Combater o Machismo É Lutar Contra a Crise Civilizatória em que Vivemos. Em Qualquer Situação

Nas últimas semanas, tem sido bastante recorrente a discussão sobre machismo nas redes sociais. Dois casos foram emblemáticos nesse sentido: a tentativa de Wágner Rosário, Ministro da CGU, em desqualificar a Senadora Simone Tebet chamando-a de “descontrolada” durante o depoimento para a CPI da Pandemia no dia 21 de setembro. Felizmente, nesse caso, os demais Senadores se levantaram imediatamente em defesa da Senadora Simone, o que causou uma confusão generalizada e encerrou a sessão.

O segundo caso envolve agressões do ator José de Abreu, historicamente petista, a deputada Tabata Amaral. Esse caso em específico já vem se estendendo há uma semana, quando o ator replicou um tweet que dizia “se eu vejo a Tabata Amaral na rua eu agrido” ou coisa do tipo. Esse caso continua se retroalimentando porque, embora pareça irrelevante e não tenha grande repercussão além das redes e de artigos em jornais devidamente protegidos por paywall, é retrato entre duas formas de ver os movimentos de luta pelos direitos das minorias.

Antes de qualquer coisa, que fique constatado aqui: ambas as agressões são abomináveis e não podem ser relativizados em hipótese nenhuma. São agressões de tipos diferentes, é verdade: a agressão do CGU é fruto de uma política de invisibilização das mulheres na sociedade. Esse machismo do CGU quer negar às mulheres o seu papel na sociedade e eternizar uma sociedade profundamente desigual. Por outro lado, a agressão de José de Abreu e de diversos militantes que disseram absurdos na esteira do que ele reverberou toca em um ponto mais sensível: o Brasil e o quinto país com maior taxa de feminicídio no mundo e em 2015 foram registrados mais de 3.600 espancamentos de mulheres AO DIA. Quando alguém faz uma apologia a agressão da deputada, está retroalimentando esse processo.

Fonte: Dados Sobre Feminicídio no Brasil (Disponível aqui)

A questão de fundo para entendermos esses dois casos é que ambos são casos de agressões que se encaixam em um modelo liberal de luta pelas minorias da sociedade contra “inimigos” diferentes: de um lado, os fascistas tradicionalistas. De outro, uma esquerda que se julga socialista em seus costumes e em sua visão de mundo. Podemos julgar que essas três categorias estão mais no discurso do que na prática, mas elas são o que temos para hoje.

O Modelo Tradicionalista

Na agressão a Simone Tebet, o consenso que se formou na defesa da senadora é sintomático de como visões de mundo fascistas e defensoras do tradicionalismo. O tradicionalismo tem como prerrogativa a invisibilização das mulheres na sociedade de várias maneiras diferentes: a mulher é quem fica em casa para que o homem possa desenvolver o convívio social, a mulher é submissa ao homem de acordo com princípios tradicionalistas – e por isso mesmo não científicos – e a mulher é considerada uma pessoa inferior, sem as características supostamente masculinas que devem ser valorizadas na sociedade, sendo a principal delas a força, a capacidade quase ilimitada de uso da violência. O tradicionalismo simplesmente não se importa com os números relacionados ao feminicídio porque para eles o feminicídio é algo quase “natural”, inerente ao fato de que o homem é a “figura de força” na sociedade e a mulher é secundária. Isso também acontece em relação a outras minorias: para os tradicionalistas, negros são inferiores aos brancos (às vezes eles defendem isso até com o uso de “racismo científico”), e a população LGBTQ+ é inferior a população heterossexual (o que também tem muito a ver com machismo – a população LGBTQ+ é uma afronta diária ao princípio machista do homem viril, do “macho alfa”). Para o tradicionalista, existe um ideal masculino que é perseguido e que guia os rumos da sociedade, e esse ideal tem justificativas que esbarram em coisas como as guerras e a religião. O tradicionalista é basicamente uma tentativa de retorno ao homem burro da Idade Média que achava uma grande ideia sair para as Cruzadas saqueando cidades e estuprando mulheres “em nome de Cristo”.

Para os tradicionalistas, a luta pelos direitos das minorias não existe. Por isso que a ideia do silenciamento é tão natural para eles. Tradicionalistas silenciam sem perceber que estão silenciando. Isso é moralmente correto para o modelo de sociedade que eles almejam e por isso mesmo não existe sensibilidade a nenhum argumento pelo direito das minorias. É um modelo de sociedade que deveria estar apenas nos livros de História, como exemplo de sociedades incompatíveis com o mundo atual. Mas, para a infelicidade do brasileiro, é o modelo de sociedade dos sonhos de Jair Bolsonaro, de sua equipe e de muitos eleitores dentre os que votaram nele para Presidência da República em 2018.

O Modelo Liberal

Simone Tebet só estava falando na CPI da Pandemia por conta de uma característica da abordagem liberal da luta por minorias: logo no início dos trabalhos, a CPI reconheceu que a representação feminina era insuficiente e deu um espaço fixo para a bancada feminina do Senado. Isso pode ter passado despercebido, mas é um exemplo muito didático de como a luta pelos direitos de minorias se dá em um contexto liberal: há sim o reconhecimento de que a sociedade é injusta, mas as soluções para diminuir o índice de injustiça na sociedade são pontuais. As injustiças são fruto do modelo tradicionalista de sociedade, mas para os liberais essa não é uma grande questão: o importante é mitigar essas injustiças incluindo esses grupos na sociedade, ainda que de forma bem lenta e artificial. As relações injustas continuam existindo, mas os grupos que lutam por seu espaço na sociedade frequentemente vão cavando este espaço.

Isso afeta a maneira como as lutas por minorias funcionam em um contexto liberal: elas passam a ser pela inclusão plena das minorias na sociedade, e não pela mudança da estrutura da sociedade com o propósito de destruir as estruturas tradicionalistas. Nesse contexto, mulheres passam a reivindicar maior participação nos processos de deliberação, bem como negros, LGBTQ+, pessoas com deficiência e outros grupos que passaram séculos invisibilizados na sociedade.

Isso tem implicações bem óbvias: a primeira é que essa postura incomoda os tradicionalistas, fazendo com que eles radicalizem seus discursos, o que faz com que preconceitos antes latentes sejam manifestados abertamente. A segunda implicação é um pouco mais séria: esses movimentos pensam em sua luta por direitos antes de pensar na estrutura da sociedade, os que os acomoda muito bem no estágio atual do capitalismo, mas é pródigo em criar subdivisões ou mesmo concorrência entre movimentos, como acontece com alguma frequência na militância LGBTQ+ quando o assunto é a pauta transexual, para ficar em apenas um exemplo.

No modelo liberal, a defesa de minorias tem como objetivo final o aperfeiçoamento da sociedade capitalista com a incorporação de grupos minoritários ou sub-representados no capitalismo. Quando Simone Tebet fala na CPI representando a bancada feminina, essa incorporação é materializada, ainda que não mude os problemas estruturais da sociedade. Continuam existindo apenas 13 mulheres Senadoras em 81 vagas no Senado. Apenas 16% do Senado é composto por mulheres. E eram doze mulheres até pouco tempo atrás: Eliane Nogueira só assumiu vaga no Senado porque seu filho, Ciro Nogueira, se tornou Ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro. Mas há a impressão de que o esforço de inclusão é hercúleo, afinal há espaço garantido para as mulheres na CPI.

Em uma sociedade justa, metade do espaço seria delas.

O Modelo Socialista

Reconhecer que o problema está nas estruturas e não nos sintomas é necessário, mas não torna as pessoas menos machistas. A abordagem liberal para a luta pelo direito das minorias é analgésica, no sentido de que trata o problema, mas não as suas causas primordiais. O modelo crítico (ou socialista) de abordagem da luta por direitos tem como principal característica a ponderação de que toda e qualquer luta por direitos é um aspecto da grande luta existente na sociedade: a luta entre classes sociais. A injustiça, nesse cenário, é fruto das relações de opressão impostas pela elite, em suas várias concepções, contra os trabalhadores, em suas várias concepções, e lutar pelos direitos das mulheres, dos negros, dos grupos LGBTQ+ e de todas as demais minorias é necessário justamente porque esses grupos são oprimidos e também deixarão de ser oprimidos quando as elites que sustentam as relações de opressão forem vencidas.

Ok, mas por que alguém com esse pensamento faz um ataque tão jocoso como o que José de Abreu fez contra a Deputada Tabata Amaral? Porque, para quem enxerga a sociedade sob esse prisma, Tabata é uma “representante das elites” e merece ser combatida. Obviamente essa interpretação é terrível não só do ponto de vista moral, mas também um erro crasso, e, ainda que Tabata esteja de fato representando os interesses do capital, esse tipo de atitude é totalmente contraproducente para qualquer luta pela mudança das estruturas da sociedade

Isso ocorre porque a abordagem liberal vincula a luta das minorias às identidades que as pessoas assumem para si. O conceito de identitarismo está vinculado às lutas por direitos de natureza liberal. E essas identidades condicionam os papéis que as pessoas exercem na sociedade. Não porque as pessoas querem, mas porque nossa sociedade, ainda com fortes resquícios tradicionalistas, é assim. Mulheres vão ter mais dificuldades para lutar por seus direitos, infelizmente. Negros também. A comunidade LGBTQ+ também, assim como todas as demais minorias. Quando uma crítica agressiva é feita contra uma mulher só porque “ela está do outro lado”, ela passa a ser uma crítica a todas as mulheres. Passa a ser uma absurda conexão dos socialistas com aquilo que eles mais abominam: o tradicionalismo. Porque supostamente o objetivo do socialismo, inclusive para o próprio Marx, era a superação das sociedades anteriores, e não a apropriação de valores oriundos delas. O capitalismo liberal deveria superar o tradicionalismo, e o socialismo deveria superar o capitalismo liberal. E grande parte desse processo está na “luta por corações e mentes”: é possível criticar as posturas de uma deputada como Tabata Amaral em temas específicos que beneficiaram as elites sem ofender a dignidade da deputada.

Conclusão

Lutar contra o machismo é uma escolha civilizatória. Uma escolha que deveria ser abraçada por todos os que não são tradicionalistas. Porque implica, de diferentes maneiras, na mudança de padrões na sociedade. Padrões com os quais nos deparamos todos os dias, que ainda condicionam muitos comportamentos nossos, de nossos pais e de nossos avós. O mesmo consenso contra a agressão às mulheres deve existir em todos os casos, independente de quem seja o agressor. Até porque a luta contra machismo, contra feminicídios, contra abusos sexuais, contra espancamentos e contra toda e qualquer agressão às mulheres é geracional: o que esperamos é entregar para nossos filhos uma sociedade que seja melhor do que a que encontramos em relação a esse tema.

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2 comentários sobre “Combater o Machismo É Lutar Contra a Crise Civilizatória em que Vivemos. Em Qualquer Situação

  1. Pingback: A CPI Já Venceu | Nada Novo no Front

  2. Sem dúvida!
    Lindo e claro o seu texto!
    Tem a famosa frase que diz que não devemos ensinar os nossos filhos a respeitarem minorias. Temos que ensinar a respeitar. Ponto.
    No entanto é impressionante como, quando o inimigo é uma mulher, negro, gay, etc, as agressões são tão mais violentas. Estava lembrando de um sticker que colocavam na entrada de gasolina dos carros, com imagem da Dilma, então presidenta. Jamais vi nada de teor ou gravidade parecidos com relação a Lula ou Bolsonaro, mesmo com todos os ódios que ambos sucitam.

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