Em abril, escrevi sobre como Bolsonaro estava usando o conceito de imoralidade entre evangélicos para conseguir votos. Em junho, expliquei melhor esse fenômeno no Le Monde Diplomatique Brasil. Agora, em agosto, é possível perceber os enormes resultados dessa estratégia.
A pesquisa Genial/Quaest com melhora do Bolsonaro (agora no geral era Lula 44 x 31 Bolsonaro) tem que ser analisada pelo viés do Auxílio Brasil sim, mas é preciso enxergar essa melhora do Bolsonaro sob um outro viés: ela veio exclusivamente do público evangelico. É esse povo que está sendo bombardeado por propaganda bolsonarista. 48 a 29 pra ele.
Se você for ver, a ascensão do Bolsonaro entre os evangélicos explica tudo: a queda geral da rejeição, a percepção da economia (parte da propaganda bolsonarista nesse público tem a ver com isso), a melhora entre quem recebe Auxílio Brasil (tem MUITO evangélico aí). Por mais que as coisas estejam dentro da margem de erro, é necessário frisar mais uma vez a urgência de travar uma batalha real por esse público. E uma batalha sem pieguices, ancorada no realismo, que combata os discursos do Bolsonaro nessa eleição mas estruture a atuação depois.
Em fevereiro desse ano Lula estava nominalmente à frente do Bolsonaro entre evangélicos (35 x 34). Hoje, Bolsonaro acumula quase 20 pontos de frente (48 x 29). O fenômeno segue ignorado. A diferença é que em 2018 o público evangélico decidiu a eleição. Em 2022, por conta da rejeição a Bolsonaro, talvez não seja uma força suficiente para isso.
A verdade é que esse é literalmente o único gráfico que precisa ser analisado na Pesquisa Genial/Quaest, porque explica todos os outros. Inclusive para os meses anteriores. Esse é o movimento decisivo pra entender a eleição de 2022. Já foi o movimento decisivo em 2018, inclusive.

Ainda que entre católicos Bolsonaro esteja um pouco inflado (nos sem religião a preferência por ele é menor), dá um bom grupo de controle, justamente pelos muito “não praticantes”. Na sociedade “não evangélica”, a tônica é essa: Lula tem metade dos votos e Bolsonaro tem cerca de um quarto dos votos totais.
O gráfico dos votos dados pelos católicos inclusive percebe melhor que o dos evangélicos o aumento da preferência por Bolsonaro em abril, quando Sergio Moro saiu da disputa e a grande maioria dos votos do ex-juiz foram pra Bolsonaro.
O que é totalmente destoante? O gráfico evangélico.
A variação do gráfico evangélico coincide com a campanha de pânico moral que Bolsonaro está fazendo nesse público. O marco inicial dessa campanha foi o Lollapalooza, no final de março, quando artistas se posicionaram em massa contra o bolsonarismo (eu me refiro a isso no texto linkado no primeiro parágrafo). Bolsonaro usou aquilo como mote para recuperar votos em um público que não estava muito feliz com ele.
O primeiro passo foi o de vender que esses artistas eram imorais, e, em contraposição, que Bolsonaro era o arauto da moralidade que combateria esses artistas. Em um contexto em que as igrejas tem uma visão maniqueísta da sociedade (igreja x “mundo”), essa fala toca fundo no evangélico médio. Para piorar, essa fala ainda conta com um argumento de autoridade, referendada por grandes pastores e líderes. Nesse período, Bolsonaro participou de eventos para reafirmar isso, como a maior convenção das Assembleias de Deus.
Desde então, Bolsonaro tem ido em cultos praticamente toda semana. O material produzido é feito especificamente pra esse público. O próprio mote da campanha (aquela coisa meio “o bem contra o mal”) tem como alvo esse público em específico.
E mais: eles usam os símbolos e a “cultura de gueto” das igrejas. Coisas que só quem é de dentro sabe. Por isso que a Michelle se envolveu na campanha: ela é a pessoa que fala aos evangélicos com a linguagem dos evangélicos. Faz roda de oração, chama pastores no Planalto e tal. Isso tem um propósito específico: na impossibilidade de vender Bolsonaro como “homem de Deus”, a cúpula do bolsonarismo quer vender Michelle como “a mulher de Deus que vai converter o marido pecador”. É uma situação com a qual muitas mulheres evangélicas se identificam.
Inclusive isso explica a percepção do evangélico bolsonarista quanto ao futuro do país: a Michelle fala que o “Brasil precisa de cura”, reduzindo os problemas do país a um problema espiritual que pode ser resolvido com… moralismo. Com essa “cura”, realizada por esse “novo” Bolsonaro, convertido pela Michelle, o Brasil finalmente vai encontrar a paz e a prosperidade (muita prosperidade, exatamente aquela prosperidade que os pastores vendem em seus púlpitos)
Nesse cenário, Lula e o PT são obviamente os grandes inimigos morais do país, apoiados por toda uma rede que representa o “mundo”. Com essa mentalidade, eles usam coisas estilo o Manifesto pela Democracia como “provas” de que o “mundo” e o “sistema” está contra Bolsonaro. Com esse discurso, eles conseguem consolidar, no público evangélico, a ideia de que “Bolsonaro é o escolhido de Deus para curar o país”. Ainda que isso seja só uma estratégia de marketing político, ela é largamente usada por pastores. Mais do que isso: ela funciona, e a sequência de pesquisas mostra isso muito bem.
Essa estratégia é tão forte que faz o evangélico ignorar seu estado de penúria atual em nome da promessa de um país “curado” com Bolsonaro. Isso se reflete até na percepção sobre economia. E existe uma propaganda forte nesses grupos de que “o Brasil está decolando com Bolsonaro”. E mais que isso: só não decolou mais porque 1) Está nesse processo de cura em que a imoralidade deve ser extirpada (e esse discurso explica o extremismo bolsonarista, incluindo atentados) e 2) Os inimigos não deixam Bolsonaro fazer o que Deus mandou ele fazer (o que justifica, na visão deles, as reclamações de Bolsonaro “eu não consigo governar”)
Isso é tão sério que nesse momento igrejas alinhadas com Bolsonaro estão organizando grupos de oração pelo Presidente, pra que “Deus faça um milagre” e ajude “o escolhido de Deus a vencer o mal”.
Praticamente toda a subida do Bolsonaro nos últimos meses pode ser explicada por esse fenômeno. O resto é meramente tangencial.
O lado bom é que em 2018 esse fenômeno ocorreu essencialmente na última semana antes do primeiro turno. O fato dele estar ocorrendo agora significa que ele não ocorrerá lá.
Além disso, mesmo com todo esse fenômeno, Lula segue à frente, com metade dos votos válidos.
No entanto, fica o alerta: o público evangélico precisa ser tratado de outra forma. É preciso disputar internamente esse público, e não dando pitaco de fora. Incluir a esquerda nos rituais caros ao povo evangélico, e não, não estou falando das já tradicionais participações em cultos com aquela cara blasé tradicional dos políticos de esquerda que entram em igrejas.
Os evangélicos só não devem decidir a eleição esse ano porque o governo Bolsonaro foi horrível. Mas serão fator decisivo em 2026, se nada mudar.