O Sequestro de Nossas Almas

O que não é comercializável? O que ainda não foi apropriado pelo capitalismo? O que ainda não foi reduzido a um ranqueamento feito por ditames meritocráticos?

Eu ia colocar essas perguntas em todas as minhas redes sociais, mas desisti, ao pensar que o resultado poderia ser contraproducente. A questão é que todos os aspectos da nossa vida tem sido apropriado por um sistema que tem como única métrica o comércio, a barganha, a obsessão em ter dados consistentes sobre o que é melhor e o que é pior.

Essa angústia do capitalismo inescapável tem tocado fundo aqui, porque está cada vez mais difícil encontrar algo que não é comercializável. O sorriso de uma criança, talvez. Mas e se eu não tivesse estrutura para sustentar minhas filhas em uma sociedade capitalista? E se eu tivesse sido despejado e morasse nas ruas, sem rumo? Elas ainda estariam sorrindo?

O atual estágio do capitalismo talvez tenha criado as pessoas mais ricas que já existiram, no sentido da conciliação do acúmulo de dinheiro com o acúmulo do controle de artefatos técnicos que tornam um estilo de vida baseado no mérito quase inescapável. Mas também formou as pessoas mais miseráveis que já existiram, porque pela primeira vez na história a nossa identidade está ligada ao que temos, e se não temos nada, não somos nada. Não existe a possibilidade de retorno à natureza, de encontrar um pedaço de terra ou de reconstruir a vida. Quem vive abandonado nas ruas vive condenado à indiferença, come lixo, é desprezado pelo restante da sociedade e está condenado ao esquecimento.

Talvez as nossas recordações não sejam compráveis. A saudade. A característica da vida, a medida em que envelhecemos, é nos tornarmos esponjas cada vez mais encharcadas de saudade. Mas até isso o capitalismo nos tira. Porque o capitalismo quantifica onde precisamos chegar. O capitalismo nos coloca em um caminho sem volta, e não trilhar esse caminho coloca o peso do fracasso em nossos ombros. Existe um punhado de pessoas que “deram certo na vida” e uma multidão de pessoas que “poderiam ter dado certo”. O critério? Dinheiro acumulado. Daí não vivemos mais nossos sonhos. No máximo, os compramos, codificando-os em uma “viagem dos sonhos” ou em casas, carros ou outras posses que possam ser admiradas pelos outros.

Talvez a arte, então. Mas esse trem já partiu. A arte hoje é feita em certos parâmetros, com uma única intenção: a comercialização. Se os habitantes da Terra no futuro tentarem enxergar cada geração pela arte que ela produziu, a nossa provavelmente será a geração em que tudo, de alguma forma, pareceu igual. Ou se apagou. Ou esqueceu de contar uma História. Não é o caso de ser nostálgico e de achar que as coisas eram melhores antes. Não está em jogo esse juízo de valor. Até porque antes a arte era sequestrada de outras formas – pela religião, por exemplo. Mas hoje a arte está cada vez mais subordinada a uma relação comercial. Talvez por isso que o artista sofra com uma angústia tão profunda. O artista é aquele que vislumbra o futuro antes de todos, que enxerga o que ninguém enxerga, que faz todos enxergarem mais longe, como uma flecha inflamada. E os artistas, cada vez mais, são proibidos de enxergar qualquer coisa além do hoje.

Os sonhos. Ninguém pode domar os sonhos. Infelizmente a resposta é: podem sim. Quais são os seus sonhos? Ok, imagino que você deva se lembrar de coisas que afagam seu coração, que tragam sensações boas. Agora, responda outra pergunta: esses sonhos se realizam sem dinheiro? Sem entrarmos nessa roda maldita de vendermos nossa existência por uns trocados? Se você disser sim, por favor, deixe seu relato, porque a grande maioria das pessoas dirá não.

Bem, o capitalismo meritocrático liberal se vende como o sistema da liberdade. Talvez a liberdade seja a resposta. Só que a liberdade preconizada pelo capitalismo parece ter uma dimensão só: a do consumo. Toda a liberdade se resume às relações comerciais, e tudo que interfira nas relações de comércio é inaceitável. O capitalismo tira a perspectiva de uma liberdade multidimensional para vender (que ironia) a perspectiva de uma liberdade unidirecional, subordinada às relações comerciais.

E o amor? Pronto, encontramos algo. Ou não. Talvez a coisa mais comercializada na nossa sociedade seja o amor. Existe uma forma certa de amar (ou várias formas certas), essas formas obedecem rituais e absolutamente todos os momentos desses rituais podem ser catalisados com… dinheiro. A idealização do amor no capitalismo talvez seja a construção mais intrincada e difícil de compreender do sistema, uma vez que criou profundas raízes culturais. O capitalismo criou toda uma ritualística do amor. Existe um jeito capitalista de amar.

É algo bem mais pobre que a noção que Simmel nos trouxe de amor: “O milagre do amor é justamente não abolir o ser-para-si em do Eu nem do Tu, fazer dele inclusive a condição que permite essa supressão da distância, esse egoísta fechar-se em si mesmo do querer-viver. O que é algo totalmente irracional, que se subtrai à lógica das categorias habitualmente válidas.” (SIMMEL, 2004, p. 72). Para Simmel, o amor era ‘irracional’ justamente por esvaziar o pensamento individualista e utilitário para trazer uma atitude de entrega ao ‘Tu’, não explicável de maneira racional.

O modelo de relações afetivas preconizado pelo capitalismo acabou até com essa perspectiva. O amor, no capitalismo, passa a ser com frequência uma relação de parasitismo. O amor passa a ser sobre o quanto o outro pode proporcionar de prazer, realização e êxtase para você. Não é à toa que relações abusivas, caracterizadas pela desigualdade extrema, são algo normalizado e herdado de um tradicionalismo tacanho com fundamento econômico, de uma estúpida afirmação hierárquica de papéis. Nesse tipo de relação, o dinheiro se fez presente em todos os momentos, despertando um conjunto de sensações intensas, alucinantes, viciantes, seminais. Sensações que fazem a grande maioria das pessoas viverem em um estado eterno de frustração, uma vez que é absolutamente impossível passar a vida toda nesse estado de êxtase. E, mesmo que fosse possível, talvez isso não fizesse sentido.

Sentido? Talvez isso seja a resposta. O sentido em produzir algo, em transformar, em criar relações, em fazer os olhos brilharem a ponto de a perspectiva da vida ser mais atraente que a perspectiva da morte, numa abordagem camusiana. Mas até o sentido das coisas o capitalismo tenta destruir, reduzindo a vida a um conjunto de trocas comerciais, que sequestram nossa capacidade de enxergar as coisas além da barganha, do comércio, do escambo sentimental.

Talvez as perguntas do início do texto não tenham respostas fáceis. Talvez nem mesmo tenham algum tipo de resposta na nossa sociedade, que sequestra a dignidade, o trabalho, a saudade, a arte, os sonhos, a liberdade, o amor e o sentido das coisas. Como negar esse modo de vida tão arraigado? Talvez a resposta esteja na ‘irracionalidade’ das relações não precificadas. Talvez a vida faça um pouco mais de sentido em um contexto em que hierarquizações sejam sobre a capacidade de entrega, e não sobre a capacidade de subjugar os outros. Para isso, é preciso recuperar formas não capitalistas de sonhar, de amar e de criar sentido para as coisas.

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SIMMEL, G., Fragmento sobre o Amor e Outros Textos, trad. Maria João Costa Pereira,Lisboa, Relógio d’Água, 2004

2 comentários sobre “O Sequestro de Nossas Almas

  1. Ótima reflexão…
    Infelizmente é isso. Cada vez mais somos sugados e o pior é a perspectiva de sempre piorar…

    As vezes dá vontade de tentar uma experiência diferente por um tempo. Tipo “Walden, vida nos bosques”. Mas as ansiedades e preocupações geradas por essa vida adaptada ao sistema impede essas ações, pelo menos em mim.

    Enfim… é difícil…

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  2. Excelente texto, Leo.

    Tenho pensado muito sobre isso e levado à terapia, afinal, sei que muito das minhas frustrações foram cultivadas por esse sistema. Isso tem ficado cada vez mais claro e cristalino pra mim, então percebo que o problema está muito além do indivíduo.

    No meu caso, a frustração vem da vida profissional. A sensação de fracasso toma conta de mim desde a graduação; não por ter escolhido o curso “errado”, mas pelo sentimento inescapável de ser uma impostora (para além das implicações machistas).

    Até porque as relações de comércio estão tão enraizadas em nós que elas permeiam, inclusive, ambientes onde a construção do conhecimento deveria ser o foco. Veja bem: a construção, o processo; e não o produto final.

    A Universidade e a vida acadêmica viraram um pesadelo particular.

    Mas dia desses uma chave girou na minha cabeça: talvez eu estivesse levando o trabalho como a minha prioridade da vida, sendo que meus propósitos são outros.

    Foi aí que eu percebi que tinha caído no velho conto do vigário de que temos que buscar propósitos no que trocamos por dinheiro.

    É uma praga, sequestraram até nosso direito de ter propósitos.

    Então como separar essas coisas numa sociedade pautada por esse tipo de relação de trabalho? Me pergunto até se é possível fazer isso.

    Não sei, mas vejo que pensar assim ou torna as cobranças mais leves ou descarta as desnecessárias. E isso, em si, já é um ato de resistência.

    Abraços.

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