Eu achava que o Ciro tinha um plano de governo bom, estruturado, com visão de país. Daí eu li o livro dele e mudei radicalmente de opinião. Aquilo é um catado de platitudes e de ações isoladas tacadas juntas num livro, não tem qualquer cara de um projeto estruturado e integrado.
Por isso mesmo, resolvi colocar minhas impressões aqui.
Quais São As Questões do Livro?
É preciso dizer: algumas ideias que estão no livro são boas. Outras nem tanto, mas falta muito pra que aquilo possa ser visto como um todo integrado com algum sentido. Sem contar as premissas do plano dele, essa coisa de crescer a qualquer custo que deu errado exatamente em todos os momentos da história do Brasil.
Para piorar, ele lança mão de conceitos como nacional desenvolvimentismo pra batizar esse monte de ações dele que sozinhas não vão induzir a nada, vão dar errado e vão reabilitar o discurso ultraliberal que está destruindo o país. Nem inovador esse discurso do Ciro é.
1) Visão varguista da História do Brasil. O Ciro passa basicamente metade do livro (três de seis capítulos) tentando recontar a história econômica do Brasil sob sua ótica. Na ótica do Ciro, é como se não houvesse Brasil antes de 1930, como se isso fosse um fazendão. Isso ignora, por exemplo, o desenvolvimento industrial de São Paulo no início do século XX, que inclusive culminou em um movimento sindical anarquista fortalecido, formado principalmente por imigrantes italianos.
Para piorar, Ciro coloca o nacional-desenvolvimentismo via substituição de importações como o grande motor desse desenvolvimento, especialmente sob Vargas, mas também no pós Vargas e no período da ditadura até 1980. E disse que esse modelo se preocupava com a população. Críticas como a de Samuel Pessoa (sim eu sei) mostram que os dados históricos de economia dizem o contrário: o país já tinha uma trajetória de crescimento econômico pré 1930 e o crescimento do nacional desenvolvimentismo, pouca coisa maior, não se reverteu em ganhos pra população.
Tanto não se reverteu em ganhos para a população que os índices de investimento em educação continuaram baixíssimos ao final de 30 anos de governo Vargas + ciclo 1946/1964: menos de 2% do PIB, o que ajuda a explicar porque o Brasil não fez a transição que outros países fizeram:

Outras análises, como “Brasília indutora do desenvolvimento do Centro Oeste” (na defesa que ele fez do JK) e “A história de sucesso da indústria automobilística no Brasil” são só equivocadas mesmo. O Centro Oeste se desenvolveu por causa das tecnologias que permitiram o agronegócio e também pelo forte incentivo dos governos da ditadura em promover uma “migração para o oeste”, e, olhando em perspectiva, isso trouxe riqueza, mas também trouxe efeitos catastróficos aos ecossistemas de Cerrado, Panatanal e Amazônia. No mínimo eu esperava a percepção de que esse desenvolvimento deveria ter sido feito de outra forma, mas não encontrei isso no livro.
Quanto à indústria automobilística, é difícil qualificar como “sucesso” uma indústria fortemente subsidiada até hoje por renúncias fiscais que literalmente impediu o desenvolvimento de uma malha ferroviária mais robusta no Brasil e ainda assim só opera via multinacionais, o que leva o país a ficar vulnerável a casos como o da Ford, que simplemente saiu do país quando viu que o Brasil não era mais um país interessante para investir. A China e a Coréia do Sul, por exemplo, conseguiram construir em coisa de 30 anos muito mais que o Brasil em 60. E eu falo isso com tristeza, porque sou do ABC Paulista e sei como o desenvolvimento da indústria automobilística foi uma oportunidade desperdiçada para o país.
A crítica do Ciro ao PSDB me parece a mais acertada, mas também força um pouco a barra e superestima a sua importância como ministro da Economia por três meses (e isso após a implantação do Real e em período eleitoral). De fato o governo FHC cometeu erros de saída no Plano Real. Os principais foram não acompanhar o Plano Real de um aumento da carga tributária pra dar conta da questão fiscal que viria e tentar resolver o buraco nas contas públicas à partir de 1995 acelerando privatizações. Nisso eu concordo com o Ciro. Mas a tentativa de dizer que o artífice do Plano Real foi o Itamar Franco e não o FHC só me soa desonesta mesmo, uma tentativa de forçar narrativas. E eu falo isso discordando de inúmeros pontos da política dos dois governos FHC e entendendo que sim, ele fez muita barbeiragem. Inclusive para garantir sua reeleição em 1998.
Nessa parte ele começa a falar do rentismo dos bancos, que é um discurso de senso comum. Tão de senso comum que parece que eu estou lidando o tempo todo com uma sequência de tweets feitos pra hitar. E não que eu discorde, mas o Ciro nesse tema só arranha a superfície mesmo.
Daí veio a parte mais surpreendente: a que ele, em larga medida, concorda com as políticas econômicas da Dilma. A Dilma é honestíssima, tem uma dignidade impressionante, mas a política econômica, especialmente pós 2013, foi seu calcanhar de Aquiles. E permitiu todas as críticas que foram feitas a ela, que desembocaram no processo de impeachment.
Por exemplo: o Ciro fala que não existia pressão inflacionária em 2013, quando o governo já estava controlando artificialmente preços. A estrutura de financiamento dos grandes investimentos em infraestrutura começou a ratear. Ciro meio que ignora tudo isso num discurso simplista. E isso não quer dizer que a Lava Jato não tenha destruído a economia do país, especialmente na área do investimento em infraestrutura. Não quer dizer que o impeachment da Dilma tenha sido justo.
Daí ele começa a falar de inserção do Brasil na economia internacional. De novo, o varguismo explode aqui. Em algum momento, é capaz da gente perceber até uma defesa ao II PND do Geisel ali como exemplo de que “militares garantiram o desenvolvimento industrial por uma década”.
Nesse ponto, o Ciro começa a defender a criação de agências de desenvolvimento econômico (no que eu concordo) mas também começa a defender políticas protecionistas, porque a abertura de mercado conduz à desindustrialização. O que tem precedente histórico no Brasil mas não está correto não. No Brasil, a abertura conduziu à desindustrialização porque foi feita pelo governo Collor da pior forma possível: de sopetão, sem que o mercado interno pudesse se preparar e sem que houvesse um processo gradual ou incentivos à melhoria da produtividade interna. Não é um padrão.
Aí, depois de tudo isso, Ciro começa a apresentar suas propostas. Como eu disse lá no começo, é um catadão de vários temas, sem grande coesão. Existem coisas que eu concordo ali (reforma tributária com maior progressividade, por exemplo), mas tem umas ali que são inaplicáveis para o contexto brasileiro atual.
A visão sobre o funcionalismo, por exemplo, é superficial. Ciro acha que o gasto com funcionalismo público precisa aumentar. O problema do funcionalismo é mais diminuir as enormes desigualdades internas do que propriamente aumentar os gastos. Hoje a estrutura de gastos do funcionalismo público vive uma desigualdade gritante multidimensional. Há desigualdade entre os entes federativos (União, Estados e Municípios), entre poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e uma enorme desigualdade interna aos poderes. Ciro não fala sobre isso como deveria. A solução genérica dele só vai aumentar essas desigualdades internas (afinal, ganha mais quem é capaz de fazer mais lobby por isso, no modelo de hoje) e aumentar a percepção de que funcionário público é marajá, sem melhorar o serviço público.
Aqui, Ciro começa a falar de política industrial. Parece que ele fez uma leitura bem simplista do texto da Mariana Mazzucato, de onde ele tira a necessidade do estado ser indutor do desenvolvimento. O que ele propõe não é nada de novo: proteção setorial a indústrias “importantes”, através de subsídios. Ele enumera setores importantes, fala de inovação, integração entre universidades e setor produtivo (com isso eu concordo), mas, de novo, não vai além disso. O que a política dele tem de realmente diferente da política de campeãs nacionais do Lula? Nada.
Lula, inclusive, disse que não vai repetir essa política. Sua equipe de economistas está preparando mecanismos de financiamento para que os bancos públicos sirvam como indutores da economia não mais através do financiamento de grandes indústrias, mas do financiamento de pequenas e médias empresas, especialmente em áreas ligadas à inovação.
Sobre educação, eu concordo com o Ciro. Inclusive acho que deveríamos olhar mais pro exemplo do Ceará nesse sentido, que realmente é muito positivo e destoa do cenário catastrófico do restante do país, especialmente na educação básica. Não tenho ressalvas, o PDT do Ceará realmente é autoridade nesse tema.
Sobre agricultura familiar, ele acerta o problema, mas erra na solução. A solução pra agricultura familiar é a organização de pequenos produtores e o governo garantindo preços. Mecanismos de aumento da produtividade coletiva e de compras públicas sustentáveis para além das leis. Aqui boas políticas públicas de fomento são importantes. Sobre isso, eu recomendo o sistema de compras públicas de orgânicos da Secretaria de Educação do Paraná, que tem como um dos seus objetivos justamente aumentar a produtividade dos pequenos produtores e cooperativas do estado.
Sobre investimentos no “complexo tecnológico e industrial de defesa”, eu não poderia discordar mais. Os últimos anos mostraram que o tema deve, antes de tudo, ser desmilitarizado, e esse tipo de investimento deve ser feito de outra forma. Fortalecer militares é um erro crasso, e a História mostra que esse erro costuma se voltar contra o próprio país em poucos anos.
Na saúde eu concordo com o Ciro que há subfinanciamento. Mas também há pouca eficiência no gasto público e perdas nos mecanismos de controle e gestão provocadas, por exemplo, pelas políticas de terceirização de equipamentos de saúde sem a devida gestão de qualidade nos contratos. Questões como a judicialização de medicamentos (em geral feitas porque não existe capacidade institucional de atendimento das demandas nas Secretarias de Saúde) também são sorvedouros de recursos públicos, bem como os incentivos recentes à saúde suplementar, feitos à partir da gestão do Ricardo Barros.
Em outros temas não tem nada que salte aos olhos. Parece muito aqueles discursos “sabemos o que fazer mas falta vontade política”. Fica aqui registrada a minha decepção com a questão ambiental, que ficou parecendo algo feito só pra cumprir tabela no livro. Não é um problema só do Ciro, mas irrita muito quando a questão ambiental fica parecendo só algo relacionado à “mudança de matriz energética”. Não se fala de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas, nem de políticas relacionadas a desastres, nem de políticas de CDR (CDR é a sigla para Carbon Dioxide Removal, o conjunto de políticas que tem como objetivo fazer com que o saldo de CO2 na atmosfera seja negativo. Isso inclui moratória de desmatamento e queimadas, recuperação de áreas degradadas, reflorestamento e inclusive de captura de CO2)
Sobre segurança, outro tema em que a análise é genérica e acaba muito afeita a conspirações. A proposta do Ciro meio que ignorou os ganhos de capacidade na área provocados pela implantação do Sistema Único de Segurança Pública, aprovado ainda no governo Temer. Talvez seja o principal legado federal para o tema, predominantemente estadual.
Daí o Ciro começa a falar de reformas estruturantes. Pra mim foi a pior parte do livro, deve ser meu trauma com as reformas dos últimos anos. Sobre o teto de gastos, está claro que Bolsonaro tornou ela uma piada nesses dois anos pós livro, então a análise dele se tornou uma obviedade.
Eu realmente não tenho paciência para outra reforma política nos moldes que o Ciro propõe, apesar de entender que hoje vivemos uma espécie de parlamentarismo ad hoc, em que o legislativo sequestra o Executivo e suas pautas para benefício próprio, e isso nunca esteve tão claro quanto nesses tempos de Orçamento Secreto. Sobre Reforma Trabalhista, a abordagem pareceu olhar mais para o passado que para o futuro.
O que me preocupou com o Ciro é que em alguns momentos ele se mostrou incomodado com os limites que as instituições impõem ao Presidente da República. Isso é um sintoma inequívoco de um fundo autoritário. Mas é obvio que, na comparação com o Bolsonaro, Ciro parece um gênio.
No capítulo final, Ciro fala sobre direita e esquerda, se diz mais alinhado com a esquerda e fala sobre neoliberalismo, imperialismo, estado de bem estar social para chegar a uma defesa do trabalhismo. Aí ele volta no Vargas, cita Brizola, tudo de acordo com a cartilha do PDT. Aqui eu nem questiono as crenças dele nem nada do tipo, mas não tem mais nada em relação a projeto pro Brasil que não tenha sido falado antes. Mas aqui ele deliberadamente coloca trabalhismo como sinônimo de social-democracia e isso me deixa muito desconfortável.
A maior parte da nossa social-democracia (SUS, programas de trasnferência de renda, sistematização dos investimentos em educação) são mais fruto da Constituição de 1988, não do nacional-desenvolvimento, e esse pra mim é um dos erros mais sérios do livro do Ciro.
A História do Brasil parece moldada para se acomodar às ideias do Ciro, e não o contrário. Isso incomoda bastante, especialmente quando Ciro e os ciristas começam a assumir uma postura tão intransigente na defesa dessa visão de mundo, não admitindo discordâncias. É por isso tudo que acho que Ciro não tem uma visão de futuro do Brasil. Ele pleiteia uma volta ao passado, com alguns incrementos pontuais impostos pela contemporaneidade. Para muita gente, isso soa convincente. Para mim, soa como um castelo de cartas.