Apesar da grande campanha que vem fazendo até o momento, com direito a vitória sobre o Real Madrid, o Sheriff Tiraspol provavelmente não vencerá a Champions League 2021-2022. Nem por isso é possível dizer que a campanha do time é um fracasso. Eles nunca tinham chegado numa fase de grupos de Champions League antes e já foram muito além do que se imaginava deles.
Quando a CPI da Pandemia começou, também não se esperava nada dela. Eu mesmo confesso que era cético em relação aos efeitos da investigação. À medida que as investigações foram avançando e os benefícios ao país foram ficando claros, eu mudei de posição e entendi que é preciso celebrar o papel da CPI em revelar crimes que estavam escondidos até então.
O meu ceticismo não era injustificado. Acompanho política desde a minha adolescência, e não hesito em dizer que talvez estejamos em nossa pior legislatura desde os anos 90, tanto na Câmara quanto no Senado. No Senado, em específico, vemos nomes como o próprio filho do Presidente da República, além de sujeitos como o Romário, o Jorge Kajuru e mais um monte de gente que transita entre a caricatura e o conservadorismo bolsonarista em escala local. Não parecia um ambiente muito propício ao bom andamento de uma CPI.
Além disso, a CPI teve no próprio Jorge Kajuru um de seus proponentes. Com todo o respeito ao Senador, mas é difícil levar a sério de cara uma CPI proposta pelo Jorge Kajuru. É inevitável pensar que a CPI vai descambar para o caricato, para a baixaria do nível “Joice Hasselman dizendo que Carla Zambelli já foi garota de programa”.
A própria postura da cúpula do Senado não ajudava. O presidente Rodrigo Pacheco sentou no requerimento de CPI por três meses e só autorizou a abertura após decisão do Ministro do STF Luís Roberto Barroso. Era inevitável o pensamento “Se até a cúpula do Senado está contra, é difícil acreditar que isso vá para frente”.
Para piorar, o histórico de CPIs nos últimos anos não era exatamente alentador. A CPI das Fake News foi um grande fiasco e serviu só para fortalecer a percepção negativa da sociedade sobre os congressistas. E, em abril desse ano, Bolsonaro parecia mais forte do que nunca junto ao Congresso, tendo patrocinado a eleição de Arthur Lira para a Câmara e tendo uma relação amistosa com Rodrigo Pacheco no Senado, além de sustentar amplas bases de apoio nas duas casas, amparadas pela liberação de cargos e emendas parlamentares.
Ainda assim, a CPI se estabeleceu, contra todas as expectativas. Começou a tomar depoimentos e a mostrar sua importância para o Brasil. Ganhou popularidade e, junto com a popularidade, ganhou uma enorme expectativa em torno de si.

A CPI tem onze membros titulares: quatro da situação (Marcos Rogério, Jorginho Mello, Eduardo Girão e Ciro Nogueira – substituído por Luiz Carlos Heinze), dois da oposição (Randolfe Rodrigues e Humberto Costa) e cinco independentes (Omar Aziz, Renan Calheiros, Otto Alencar, Eduardo Braga e Tasso Jereissati). A reunião dos dois senadores da oposição com os cinco senadores independentes (com o apoio essencial de outros senadores, dentre suplentes e participantes voluntários) foi essencial para que a CPI tivesse coesão e funcionasse de forma consistente.
Além disso, a CPI trouxe outras inovações importantes, como a participação permanente da bancada feminina na comissão. Ainda que isso mostre, sob certo aspecto, o quão desigual é o Senado, é um passo importante para que as doze Senadoras – que se tornaram treze durante a comissão – se sintam representadas nas discussões. Apesar disso, é bom ressaltar: os onze titulares da CPI são onze homens brancos. Existe um longo caminho a ser trilhado para que o Senado brasileiro seja uma representação demográfica minimamente fiel ao que é de fato o povo brasileiro.
Ressaltados esses pontos, é preciso dizer: as investigações avançaram em muitos pontos importantes. Tratamento precoce e compra de vacinas foram temas exaustivamente abordados. Mas os atores envolvidos continuam o mesmo. O Senado segue sendo o mais conservador que já foi eleito, na esteira da eleição de Bolsonaro em 2018. Isso obviamente trouxe limites a atuação da CPI.
E nem cabe a comparação com Collor. Em 1992, Collor não tinha os militares como suporte do governo, e também não tinha uma base sólida de apoiadores. Hoje, estamos diante de um governo fascista que age sem nenhum escrúpulo para sabotar qualquer coisa que possa comprometer o projeto totalitário de Bolsonaro. Isso obviamente se aplicou à CPI também: desde maio, há uma campanha sistemática feita pelo governo para descredibilizar a atuação da CPI, encabeçada pelos próprios senadores governistas que fazem parte da comissão. Em um contexto tão perigoso, cada escolha é decisiva. E a decisão, por parte da comissão, foi a da manutenção de uma coesão mínima, ainda que isso signifique abdicar de algumas pautas importantes.
Isso torna claros os limites da CPI. As reclamações mais notórias dizem respeito a dois eixos essenciais na gestão desastrosa de Bolsonaro na pandemia: o Ministério da Economia e o Exército. Em relação à Economia, é possível pontuar várias hipóteses, incluindo aí o comprometimento de vários senadores com a pauta neoliberlde Paulo Guedes. Mas em relação aos militares, a coisa muda de figura. Ainda que Eduardo Pazuello e Elcio Franco tenham prestado depoimentos à CPI, é um fato que faltou o depoimento daquele que foi o comandante da gestão da pandemia em linhas mais gerais: o General Braga Netto. E por que ele não foi chamado? Porque não houve consenso. Especialmente após a ameaça que as Forças Armadas fizeram à CPI em julho.
A questão que fez muitos senadores se acovardarem é relativamente simples: a necessidade de fazer a CPI chegar ao final com efeitos práticos condiciona algumas ações. Não havia consenso nesse grupo de senadores em relação a convocação de Braga Netto (Otto Alencar, Eduardo Braga e Tasso Jereissati eram contra, e o próprio Omar Aziz era reticente), e uma insistência na convocação poderia comprometer a coesão desse grupo. Os Senadores sempre temeram que a CPI pudesse se tornar um “novo Banestado” (a CPMI do Banestado, ocorrida entre 2003 e 2004, gastou um ano e meio e terminou sem um relatório final aprovado por briga política entre os membros da comissão). É melhor ter um pássaro na mão que dois voando. É melhor ter um relatório coeso, consistente e aprovado pela comissão do que ter um relatório maior e mais abrangente que vai ficar emperrado em discussões sem fim.
E existe um outro ponto: as provas estão aí. Os crimes são imprescritíveis e os relatórios com as evidências serão distribuídos para todas as instâncias de investigação possíveis. Instâncias que inclusive poderão aprofundar as investigações, incluindo novas evidências. É triste falar isso, mas estamos diante de um governo fascista com forte aparelhamento militar. A capacidade desse governo de interferir nas investigações é notória e já foi provada em diversas ocasiões. Colocar a culpa pela não investigação a fundo de militares nas costas da CPI é tentar dar para a CPI um papel que ela não tem. Um papel que inclusive colocaria os senadores em risco, na democracia combalida em que o país se encontra no momento.
O ideal é que, em 2023, sob outro governo, o Brasil instale uma Comissão da Verdade para apurar e punir os crimes da pandemia. Inclusive os crimes cometidos por militares. É, para essa futura comissão da verdade, as investigações feitas no contexto da CPI serão fundamentais. Elas vão mostrar o fio da meada, amparadas por possíveis avanços que se darão em outras esferas nos próximos meses. Mas colocar essa responsabilidade no colo da CPI, condicionando o seu sucesso a esse fator específico, é tão exagerado quanto falar no final da temporada 2021-2022 que o Sheriff Tiraspol fracassou por não conquistar a Champions League. Assim como o time da Transnístria, a CPI já fez muito mais do que se imaginava dela.
Excelente análise, Leonardo.
Sem dúvida a contribuição que a CPI está apresentando, se dá neste contexto como sementes plantadas com poder de germinar frutos promissores no futuro, além dos já apresenta no cenário em atual.
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