A Base Social do Bolsonarismo é a Parcela da Classe Média que Odeia Pobre (e não está conseguindo mais esconder isso)

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Wagner Moura Comendo Marmita com Acarajé Após a Exibição do Filme Marighella

No último final de semana, um assunto que deveria ser trivial expôs de maneira crua a visão dos bolsonaristas sobre o restante da sociedade. Waner Moura foi “flagrado” comendo uma marmita da cozinha solidária do MTST. Um dos itens da marmita era um simplório aracajé, prato típico baiano que tem como um de seus componentes o camarão. Camarão pequeno, cascudo, seco, coisa trivial na culinária brasileira. Foi o suficiente para uma grande catarse reacionária coletiva: o “esquerdista comendo camarão” se tornou o novo “socialista de IPhone”. E essa reação mostra mais sobre a direita bolsonarista do que propriamente sobre a ocupação do MTST ou a refeição do Wagner Moura.

1) Bolsonarista não suporta ver o pobre comendo bem: ver bolsonaristas acusando gente da ocupação do MTST de “incoerência” por comer camarão tem uma mensagem de fundo simples, e ela é “pobre não pode comer bem, tem que se alimentar de osso e resto de comida mesmo”. E Bolsonaro vem fazendo todo o possível para isso. Inflacionou os alimentos, inflacionou os combustíveis e viu seus filhos espalharem mentiras quando os dados começaram a mostrar um recrudescimento da fome no país, seja colocando a culpa em terceiros (a culpa da fome é dos governadores que fizeram lockdown), seja fazendo piada com o assunto mesmo.

2) Bolsonarista não faz a menor ideia do preço das coisas: o camarão usado no acarajé do MTST é claramente um sete barbas médio, o camarão mais comum do mercado. Com casca, o que torna o camarão mais barato. Sabem quanto está o camarão sete barbas seco e medio na Ceagesp? R$ 8 o Kg. Menos que o preço da carne bovina ou suína. Ou seja: o bolsonarista não faz a menor ideia do que está falando, só quer provocar confusão mesmo.

Preços do Peixe no atacado, 12/11/2021

3) O bolsonarista não faz a menor ideia do que é uma doação: as cozinhas do MTST vivem de doações. Se vem doação para acarajé ótimo, sinal de que usam os recursos corretamente. E foi o caso. Então, no fundo, a questão do preço é totalmente irrelevante. Porque o camarão foi DADO pelo restaurante Acarajazz. Sendo mais preciso: foram dadas cento e cinquenta porções de acarajé. Uma foi comida pelo Wagner Moura. Outras marmitas serviram de alimento para o pessoal da ocupação, ou para quem estava na fila. Porque a premissa da cozinha solidária do MTST é essa: combater a insegurança alimentar na prática, oferecendo refeições todos os dias para as pessoas, com o máximo de dignidade possível.

4) Para o Bolsonarista, doação é cabresto: para o bolsonarista, doações não podem ter qualidade. O jeito com que eles lidam com as doações é outro. O que mais acontece quando tem esses projetos que dependem de alimento doado, principalmente em igrejas, é o responsável separar pra si mesmo ou pros amigos aquelas doações que acha “boas demais” pra ir pro público, sem ninguém poder protestar a respeito. Porque o sujeito conservador faz doações com três premissas básicas: criação de dependência, afirmação de superioridade e mitigação de culpa.

A primeira delas é a mais óbvia: quando o bolsonarista doa, ele quer algo de volta. Seja o voto de quem recebeu a doação (sim, eles fazem exatamente o que eles dizem que o Lula fazia com o Bolsa Família), seja a “conversão” da pessoa que recebe a doação. Sabe aquela crítica que eles faziam em relação ao Bolsa Família, dizendo que era preciso “ensinar a pescar”? Hoje, sabemos que eles fazem todo o possível para não ensinar ninguém a pescar. Eles criam e mantém relações de cabresto, inventando soluções impraticáveis para quem está em situação de vulnerabilidade.

A afirmação de superioridade, por sua vez, é o motivo pelo qual o maior volume de doações em igrejas, por exemplo, é de cestas básicas. A cesta básica é a representação do que o rico acha que é o máximo que o pobre merece: nenhum poder de escolha, nada além do básico para a sobrevivência. Um kit pronto em que você não pode colocar ou tirar nada de acordo com a sua conveniência, sempre do “mais barato”, porque quem é pobre não merece nada além disso. Inclusive isso ajuda a explicar o ódio dessa galera pelo Bolsa Família: programas como o Bolsa Família, vinculados com outras políticas públicas e que davam autonomia de gastos para os mais pobres, são o pânico para quem acha que o pobre merece apenas uma cesta básica.

E, finalmente, a mitigação de culpa é o motivo pelo qual o conservador faz caridade. A culpa cristã faz o conservador não ficar parado. Daí ele doa e se sente bem. O problema com isso é que via de regra ele doa os restos, doa o inservível, doa o que não fará falta. E fica inconformado se o pobre não fica feliz com a doação de restos.

Essa mitigação de culpa é tão estúpida que faz, por exemplo, com que as pessoas se sintam felizes por “colocar algo melhorzinho no lixo” já pensando no catador que vai passar logo antes do horário do caminhão de lixo. Sim, há um fundo de felicidade em ver o catador de lixo catando o seu lixo porque tem uns pedaços de plástico ou metal que ele eventualmente pode reaproveitar. O fato de que é inaceitável ter gente dependendo do que as outras pessoas consideram lixo fica em segundo plano.

5) Ser de esquerda não é voto de pobreza: quem faz voto de pobreza não é a esquerda, é o franciscano, e o franciscano só fez esse voto de pobreza na Idade Média em protesto contra a ostentação do clero da época, em contraposição às condições de vida deploráveis da população em geral. Esquerda não é sinônimo de “desapego”, e essa noção inclusive é propaganda capitalista pra defesa daquilo que é a principal característica do capitalismo desde o seu início: a propriedade. Quando as pessoas conceituam esquerda como sinônimo de desapego e frugalidade você legítima a direita como sinônimo de acúmulo e de legitimidade proprietária, justificando a desigualdade pelo mérito característica do atual momento do capitalismo.

A esquerda inclusive precisa trabalhar melhor os mecanismos de acúmulo de dinheiro, trabalhando de forma similar a sua redistribuição. Uma das formas mais eficientes da esquerda prosperar no capitalismo é criando mecanismos eficientes de acúmulo e redistribuição, exatamente como faz o regime chinês através do Estado hoje. Eles são o país que mais criou riqueza no mundo nos últimos trinta anos, e sua estrutura estatal de redistribuição permitiu que essa riqueza criada tirasse absurdas oitocentas e cinquenta milhões de pessoas da linha de pobreza nas últimas décadas.

A diferença entre a esquerda e a direita é essa: a direita atual, com traços fascistas, produz prosperidade e deixa ela na mão de cada vez menos pessoas, produzindo um exército de pobres cada vez mais dependente. A esquerda produz prosperidade e tira milhões de pessoas da linha de pobreza, dando autonomia e liberdade a para essas pessoas

6) Não é só o bolsonarista que odeia o pobre: esse caso revelou o “bolsonarista” de muita gente que se diz contra Bolsonaro, mas no fundo é contrário só na forma, e não no conteúdo. Parte das pessoas que votou no Bolsonaro realmente se arrependeu, pelos mais diversos motivos. Mas outra parte não se arrependeu de verdade: só acha que Bolsonaro queimou o filme da direita liberal sendo esse cara chucro e negacionista que ele é. Essa galera deve votar em peso no Sérgio Moro, o que deve fazer com que o Moro tenha mais votos que o Alckmin ou que o Amoedo na última eleição. Mas, quando essa galera vê o Wagner Moura comendo acarajé, a reação é a mesma de qualquer bolsonarista. O nojo do pobre fica explícito. Essa galera é tudo bolsonarista. As ideias são as mesmas, mas eles não apoiam mais a pessoa Bolsonaro.

7) O Bolsonarismo ainda tem apelo com a parcela da classe média que odeia pobre: camarão só é artigo de luxo pra classe média baba ovo de rico que acha que comer bem é pagar por prato superfaturado no Coco Bambu. Que acha camarão sinônimo de distinção social. Além de não tem noção alguma sobre as questões regionais no Brasil, essa turma destila preconceito em cada fala. É gente que tem nojo de pobre porque tem medo de ser confundido com pobre. Pobreza pra essa galera não é situação econômica, é estigma social. E por esse motivo as pessoas evitam se vestir como “pobre”, falar como “pobre”, frequentar lugares “de pobre”. Daí vem o camarão na ocupação do MTST e destrói todo esse castelo de cartas do preconceito deles, porque o “objeto de desejo” que representa distinção social agora também está “com a esquerda”, com “os pobres”.

Conclusão

No fundo é isso: a elite bolsonarista se realiza vendo o pobre passar fome, revirar lixo, ficar na fila pra pegar osso e resto de comida. Só pega meio mal falar isso em público, mas é exatamente esse o tipo de sociedade que eles idealizam. Eles lucram com a fome, sempre lucraram. Desde a época da indústria da fome no Nordeste, que consistia em arrecadar doações “contra a fome” para repassá-las a supermercados ou para revender, fazendo com que as pessoas continuassem com fome (e, portanto, precisando de doações).

Obrigado MTST, cozinha solidária e Wagner Moura por desnudarem o ódio ao pobre do bolsonarista de forma tão didática. O pânico que essa galera sente ao ver o pessoal da ocupação comendo decentemente ao invés de comer resto de comida fala mais do que qualquer pronunciamento deles. Dá até pra imaginar o Eduardo Bolsonaro com o celular na mão no bar do hotel de Dubai com diária de R$ 45 mil paga via cartão corporativo, espalhando “onde já se viu a esquerda comer camarão?”, enquanto come a espécie mais nobre de lagosta servida no restaurante ostentando o dinheiro dos nossos impostos, em mais um daqueles gastos que o governo Bolsonaro quer manter em sigilo por cem anos.

O bolsonarismo é incoerente desse jeito mesmo.

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2 comentários sobre “A Base Social do Bolsonarismo é a Parcela da Classe Média que Odeia Pobre (e não está conseguindo mais esconder isso)

  1. pqp que artigo super bem feito danado.

    Dissecou nossa sociedade magistralmente.

    Encontrei um errinho de digitação no começo, onde “Um doa itens da marmita”, deveria ser “dos”.
    Nada de mais.

    Parabéns!!!!!

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  2. Pingback: A Base Social do Bolsonarismo é a Parcela da Classe Média que Odeia Pobre (e não está conseguindo mais esconder isso) — Nada Novo no Front | THE DARK SIDE OF THE MOON...

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