Como Chegamos ao “Terrivelmente Evangélico”?

Satisfeitíssimo', diz ex-ministro André Mendonça sobre seu topete | VEJA
André Mendonça

Nesse dia 01 de dezembro, o Senado está sabatinando o provável futuro Ministro do STF André Mendonça, o “terrivelmente evangélico” indicado pelo Bolsonaro. Ele talvez seja a expressão máxima de um projeto teocrático de poder, levado a cabo, na medida do possível, pelo próprio presidente Bolsonaro.

UPDATE: o nome de André Mendonça foi aprovado para o STF por 47 votos a 32. Sua primeira frase ao ser eleito foi “é um passo para o homem, mas, na história dos evangélicos do Brasil, é um salto”

O Começo da História

Os evangélicos tem um projeto de poder no Brasil, e ele não vem de hoje. Para ser honesto, esse projeto de poder não começou com as igrejas neopentecostais, como o senso comum faz parecer. É um projeto muito anterior, capitaneado por igrejas tradicionais, que sempre tiveram profundo envolvimento com as elites do país. Para se ter uma ideia da antiguidade desse movimento: uma das primeiras bases da Igreja Presbiteriana do Brasil, ainda no século XIX, foi a cidade de Itu, onde a igreja fortaleceu o movimento republicano na época. Uma das exigências políticas era a equiparação entre das religiões através do estabelecimento de um estado laico, o que de fato ocorreu na Constituição de 1891.

A própria Igreja Presbiteriana tem um forte histórico de envolvimento em organizações como a maçonaria, por exemplo. Para historiadores como Antonio Gouveia Mendonça e Hans-Jürgen Prien, esse foi um dos motivos para o cisma presbiteriano de 1903-1905, que separou as igrejas presbiterianas do país em dois ramos: a Igreja Presbiteriana do Brasil, favorável à participação de seus oficiais (pastores e presbíteros) na maçonaria, e a Igreja Presbiteriana Independente, que proibia maçons em seu oficialato. Por ironia, em 2006 o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil declarou a maçonaria como “atividade incompatível com a fé cristã”, o que foi provavelmente o que houve de mais próximo a uma rinha de idosos na igreja além, é claro, das discussões locais estilo “O uso de instrumentos musicais como bateria e guitarra na igreja é um atentado à ‘ordem e decência'”.

Paralelamente a isso, as igrejas pentecostais, de base mais popular, surgiam e arregimentavam um enorme número de pessoas país afora, especialmente nas classes mais populares. Já nos idos de 1910, a Assembléia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil se estabeleciam no país. Essas igrejas tinham características distintas: o foco no ascetismo e a busca pela “experiência espiritual” talvez sejam as principais características dessas igrejas. Essas características esvaziaram o papel do pastor como um pregador erudito, estabelecendo a pregação leiga como mecanismo do “falar de Deus” nessas igrejas. Isso fez com que essas igrejas não investissem mais em formação sistemática de seus líderes em seminários de Teologia uniformizados, como ocorria com as igrejas tradicionais. Na Congregação Cristã do Brasil esse modelo se mantém até hoje: o estudo sistemático da Bíblia não é incentivado e as pregações nos cultos geralmente são feitas pelo “ancião com quem Deus falar naquele momento”. Daí a pessoa abre a Bíblia, lê, dá a sua interpretação literal e superficial e todos voltam para as suas casas tendo absorvido aquilo.

Esse modelo ganhou um novo ingrediente na década de 50, com a segunda onda do pentecostalismo brasileiro (também chamada de deuteropentecostalismo): igrejas como a Quadrangular, a Brasil Para Cristo e a Deus é Amor surgiram inserindo duas novas ideias no imaginário evangélico brasileiro: a cura divina e o proselitismo sistemático. A própria Igreja Quadrangular surgiu, na década de 50, de uma grande cruzada evangelística, em que a igreja basicamente ia de cidade em cidade em tendas para fazer campanhas de evangelização em massa. Desse movimento, começaram a surgir as comunidades locais da igreja pelo interior do país.

A Ditadura Militar

Os pentecostais sempre foram característicos pelo pouco envolvimento em política. O ascetismo deles fazia com que os irmãos de fé pentecostais vivessem de forma bastante isolada do “mundo exterior”, afinal o foco deles estava no “celeste porvir”, na vida eterna que viria após a morte ou após o arrebatamento. Por outro lado, os protestantes tradicionais não tinham tanta ressalva em participar da política. isso tanto era comum que um dos generais a presidir o país durante a ditadura, Ernesto Geisel, era frequentador da Igreja Luterana, e isso não mudou em nada a sua disposição em perseguir opositores ou em ordenar execuções pessoalmente.

No entanto, algumas igrejas, especialmente e presbiteriana, foram além, com a perseguição sistemática aos opositores das ditadura que estavam dentro das próprias comunidades. O espaço da igreja deixou de ser um local de compartilhamento entre irmãos e passou a ser um local de perseguição, em que oficiais e membros não se furtavam a denunciar uns aos outros, mesmo sabendo que, em muitas oportunidades, a consequência dessas denúncias seria prisão, tortura e morte. O sentimento anticomunista dominava a igreja, e muitos membros julgavam adequada essa postura. A igreja protestante histórica pode se envergonhar dessa história, mas ela aconteceu de fato, e, mais uma vez, com o protagonismo da Igreja Presbiteriana do Brasil, um dos espaços em que essas perseguições se deram de forma mais mal disfarçada. Pastores proeminentes que se preocupavam com questões sociais, como Lemuel Cunha do Nascimento, Rubem Alves e Joaquim Beato, tinham suas nomeações cassadas pelo Supremo Concílio da Igreja, que estava alinhado com os militares de Brasília. Nessa época, a lógica da ditadura, da supressão de manifestações, atingia não apenas a arena política: atingia as igrejas também.

Além de divisões internas (No início da década de 70 surgiu a Igreja Presbiteriana Renovada), esse tipo de alinhamento também foi fazendo com que as igrejas protestantes históricas fossem perdendo espaço na demografia da religião evangélica brasileira. Nessa época, as igrejas pentecostais cresciam, mas também surgia um novo tipo de igreja que balançaria a estrutura religiosa brasileira nos anos seguintes: a igreja neopentecostal, ou, em outras palavras, a “terceira onda do neopentecostalismo”.

O Neopentecostalismo e o Poder

É comum as pessoas colocarem a culpa de todos os problemas das igrejas evangélicas brasileiras nas igrejas neopentecostais. Especialmente as pessoas das igrejas protestantes históricas, que acusam as igrejas neopentecostais de “deturparem o evangelho”. Isso é tão sério que em 2010 o Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil aprovou uma resolução proibindo a Igreja Presbiteriana de estabelecer qualquer contato com a Igreja Universal do Reino de Deus e com a Igreja Mundial do Poder de Deus, afinal, de acordo com os presbiterianos, essas igrejas eram “seitas”.

Só que isso não é verdade. Por alguns motivos importantes:

a) As mudanças na igreja brasileira sempre foram incrementais: quem pesquisa a história da igreja evangélica brasileira sabe muito bem que as separações em “ondas” são muito mais um recurso metodológico do que propriamente uma representação fiel da realidade. Cada nova onda pega todo aquele cultural prévio e insere alguns elementos. Isso aconteceu com a chegada do pentecostalismo, aconteceu com o deuteropentecostalismo e também aconteceu com o neopetecostalismo. O que era novidade de fato no neopentecostalismo? A doutrina da palavra da fé e na teologia do domínio.

A doutrina da palavra da fé é a doutrina que estabelece que as palavras tem poder. Tem bastante a ver com essa coisa bem “pensamento positivo” que vemos em muito coach motivacional, mas com uma diferença importante: aqui a abordagem é “espiritual”, o que quer dizer que as suas palavras tanto podem liberar o “agir de Deus” quanto “dar legalidade a Satanás”. É a lógica da profecia que se repete tantas vezes que se torna autorrealizável sendo aplicada para todas as coisas. Aqui no Brasil, conhecemos essa teologia pelo seu nome popular: teologia da prosperidade.

A teologia do domínio é uma teologia bastante contestável que tem como premissa uma batalha eterna entre “as forças do bem – Deus” e “as forças do mal – Satanás” por todos os espaços. Apesar de ter basicamente nenhum embasamento no texto bíblico, é uma teologia que cativa muitas pessoas, afinal o crente se sente como parte de uma grande batalha entre o bem e o mal, agindo ativamente para Deus vença Satanás como se todos estivéssemos vivendo um grande RPG live action cósmico, ainda que essa vitória seja no banheiro da sua casa, onde seu filho deixou de ver vídeo pornográfico e agora coloca louvor no Spotify enquanto toma banho.

A grande questão é que essas duas premissas do neopentecostalismo só tiveram boa recepção entre os evangélicos por conta de todo o caldo de cultura formado antes. A perseguição ao inimigo nas igrejas históricas, a lógica do proselitismo, a ideia de cura divina que dava aos pregadores uma aura de super heróis, ou de que a oração abre um portal para o sobrenatural, tudo já estava ali. As igrejas neopentecostais só foram possíveis por causa da popularização de um monte de ideias prévias dentro das igrejas.

b) Hoje em dia quase todo evangélico brasileiro é neopentecostal: eu não estou falando de demografia evangélica. embora as igrejas neopentecostais sejam importantes, a maior igreja brasileira em número de membros ainda é a Assembléia de Deus. Mas, embora a Assembléia de Deus seja pentecostal, é possível dizer tranquilamente que os membros da Assembleia de Deus (e das demais igrejas) são sim neopentecostais, ainda que não saibam disso.

Por que eles são neopetecostais? Porque o neopentecostalismo trouxe uma pasteurização da cultura evangélica brasileira. Eles conseguiram formar impérios de mídia, controlando TVs e rádios. E, por mais que a pregação na igreja seja diferente, a grande maioria dos evangélicos do país tem as mesmas referências, ouve as mesmas rádios, assiste os mesmos canais de TV, ouve os mesmos louvores, assiste os mesmos pregadores no YouTube. E todo esse aparato de mídia é essencialmente neopentecostal.

Com 30 anos de exposição a esse aparato de mídia, é bastante óbvio que a mentalidade do evangélico brasileiro em geral foi neopentecostalizada também, nesse sentido de que a maioria dos evangélicos, mesmo de denominações históricas, acredita em conceitos derivados da teologia da prosperidade e da teologia do domínio. E isso nos leva ao bolsonarismo, mas também ao André Mendonça.

André Mendonça, o Terrivelmente Evangélico

Existem várias chaves de interpretação possíveis para a adesão dos evangélicos ao bolsonarismo. Inclusive, para quem quiser entender um pouco dessa dinâmica, recomendo esse texto meu sobre o tema. Mas o nome do André Mendonça vai além disso.

A ideia de dominação dos espaços da Teologia do Domínio fez com que a igreja evangélica, cada vez mais neopentecostalizada, mudasse fortemente de opinião em relação a ocupação dos espaços públicos. Enquanto nas igrejas históricas falas de Abraham Kuyper (teólogo e ex-primeiro ministro holandês) eram recuperadas para justificar esse novo intervencionismo, nas igrejas pentecostais e neopentecostais a teologia do domínio era usada sem pudores. Isso trouxe uma abordagem bem sui generis para os evangélicos em sua política de luta pelo poder: a da tomada dos espaços. O objetivo do evangélico, desde os anos 90, passou a ser a inserção institucional em todos os espaços de poder do país. Havia uma crença pouco disfarçada de que o evangélico poderia “ser luz” naquele espaço, transformando-o de forma sobrenatural. E essa política de inserção institucional foi essencial para a agregação de políticos evangélicos em uma frente parlamentar evangélica. Agindo em grupo, eles finalmente poderiam ser vistos pela sociedade.

É bastante óbvio que esse movimento se estendeu a todas as instituições do país. Os evangélicos entenderem que precisavam “iluminar” os tribunais, o MP, as prefeituras, os governos estaduais, o governo federal. Coisas que pareciam irrelevantes para grande parte da sociedade, como a nomeação do Pastor Marcos Pereira pro Ministério da Pesca por Dilma Rousseff, tinham grande valia para esses grupos, porque é como se Deus estivesse entrando em mais e mais instituições, tirando locais antes inacessíveis das mãos do diabo. E é aí que entra André Mendonça.

Para o evangélico que já vê em Bolsonaro o seu representante (muitos não vêem, e é importante ressaltar isso), André Mendonça é a bala de prata evangélica na última instituição que ainda está “tomada pelo diabo”, na visão deles. Para o evangélico bolsonarista, o STF é uma espécie de “última Jezebel”, um lugar de vergonha dominado pelo inimigo, e eles realmente acham que a mera presença de alguém “terrivelmente evangélico” por lá é capaz de “iluminar a instituição”, trazendo à tona “tudo aquilo que estava oculto”. E nem precisa fazer nada de relevante. Basta estar lá, carregando a pecha de evangélico para todos os lugares.

Além disso, como presbiteriano do Brasil, André Mendonça é alinhadíssimo com a lógica presbiteriana de perseguir inimigos e dar suporte a governos autoritários. Não é à toa que ele é um dos mais fiéis escudeiros do bolsonarismo. Tão fiel que coordenou pessoalmente a perseguição a opositores do bolsonarismo enquanto era Ministro da Justiça.

É por isso que hoje André Mendonça angariou apoio dos líderes evangélicos alinhados ao bolsonarismo por todo o Brasil. Todos esses líderes estão provando diariamente a tese da neopentecostalização do protestantismo brasileiro. A Igreja Presbiteriana do Brasil, que também tem o Ministro da Educação Milton Ribeiro, adoraria ver André Mendonça por 27 anos no STF. Os Batistas, que tem em Damares Alves a principal representante no governo, também querem André Mendonça no STF. Silas Malafaia e outros líderes neopentecostais cederam oito jatinhos para senadores não perderem a votação pós sabatina, e existe no momento uma corrente de oração do lado de fora do Senado para “abençoar o André Mendonça” e “guiar os Senadores”.

Enquanto isso, as igrejas alinhadas com o bolsonarismo perseguem pastores que não se alinham. Ontem mesmo, o Pastor Ed René Kivitz, que comanda há três décadas a Igreja Batista da Água Branca, foi expulso da Ordem dos Pastores Batistas por perseguição política, devidamente disfarçada de discussão teológica. Porque esse bando de velhos covardes se escondem atrás das instituições para não serem julgados por suas posições inaceitáveis:

Em um cenário de tamanha miséria moral, só resta retomar a fala de outro evangélico picareta, que teve papel essencial para chegarmos aqui:

“Que Deus tenha misericórdia da nossa nação”

6 comentários sobre “Como Chegamos ao “Terrivelmente Evangélico”?

  1. Como membro da Presbiteriana do Brasil fico muito triste e sem esperança com tudo isso que vem ocorrendo.
    Acredito que ao menos minha comunidade em geral não compactue com o governo (embora muitos membros votaram no Jair pra evitar o “comunismo”, hoje se dizem arrependidos)
    Inclusive um cara abandonou a comunidade e foi pra batista pq nossa comunidade era “petista” demais.
    Que Deus tenha piedade de nossa nação.

    Abraços Leo, ótimo texto.

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  2. Ótimo texto, sou da IPI, estudei no Mackenzie e tenho que dizer com todas as letras q a IPB é uma das igrejas mais complicadas para se lidar, a influencia dos EUA é absurda, e posso dizer que o nível de perseguição dentro da igreja é absurda, eu vi professores super liberais sempre trucidados pelos conservadores que sempre foram os donos do poder dentro dessas igrejas. Acredito que o discurso de culpas os neopentecostais nada mais é que um salvo conduto para essas de tradição reformada fazerem o que quiserem a sombra de uma certa “higienização” da coisa. Ótimo texto novamente e apontamentos extremamente corretos.

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  3. Não ficou claro se a intenção era falar mal dos evangélicos ou do ministro…. então todo caso, conseguiu os dois. Mas basta uma rápida pesquisa pra entender o porquê…. pode até tentar opinar de forma “isenta” sobre o ministro, uma vez que estudou pra isso… mas vir falar de algo que “ouviu falar”, sem conhecimento de causa, e de uma forma tão boa, que fica assim: um texto pobre, birrento, partidário, tentando a todo custo (com eventos isolados) desmerecer os outros.

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    • Não ficou claro se a intenção era falar mal dos evangélicos ou do ministro…. então todo caso, conseguiu os dois. Mas basta uma rápida pesquisa pra entender o porquê…. pode até tentar opinar de forma “isenta” sobre o ministro, uma vez que estudou pra isso… mas vir falar de algo que “ouviu falar”, sem conhecimento de causa, e de uma forma tão boba, que fica assim: um texto pobre, birrento, partidário, tentando a todo custo (com eventos isolados) desmerecer os outros.

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