dificuldades de engolir alimentos e foi no Hospital Estudantil da Unicamp ver o que era. Era um câncer na garganta. Quando eu fui pegar o resto das minhas coisas na volta às aulas em março, vi ele abatido, cumprimentei, desejei boa sorte. Em maio, ele morreu. Ficou a tristeza pela partida precoce, mas também por não ter falado mais claramente o quanto eu o admirava.

Com a Adriana foi diferente. Ela era igualmente genial, mas nossas conversas se davam no contexto das aulas e de tudo o que ocorria ao redor. Ela era mais que uma aluna de graduação: dava conselhos para os mais jovens, ensinava, dava risada junto, espalhava seu imenso conhecimento sobre um monte de áreas de forma franca, aberta, sem cerimônias. Por vezes, do alto da minha postura cética da época (18 pra 19 anos de idade, relevem) eu achava aquilo meio arrogante, porque não era possível que alguém realmente fosse tão brilhante em tantas áreas diferentes. Mas sim, a Adriana era brilhante nesse nível. Ela tinha uma sabedoria que transcendia as disciplinas e conseguia criar conexões entre diferentes áreas do conhecimento com a maior naturalidade do mundo. E fazia tudo isso sem deixar de ser amorosa com os outros.

Quando eu saí de casa para ir estudar na Unicamp, vim de um ambiente em que eu passei a adolescência toda na igreja presbiteriana. Para piorar, estudei num curso técnico de Mecatrônica, com 43 homens em uma sala de 45 alunos. Eram dois ambientes conservadores, machistas, em que os preconceitos eram tidos como normais e afloravam diariamente. O fato de eu ter ido cursar Ciências Sociais na Unicamp é quase um milagre. Olhando em perspectiva, não fui eu que escolhi o curso, foi o curso que me escolheu, talvez para que eu aprendesse a enxergar a vida sob outras perspectivas, mais abrangentes que o contexto de uma igreja evangélica conservadora em que qualquer coisa “do mundo” deveria ser evitada por ser pecado. Nesse ambiente, o choque ao ir morar sozinho em Campinas e descobrir o mundo sozinho foi aterrador, e era óbvio que eu me sentia muito carente.

Um dia, a Adriana se ofereceu para fazer meu mapa astral. Sim, ela também entendia muito de astrologia, e antes de existirem esses aplicativos de astrologia que o pessoal usa hoje em dia. Meu primeiro pensamento, condicionado pela minha adolescência evangélica, foi o de que “isso é pecado”. Mas eu ignorei esse pensamento e aceitei a gentileza. Para falar a verdade, eu nem sabia o que era um mapa astral na época. Hoje mesmo, eu só sei que meu sol está em Áries, meu ascendente em Libra e minha lua em Áries, embora não tenha muita ideia do que isso significa.

A questão é que a Adriana de fato fez o mapa astral. Cheio de detalhamentos, mapeando influências passadas e futuras, foi um trabalho pro qual estava claro que ela tinha dedicado bastante tempo. Eu, no alto da minha ignorância em relação ao tema, não entendi a maioria das coisas que ela disse, mas foi uma das raras vezes na faculdade eu me senti tão acolhido por alguém. O ambiente da faculdade geralmente é duro, frio e inóspito, e a afetividade é mais exceção do que regra. O ato da Adriana ter gastado tempo e feito todo um trabalho em cima do que ela julgava importante para mim na época foi, pra mim, muito mais importante e significativo do que os apontamentos do mapa astral em si.

Depois dos três primeiros semestres, acabamos nos vendo menos: ela foi fazer as matérias da antropologia, e eu fui me perder fazendo matérias pela Unicamp inteira. Acho que isso resume bem os momentos distintos que vivíamos: ela super focada, já estudando células neonazistas, e eu tentando descobrir quais temas me encantavam. Passamos a nos conversar bem pouco, e depois que eu terminei a graduação perdemos o contato em definitivo.

Nesse tempo, a pesquisa dela cresceu e ela se tornou a gigante que todos conhecem. Nos reencontramos em 2021, quando ela (e sim, foi iniciativa dela) resolveu que precisava reunir a turma por ocasião dos 20 anos de entrada na Unicamp. No final do ano passado, semanas antes da derradeira internação, ela finalmente conseguiu reunir a turma. Eu não consegui ir até Campinas, mas reencontrei a Adriana em conversas, ligações, lives e depois, pessoalmente, no hospital. Nesse processo, é impossível deixar de descrever a importância do Marcelo, que foi companheiro de vida dela. Os dois viveram um daqueles romances de comédia romântica, mas sem a parte ridícula. Para a Adriana, era muito fácil amar.

Antes do momento derradeiro, porém, já tínhamos retomado a nossa relação. Agora eu, muito mais maduro do que na graduação, entendia perfeitamente as aspirações e a ansiedade realizadora dela. Tínhamos projetos grandes para 2023: compilar as palestras dela sobre neonazismo em livro, um canal de divulgação científica de fomento à democracia, trabalhos em políticas públicas, até uma pós graduação de estudos sobre extrema direita ela queria abrir. Não deu tempo. Mas eu me sinto feliz e extremamente privilegiado por ter conseguido ter tempo de retomar os laços e de conviver com a enorme sabedoria da Adriana. Porque a Adriana me ensinou, com atitudes, uma das coisas mais importantes que alguém que trabalha com ciência pode aprender na vida: o propósito da ciência.

Em tempos de obscurantismo, fazer ciência é resistência. Foi assim no Renascimento, com Nicolau Copérnico, Giordano Bruno e Galileu Galilei. O caminho para a sociedade reconhecer a ciência é longo, tortuoso, tem percalços e precisa ser percorrido várias vezes. A ciência é a arte de desvendar novos conhecimentos ou aperfeiçoar conhecimentos que já existem, sistematizando-os. Nas ciências humanas esse conceito adquire um contorno adicional: a ciência também pode ser a arte de revelar e sistematizar aquilo que estava sendo deliberadamente escondido em nome de interesses escusos. E foi exatamente isso que a Adriana fez. Fez ciência com o propósito de tornar o mundo melhor, de detectar e avisar as pessoas sobre os perigos do extremismo. Antes da onda extremista que o Brasil viveu, a Adriana já avisava sobre o que viria. E pagava o preço por isso: foram anos de ameaças, que em nenhum momento a intimidaram.

A Adriana tinha o propósito de melhorar o mundo por meio da ciência, da arte, da cultura e das políticas públicas. Queria um mundo mais alegre e inclusivo para todos. E trabalhou incessantemente por isso. No movimento feminista, na pesquisa sobre extrema direita, na militância para o estabelecimento de um marco legal para a atenção às doenças raras, na militância pela pessoa com deficiência, na busca por justiça para as vítimas de COVID. Ela era quase onipresente, e foi importante em todas essas frentes até os últimos dias da sua vida. Prova disso foi a sua atuação no grupo de transição para o governo Lula, na área de direitos humanos.

Na graduação, eu achava que o cientista deveria ficar afastado das questões relevantes da sociedade. Achava que a ciência daria suas respostas por si só e que a sociedade simplesmente as aceitaria, como um apontamento do que é verdade e do que não é. O tempo mostrou que eu estava enganado, e eu passei a conciliar pesquisa e militância. Às vezes eu acertava, às vezes eu errava, mas via a vida acadêmica e a vida de ator político como coisas separadas. A Adriana mostrou que nada precisa ficar separado e que é possível conciliar tudo, é possível ser coerente agindo em várias frentes, se você tem de fato o propósito de melhorar o mundo com a sua militância.

E isso obviamente respinga na vida cotidiana, aquela que reúne nossos afetos e está além de nossa atuação pública. Nos últimos anos, a Adriana se converteu ao judaísmo. Algo muito surpreendente para quem nasceu e cresceu em uma formação católica. Mas totalmente coerente com o propósito da ciência que a Adriana fez a vida toda. Ao denunciar o extremismo, as desigualdades e defender os direitos humanos, a pesquisa da Adriana ajudou a colocar luz no sofrimento daqueles que tinham sido assassinados em escala industrial e com métodos industriais pelo nazismo. Os judeus, mais do que um objeto de pesquisa da Adriana, passaram a ser um povo que a acolheu, do qual ela passou a fazer parte, para quem ela dedicou muitos de seus esforços científicos e lutou até o fim de seus dias. É poético e catártico que a Adriana tenha se tornado parte do povo que sofreu a Shoah na parte final de sua vida. O povo que ela ajudou a proteger teve tempo de entrar em seu coração.

A Adriana não era várias pessoas. Ela era uma só. E por isso mesmo era tão brilhante: como em um mosaico, a Adriana conseguiu dar coerência a todas as suas facetas para que elas se tornassem uma arte só. A mesma Adriana estava em lugares muito diferentes e mudou o mundo de maneiras muito diferentes, porque a sua vida foi uma caminhada guiada por sua inteligência e por seus sentimentos. Se a inteligência ajuda ela a descobrir coisas incríveis, que ninguém tinha descoberto antes, os seus sentimentos faziam com que todas as suas descobertas e toda a sua capacidade de criação fosse voltada para as pessoas, para o acolhimento, para construir um mundo melhor. A Adriana nos mostrou que, em tempos de obscurantismo, ainda é possível fazer uma ciência heróica, transformadora, que realmente move o mundo: basta mover a motivação da sua pesquisa – e, em última instância, da própria vida – pelo sentimento de que todo o esforço realizado vale a pena. Porque vai salvar vidas, porque vai transformar realidades, porque vai transformar o mundo em um lugar melhor.

É por isso que pessoas como a Adriana são e serão eternas.

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