No próximo dia 19 deve ser lido o relatório final da CPI da Pandemia. Sabendo disso, estou fazendo uma série de vídeos que tentam de alguma forma resumir pontos fundamentais da pandemia. É um exercício muito difícil, dada a infinidade de informações com as quais tivemos que lidar nesses últimos dois anos, mas é necessário. Não é todo mundo que acompanha as notícias da pandemia o tempo todo, e quem acompanha muitas vezes carece de um panorama geral sobre o tema.
Ao falar dos primeiros meses da gestão da pandemia, eu deixei bem claro que existiam, no contexto do governo Bolsonaro, dois grupos agindo de maneira conflitante: o grupo do Ministério da Saúde e o grupo do Ministério da Economia. Esses dois grupos, embora fizessem parte do mesmo governo, tinham posturas que fatalmente entrariam em conflito. Essa é uma característica do governo Bolsonaro, inclusive: a reunião de grupos diferentes que entram em conflito por espaços no governo. Conflitos esses muitas vezes fomentados pelo próprio presidente, por serem uma estratégia eficiente para que todas as ações do governo gravitem em torno de Bolsonaro e de seu séquito de puxa sacos. É em torno desse conflito entre saúde e economia que Bolsonaro construiu seu projeto genocida de gestão da pandemia.
O Ministério da Saúde
O Ministério da Saúde começou a se preocupar com a pandemia já no mês de janeiro de 2020, quando os primeiros casos foram notificados em Wuhan. Montou uma série de protocolos e legislação específica para lidar com a chegada iminente do coronavírus ao Brasil. Essa legislação, expressa na Lei 13.979/2020 e aprovada pelo Congresso em 05 de fevereiro de 2020, incluía todo o conjunto de ações cientificamente consagradas para o enfrentamento de pandemias: isolamento social, quarentena, rastreamento de contatos, testagem, uso de máscaras e pesquisas em relação à evolução da doença. Isso era tão consensual que não houve qualquer problema para que o projeto fosse aprovado.
Quando a pandemia chegou ao Brasil, em 26 de fevereiro, a regulamentação estava pronta. Regulamentação essa fortalecida pelos fatos: a Itália, nesse momento, fechava o país, devido ao aumento descontrolado dos casos. Chegávamos no inédito patamar de centenas de mortes ao dia por lá. E os resultados da brutal quarentena de Wuhan já apareciam, com a China controlando a transmissão do vírus. Não havia motivo para contestar o isolamento social. Tanto que os governadores e prefeitos do país obedeceram prontamente a todas as orientações definidas em lei.
Mas havia outro grupo nessa história. É esse grupo que fez a história do combate ao COVID mudar.
O Ministério da Economia
Quando Paulo Guedes se tornou o fiador de Bolsonaro para o mercado, a lógica era de radicalização da lógica que já se via no governo Temer em achar que “os trabalhadores tinham direitos demais” e “os empresários sofrem muito no Brasil”. De fato, em 2019 houve a aprovação da Reforma da Previdência, mais por mérito de Rodrigo Maia do que propriamente de Paulo Guedes. No entanto, o clima para 2020 era de otimismo. A pasta da economia tinha vendido para o governo e para o mercado que “2020 seria o ano da decolagem”.
E a pauta das reformas era tão onipresente que, quando o coronavírus apareceu, Paulo Guedes declarou à revista Veja que “ele seria combatido pelas reformas”, numa clara minimização da questão. Fechar o país nem era uma questão para os técnicos neoliberais do Ministério da Economia. Quando a pandemia efetivamente chegou ao Brasil e os governos estaduais começaram a decretar medidas de quarentena sob orientação do Ministério da Saúde, o empresariado pró Bolsonaro entrou em pânico. Como cumprir as promessas de retomada econômica com as lojas fechadas? Como realizar os lucros previstos e pagar os dividendos? Era uma questão com a qual Paulo Guedes e o mercado não queriam ter que lidar.
Aí, o conflito já estava dado. De um lado, a Economia e o desejo de ignorar tudo o que se fez historicamente contra pandemias para a manutenção do lucro de empresários varejistas. Do outro, a Saúde falando que era necessário fechar tudo é que não havia qualquer chance do país sair da pandemia sem as medidas de isolamento social. A decisão estava com Bolsonaro.
A Escolha de Bolsonaro
O grande problema dos governos de matriz neoliberal é que nesses governos o Ministro mais importante sempre será o da Fazenda. No Brasil de Bolsonaro, que radicalizou o neoliberalismo, esse Ministro ganhou ainda mais importância, controlando, numa pasta só, temas como Previdência, Planejamento, Orçamento e Trabalho.
Estava clara qual seria a escolha de Bolsonaro. O Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, não era exatamente o ministro mais influente do governo. Pelo contrário: estava ali pelo DEM, era considerado “quadro técnico” em relação aos demais, tocava o ministério sem tanta influência externa. Saude nunca foi uma prioridade para Bolsonaro até a pandemia. Por outro lado, Paulo Guedes era o fiador de Bolsonaro junto ao mercado.
Além disso, os principais financiadores de Bolsonaro desde a eleição de 2018 estavam muito mais próximos da lógica de Paulo Guedes do que da lógica de Mandetta. Parecia clara a decisão para Bolsonaro. E ela foi externalizada naquele terrível pronunciamento de 24 de março de 2020, que minimizou a pandemia, tratando-a como uma “gripezinha”.
Quando Bolsonaro contrapõe saúde e economia, não está tratando ambos como polos opostos à toa. Está refletindo a batalha interna em seu governo. Com sua escolha deliberada pela economia, Bolsonaro começou a operacionalizar a sabotagem ao isolamento social. Os operadores da sabotagem? Militares, gabinete paralelo, Prevent Senior, líderes evangélicos como Malafaia. As medidas? Espalhar teses estapafúrdias. Isolamento vertical, imunidade de rebanho, cloroquina.
A ironia é que Bolsonaro poderia ter garantido sua reeleição durante a pandemia. Bastava seguir o preconizado pelo Ministério da Saúde. Bastava não ter sabotado o isolamento social. Bastava ter comprado vacina na hora certa. Mas não, Bolsonaro não fez nada disso. Preferiu rifar a vida de 600 mil brasileiros para agradar meia dúzia de empresários e um punhado de especuladores.