
Rebeca Andrade é a primeira medalhista olímpica da história da ginástica artística brasileira. E ela é um ótimo exemplo de como medalhas olímpicas podem ser produzidas por boas políticas públicas, ainda que elas sejam imperfeitas e insuficientes.
Essa reportagem mostra um pouco da história de Rebeca Andrade: ela veio de uma família muito humilde e só começou a praticar ginástica aos 4 anos de idade porque existia um projeto social da prefeitura de Guarulhos para a prática de ginástica artística como ferramenta de inclusão social, o Iniciação Esportiva. Inclusive não é um “projeto social” no sentido não governamental do termo: é uma política pública de inclusão social pelo esporte, com todos os benefícios que políticas do tipo trazem. O acaso fez com que Rebeca Andrade nascesse em uma das poucas cidades do país com uma política pública dessas. Se Rebeca nascesse em outra cidade, seria impossível descobrir seu talento. E o fato de que não existem muitos centros desse tipo país afora mostra que o Brasil está perdendo muitos outros possíveis talentos, em muitas outras modalidades.
Mas o acaso também ajudou Rebeca Andrade quando a política pública não funcionou. A família de Rebeca só descobriu que existia essa política pública porque uma tia de Rebeca, funcionária pública, foi trabalhar por uma semana no ginásio da cidade, e justamente nessa semana as inscrições para a ginástica artística estavam abertas. Esse é um problema recorrente nas políticas públicas brasileiras. Existem boas políticas sem a devida divulgação. Você sabe quais são as políticas públicas voltadas ao esporte que existem na sua cidade? Elas talvez existam. E talvez sejam menos frequentadas do que deveriam, porque os cidadãos não sabem que essas políticas existem, por falta de transparência nos períodos de inscrição ou mesmo por problemas de ordem mais prática, como a mudança constante de horários, que obviamente é um empecilho para quem pratica o esporte.
Essa questão leva a uma outra falha da política de Guarulhos: a de não saber como fazer uma política pública de inclusão pelo esporte ser realmente inclusiva. Na reportagem as dificuldades passaram pela falha da prefeitura em fornecer vale transporte para os atletas e pelo fato de que o acompanhante de uma criança de seis anos não podia almoçar no local de treino (sendo que a atleta podia). Geralmente essas falhas são fruto de políticas feitas com pouquíssima verba, que esbarram em burocracias para a destinação orçamentária e o empenho dos recursos existentes. Novamente, o acaso beneficiou Rebeca: poucas famílias com condição social precária conseguem criar uma rede de apoio tão incrível como a que Rebeca teve. Era o irmão levando ela no treino, era a mãe trabalhando pra sustentar a família, eram os técnicos se revezando para que ela não faltasse nos treinos. E o problema aqui é mais amplo que a política pública esportiva: o Brasil é um país de famílias desestruturadas e de mães solo, especialmente entre os estratos menos favorecidos da sociedade. E essas famílias precisam de mais suporte governamental para se estruturarem, para terem as necessidades básicas atendidas, para não precisarem ficar sete horas em uma fila por ossos de boi para terem o que comer, como ocorreu em Cuiabá.
E, finalmente, é preciso um circuito consistente de competições, para que os bons atletas da base possam ser vistos pelos grandes clubes com mais facilidade. O intercâmbio é essencial. O Iniciação Esportiva era um projeto conhecido por equipes de ginástica famosas como a do Clube Pinheiros, a ponto do Pinheiros ir treinar em Guarulhos em 2009, quando os equipamentos de ginástica artística estavam em reforma no clube. Esse intercâmbio coloca novos talentos no radar e permite uma transição geracional mais tranquila, consolidando o país como uma potência nos esportes nos quais o investimento é contínuo.
Os atletas estão certos quando dizem que “não tem apoio do governo”. Porque, exceto em casos extraordinários como o da Rayssa Leal, as trajetórias dos atletas praticando um esporte para chegar ao nível de uma medalha olímpica levam mais de uma década. E, como o caso da Rebeca ilustra, as políticas existentes no Brasil não são universalizadas, tem problemas de execução e não conseguem lidar com questões mais urgentes, como a segurança alimentar da família do atleta. A sensação de desamparo é inevitável. Mas também é possível resolver essas questões, com estruturação de políticas esportivas pelo país todo, projetos consistentes e políticas sociais inclusivas, que sejam integradas além da prática esportiva. Só assim não precisaremos do acaso para que o Brasil revele novos talentos como Rebeca Andrade.