A Cronologia das Ações do Governo Bolsonaro no Início da Pandemia

Existem coisas difíceis de explicar: por que o Brasil é o único país que segue tendo um governo que insiste em lógicas absurdas como a do do “tratamento precoce” mesmo com robustas evidências científicas provando a ineficácia dele? Por que o governo Bolsonaro ignorou mais de 80 e-mails da Pfizer, que estava basicamente implorando para vender vacinas ao Brasil? Por que o governo Bolsonaro fez tudo o que pôde pra impedir a CoronaVac de entrar no Brasil? A gestão brasileira da pandemia foi tão catastrófica que, por vezes, a impressão é a de que existe um grande plano maligno por trás de tudo.

E a verdade é que existe mesmo. E é um plano pragmático. Um plano feito para favorecer aqueles que influenciam Bolsonaro todos os dias.

O objetivo aqui é um só: entender como que Bolsonaro agiu ativamente para matar mais de 500 mil brasileiros durante a pandemia, repassando atitudes tomadas desde o início da pandemia. Além de notícias, foram usadas como fonte documentos públicos como a agenda presidencial.

Quando o deputado Osmar Terra, na CPI, em 22 de junho, confirmou o que todos já sabíamos a respeito dele: ele é contra o lockdown e achava que a “imunidade de rebanho” daria conta da pandemia. Ele basicamente confirmou que a estratégia do governo Bolsonaro era mesmo a imunidade de rebanho.

é preciso entender que, no início da pandemia, existia um consenso em relação às medidas de isolamento historicamente consagradas em pandemias. Mas, aos poucos, esse consenso foi ruindo internamente, até o momento em que Bolsonaro dividiu o Brasil em relação ao tema, na rede nacional de 24 de março de 2020. Vamos ver como nesse período diversas influencias instrumentalizaram as atitudes de Bolsonaro: empresários, militares, líderes religiosos e até o presidente dos EUA, Donald Trump, foram decisivos no rompimento do consenso em torno das medidas de contenção à pandemia, que terminou custando milhares de vidas. Para isso, esse relato vai até 31 de março de 2020.

Estamos falando de uma cronologia analítica. Cronologias são fáceis de fazer. É só enumerar notícias, e com os mecanismos de busca notícias são relativamente fáceis de se encontrar. Mas o objetivo aqui não é apenas levantar uma cronologia: é fazer a análise dos motivos pelos quais essas notícias ocorreram à luz do conhecimento que temos hoje, mais de um ano após o início da pandemia. É esse o diferencial dessa análise em vista de análises similares.

Para entender a gravidade da questão, é preciso traçar uma linha do tempo com as primeiras atitudes do governo em relação à pandemia.

Janeiro de 2020

14 a 22 de janeiro: Ministério da Saúde sabe sobre o coronavírus e sua gravidade, embora tenha poucas informações sobre. A primeira menção oficial ao tema ocorre no dia 14 de janeiro, com uma citação sobre o assunto na página 10 do Boletim Epidemiológico 01/2020. A primeira comunicação oficial sobre o tema sai no dia 22 de janeiro: é o Boletim Epidemiológico 04/2020, com informações gerais a respeito do que já se conhecia

23 – 28 de janeiro: Bolsonaro viaja pra Índia com uma grande comitiva, em busca de acordos comerciais. Constam vários nomes conhecidos do público.

Comitiva: Ernesto Araújo, Marcos Pontes, Bento Albuquerque, Teresa Cristina, Augusto Heleno, Pedro Guimarães, Jorge Seif, Luiz Carlos Heinze, Eduardo Bolsonaro e Filipe Barros.

A questão com essa viagem é simples: nessa viagem foram estabelecidos contatos comerciais que depois facilitariam a aquisição de insumos em relação à pandemia, especialmente em três momentos: na compra de insumos para a fabricação de cloroquina pelo laboratório do Exército, em abril de 2020, na viagem frustrada para buscar vacinas CovidShield (a versão indiana da Oxford/AstraZeneca) em janeiro de 2021 e na celebração do contrato de compra de 20 milhões de vacinas Covaxin, em 25 de fevereiro, que é alvo de investigação pela CPI da Pandemia.

Fevereiro de 2020

03 de fevereiro: a burocracia do Ministério da Saúde, que já havia lançado o Boletim Epidemiológico 04/2020, lança o plano de contingência nacional pra infecção humana pelo novo coronavírus.

No dia 04, o governo federal decretou estado de emergência na saúde por conta do coronavírus. Ao contrário do que os militantes pró Bolsonaro dizem, quem assinou a portaria foi o ex-Ministro Luiz Henrique Mandetta. Também foi mandado um projeto de lei com urgência para o Congresso Nacional com medidas de combate ao coronavírus. Esse projeto de lei precisava ser aprovado com urgência para que os brasileiros presos em Wuhan pudessem ser resgatados pela FAB.

05 de fevereiro: uma expedição com dois aviões da Força Aérea Brasileira vai à China resgatar 31 brasileiros e três diplomatas que estavam na cidade de Wuhan. Eles chegaram ao Brasil no dia 09 de fevereiro e ficaram em quarentena na cidade de Anápolis até o dia 23. Essa operação mostra, inequivocamente, a preocupação brasileira com os procedimentos de quarentena, com o isolamento social e com políticas de prevenção à contaminação em massa por coronavírus no Brasil. Todos estavam igualmente preocupados. O próprio Bolsonaro, após relutância inicial, disse que “ninguém ficaria para trás” e que evitar a contaminação era a prioridade do governo.

06 de fevereiro: o projeto de lei tramita em caráter de urgência, é aprovado e sancionado pelo presidente Bolsonaro, convertendo-se na Lei 13.979. Uma pausa aqui.

A Lei 13.979 é a grande prova de que havia um consenso no início da pandemia. A lei aprovada e sancionada pelo Presidente Bolsonaro em 06 de fevereiro previa todos os procedimentos de contenção do coronavírus que eram historicamente consagrados pela ciência no combate à pandemia. Aqui, todos estavam caminhando na mesma direção. Vejam o art. 3º da lei:

Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Lei nº 14.035, de 2020)

I – isolamento;

II – quarentena;

III – determinação de realização compulsória de:

a) exames médicos;

b) testes laboratoriais;

c) coleta de amostras clínicas;

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou

e) tratamentos médicos específicos;

III-A – uso obrigatório de máscaras de proteção individual; (Incluído pela Lei nº 14.019, de 2020)

IV – estudo ou investigação epidemiológica;

V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;

A ironia desse artigo é que, ao colocar que todos podem tomar atitudes “no âmbito de suas competências”, o próprio governo federal autoriza a ação independente dos governadores e prefeitos em relação às medidas de combate à pandemia, o que invalida o próprio discurso repetido à exaustão pelo Presidente Bolsonaro de que “ele não pode fazer nada porque o STF disse que a competência é dos estados e municípios”. O STF só interpretou a lei e entendeu que União, Estados e Municípios tem competência concorrente no tema, o que, no início da pandemia, era avalizado pelo próprio governo federal.

Além disso, estavam na lei mecanismos de ação contra os quais Bolsonaro se voltou posteriormente, tais como isolamento, quarentena e uso obrigatório de máscaras. Repetindo: o governo federal avalizou isso. O governo federal emanou as diretrizes de combate à pandemia através de lei específica para depois o Presidente da República se voltar diariamente contra essas diretrizes.

Bônus: o desenvolvimento de vacinas como a CoronaVac e a ButanVac pelo Instituto Butantan está devidamente autorizada ali no ítem “estudo ou investigação epidemiológica”.

Voltando ao cronograma:

Dia 11 de fevereiro é lançado o protocolo de manejo clínico para o novo coronavírus, que foi mais uma publicação da área técnica do Ministério da Saúde prevendo a gravidade da pandemia e elencando os procedimentos padrão com extrema sobriedade, sem dar margem a invencionismos ou ao uso de pacientes como cobaias.

No dia 26 de fevereiro é confirmada a primeira infecção em território nacional, depois de várias suspeitas que não se confirmaram.

No início do mês de março, o Ministro Mandetta começa a dar entrevistas coletivas diárias para avaliar a evolução da pandemia no país e divulgar o número de novos casos da doença.

No dia 06 de março Elon Musk esse tweet negacionista, que parece besteira, mas é a primeira manifestação negacionista de alguém capaz de influenciar o pensamento de pessoas que influenciam o pensamento do presidente Bolsonaro aqui no Brasil. Especialmente empresários ligados ao mercado financeiro, que tem grande influência na agenda econômica defendida pelo Ministro da Economia Paulo Guedes.

Em 09 de março, durante viagem aos EUA, Bolsonaro diz que o coronavírus está superdimensionado.

Em 10 de março, ainda nos EUA e influenciado por Donald Trump, o Presidente Bolsonaro diz que outras gripes mataram mais que o coronavírus.

Lembrando: quinze dias após a comitiva aos EUA, 25 pessoas próximas a Jair Bolsonaro testaram positivo para o coronavírus.

12 de março: Paulo Guedes menospreza a pandemia falando que “com R$ 5 bilhões aniquilamos o vírus

14 de março: estados decretam fechamento visando isolamento social. Governo federal, no contexto do Ministério da Saúde, referenda essas políticas de fechamento. Esse momento é de um grande consenso em torno das políticas de combate à pandemia. A gravidade da situação em países como a Itália, que registram centenas de mortes diárias, dão a dimensão da gravidade da pandemia e da necessidade de precauções sanitárias para evitar a contaminação em massa.

Dia 15 de março, Jair Bolsonaro e Antonio Barra Torres, presidente da Anvisa, foram em uma manifestação de apoio ao presidente Bolsonaro. Naquele dia, o país completou 200 casos de coronavírus confirmados.

Dia 16 de março foi divulgado e chegou nas mãos do Presidente Bolsonaro o estudo do Imperial College sobre as taxas de transmissão do vírus mundo afora. É com base nesse estudo que o biológo Átila Iamarino previu um milhão de mortes de o Brasil não fizesse nenhuma medida de supressão ou mitigação do vírus.

Também no dia 16 de março saiu o estudo de Didier Raoult dizendo que cloroquina é eficaz contra o coronavírus. Depois, esse estudo foi contestado e o autor foi obrigado a se retratar.

E, finalmente, no dia 16 de março foi instituído pelo decreto 10.277/2020 o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19, sob o comando do então Ministro da Casa Civil Walter Braga Netto.

Sobre isso, um adendo: Braga Netto parecia ser de fato o homem forte do Presidente Bolsonaro em relação ao tema. Em março, foi o Ministro com mais reuniões com o presidente. Especialmente à partir do dia 16. Braga Netto participou de três reuniões com Bolsonaro no dia 17, de uma no dia 18, de duas no dia 20, de três reuniões no dia 23 e de uma no dia 24. Na hierarquia dos Ministros, ele sempre estava em primeiro lugar, aparecendo abaixo apenas do vice-presidente Hamilton Mourão. A operacionalização de qualquer linha de ação para contenção da pandemia passa necessariamente pelo nome do General Braga Netto, especialmente na primeira fase da pandemia. Não à toa foi a fase em que houve um processo progressivo de militarização das equipes que dirigiam a resposta à pandemia, que culminou, dois meses mais tarde, com Eduardo Pazuello e Elcio Franco à frente do Ministério da Saúde.

17 de março: Brasil registra a sua primeira morte por coronavírus.

Dia 18 de março Bolsonaro concede entrevista no Planalto a diversos jornalistas, mantendo um discurso comedido e delegando ao Ministro Luiz Henrique Mandetta as medidas de combate à pandemia na área de saúde. Ou seja: nesse momento, embora o discurso de Bolsonaro fosse destoante em alguns momentos, ainda havia um consenso em relação às práticas de combate à propagação do vírus. Nesse dia, Paulo Guedes anunciou um auxílio mensal de R$ 200 aos trabalhadores durante a pandemia.

Também no dia 18 de março, Silas Malafaia, pastor da Assembléia de Deus Vitória em Cristo e um dos principais conselheiros do presidente Bolsonaro, diz que se “querem fechar as igrejas que sou pastor, recorram à justiça”. No dia 23 de março, atendendo ao “pedido” de Malafaia, a Justiça do Rio de Janeiro proibiu os cultos da igreja, causando a revolta do pastor.

É importante frisar isso porque Silas Malafaia tem de fato um papel na estratégia de combate à pandemia adotada pelo Presidente Bolsonaro e por seu grupo de influência próximo. O próprio Flávio Bolsonaro, filho do Presidente, afirmou, durante tentativa de tumultuar o depoimento de Eduardo Pazuello em 20 de maio de 2021, que “Se querem ouvir alguém que dá conselho ao presidente da República, vou dar um nome: chama o pastor Silas Malafaia aqui, esse fala quase diariamente com o presidente e influencia o presidente”. E, de fato, é sim possível afirmar a influência de Malafaia na mudança do discurso de Bolsonaro. Para se ter ideia do nível de alinhamento: o pastor celebrou culto normalmente no dia 24 de março de 2020, desobedecendo determinação da justiça e falando contra o isolamento social exatamente com o mesmo tipo de discurso feito pelo Bolsonaro em seu pronunciamento à nação naquele dia, de que empregos devem ser preservados (é possível ver o discurso de Malafaia à partir dos 15 minutos e 20 segundos desse vídeo).

Em 19 de março, Donald Trump disse que a cloroquina e a hidroxicloroquina tinham o potencial de “mudar tudo” no combate à pandemia. Nesse momento, começa a ser construída a estratégia de “uso da cloroquina como sabotadora do isolamento social”, e começa a ser vendida a perspectiva de que a pandemia poderia ter uma “solução rápida” através de um remédio específico. Depois, com o tempo, adicionaram-se outros medicamentos nessa tentativa de “solução rápida”: azitromicina, ivermectina, dióxido de zinco, vitamina D, proxalutamida, todos esses remédios entraram nessa lógica de “solução rápida contra o COVID” criada à partir desse discurso de Donald Trump. Todos esses remédios não tem eficácia comprovada.

Dia 19 e 20 de março começam as experiências da Prevent Senior em pacientes das suas unidades com Cloroquina.

22 de março: o guru ideológico informal da Presidência da República, Olavo de Carvalho, fez uma live no YouTube dizendo que “a pandemia não existe“. Falar do Olavo de Carvalho é importante porque grande parte do que as pessoas chamam de “núcleo ideológico” do governo é diferente afetada pelo que Olavo de Carvalho fala. Diretamente. A ponto de falarem abertamente que existe um “núcleo de olavistas” no governo. Quando Olavo de Carvalho nega a pandemia, esse núcleo se sente à vontade para assumir essa posição negacionista também. Essa posição traria consequências práticas adiante, relacionadas não só ao negacionismo da pandemia, mas também a aspectos relevantes como a postura anti China do governo Bolsonaro, que teve efeitos sérios no atraso da negociação da vacina CoronaVac e na entrega de IFAs das vacinas CoronaVac e Oxford/Astrazeneca, fabricadas no Brasil respectivamente por Instituto Butantan e pela Biomanguinhos/Fiocruz. Ignorar o papel do olavismo como influência ideológica na ação negacionista do Presidente Bolsonaro, de seus filhos e de seus assessores próximos é ter uma visão incompleta da gestão do governo federal em relação à pandemia.

Dia 24 de março, Jair Bolsonaro fez um pronunciamento nacional contra o distanciamento social e lockdown. Além disso, usou a rede nacional para dizer que a mídia estava espalhando pânico e histeria indevidamente, que as coisas deveriam voltar à normalidade, que a pandemia não seria grave no Brasil e que escolas e comércios deveriam ser reabertos. Disse também que a cloroquina era promissora no tratamento à doença e que a pandemia deveria acabar brevemente. A história desse pronunciamento e de suas consequências já está contada aqui, mas é preciso frisar que esse foi o momento da grande ruptura. Nesse momento, Bolsonaro entra instantaneamente em duas brigas: com os governadores dos estados, que decretaram medidas de restrição, e com o próprio staff do Ministério da Saúde, que ainda seguia defendendo o isolamento social.

Brigas desse tamanho não ocorrem de graça. E um indício para entender de onde Bolsonaro tirou tamanha “coragem” em se colocar contra tudo e contra todos está no fato de que no mesmo dia 24 de março Donald Trump deu uma guinada na sua política em relação ao coronavírus. O ex presidente, que ate então não tinha se manifestado contra o isolamento social, disse que “queria acabar com as medidas de isolamento social até a Páscoa”. A Páscoa em 2020 foi no dia 12 de abril. É bom ressaltar que duas semanas antes, no dia 08 de março, Bolsonaro e Trump se encontraram, em um jantar no resort de Trump em Mar-A-Lago, na Flórida. E que nesse jantar pode ter ficado definido que os países estariam alinhados em relação às medidas contra a pandemia. Duas semanas depois, começou a aposta no negacionismo. Aposta que foi responsável por EUA e Brasil serem, em números absolutos no mês de junho de 2021, os dois países com mais mortes por coronavírus no mundo.

Em 25 de março, o pronunciamento de Bolsonaro foi amplamente condenado por cientistas e por governadores, que alertaram sobre o efeito das palavras de Bolsonaro na diminuição do isolamento social, causando prejuízos no combate à pandemia. O escape de Bolsonaro era o discurso do “isolamento vertical“, uma invenção sem nenhum respaldo científico que consistia em deixar só os idosos em casa.

Qual é a lógica do isolamento vertical segundo seus propositores? A de que “coronavírus é uma doença mais perigosa em idosos”, então os idosos deveriam permanecer em casa. Em que pese o fato de que os meses seguintes da pandemia desmentiram essa tese, parecia fazer algum sentido na época, considerando que a grande maioria das mortes em Wuhan, que foi o primeiro foco da pandemia, realmente tinha como vítimas pessoas acima dos 60 anos.

A verdade era um pouco mais sobria. O isolamento vertical tinha como objetivo fazer uma política de isolamento que não interfira na atividade econômica e não cause prejuízo aos grandes empresários do país. Prova disso é que no dia 28 de março, o discurso da área econômica já é totalmente diferente e está totalmente de acordo com as novas diretrizes emanadas pelo Presidente Bolsonaro. Nesse dia, Paulo Guedes participa de uma live com os donos da XP Investimentos e o discurso é o de que a economia não pode parar e as políticas de isolamento devem ser seletivas, atingindo somente os idosos.

Esse discurso corroborava a campanha lançada no dia anterior (27) pelo governo federal, chamada “O Brasil Não Pode Parar”. O nome não era casual: a campanha era similar à que foi lançada um mês antes pela prefeitura de Milão. Só que Milão, percebendo o tamanho do erro, logo abortou a campanha. No mesmo dia 27 de março em que o governo brasileiro lançou o slogan o prefeito de Milão se declarou arrependido de ter feito a campanha. Sim, ela foi responsável por muitas das mortes ocorridas na cidade em março de 2020.

No dia 30 de março, o desconforto entre Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta já é público. Bolsonaro mandou interromper as coletivas diárias do então Ministro da Saúde sob o argumento de “unificar o discurso“. Aqui se consolida a separação entre a política presidencial de combate à pandemia e a política de estado. Por mais que isso pareça uma dissonância, é preciso separar o que é de responsabilidade do Presidente da República e de seus assessores próximos e o que é de responsabilidade do diversos órgãos de estado e de seus técnicos. O que se percebe, a partir desse momento, é que esse núcleo próximo ao Presidente da República passa a crescer paulatinamente e a sufocar as ações de estado contra a pandemia, impedindo, em muitos casos, uma resposta mais efetiva.

O grande nome desse núcleo, que originaria depois o que chamaram na CPI de “Gabinete Paralelo”, é o General Braga Netto. É o General que passa a ser responsável pelas coletivas de imprensa no Palácio de Planalto à partir de 30 de março. É em torno dessa articulação que, dias depois, começam a se aproximar médicos defensores da hidroxicloroquina do gabinete de Bolsonaro, bem como empresários do porte de Carlos Wizard. É preciso entender que não há nada de “paralelo” nesse gabinete: o que vemos é que a assessoria do Presidente da República, tanto por meio de seus assessores pessoais (Arthur Weintraub, Filipe Martins) quanto por meio de seus ministros militares (General Braga Netto, General Augusto Heleno, General Luiz Eduardo Ramos, General Fernando de Azevedo e Silva) vai tomando aos poucos as rédeas do combate a pandemia. E, cada vez mais, o combate à pandemia passa a obedecer as premissas do Presidente Bolsonaro: a sabotagem sistemática do isolamento social e a tentativa de “soluções rápidas” como a cloroquina, com o objetivo de criar uma percepção de “estado de normalidade” na população, fazendo com que as pessoas vivam suas vidas normalmente mesmo com uma pandemia.

No dia 30 de março o Congresso também age: a Câmara e o Senado aumentam o auxílio que Guedes tinha proposto, de R$ 200, para R$ 600, e estende esse auxílio aos trabalhadores informais. A lei é aprovada em regime de urgência e o auxílio emergencial se torna, nos meses seguintes, o grande motivo pelo qual a recessão brasileira em 2020 não foi tão grande quanto as expectativas iniciais previam. O auxílio emergencial, que teve cinco parcelas de R$ 600 e depois foi estendido até dezembro, em parcelas de R$ 300, também foi um dos grandes responsáveis pela manutenção da popularidade de Jair Bolsonaro em meio à pandemia mesmo com uma gestão catastrófica, que provocou centenas de milhares de mortes. Em 2021, no entanto, o auxílio, definido em R$ 150 após três meses de hiato, não conseguiu ter o mesmo efeito na popularidade presidencial.

31 de março: o Brasil bate o recorde de casos de de mortes por coronavírus em um único dia: 1138 casos e 42 mortes. A pandemia começa a acelerar. Enquanto isso, o Palácio do Planalto quer montar uma “gestão paralela” da pandemia ligada diretamente ao Presidente da República, enquanto o Ministro da Saúde tenta agir de acordo com os direcionamentos que recebe do presidente, ao mesmo tempo em que leva em consideração os dados recebidos pelos estados. Esse frágil equilíbrio não duraria muito tempo.

Conclusão

O período entre janeiro e março de 2020 foi a origem de tudo na gestão da pandemia. O discurso contra o distanciamento começou aqui, e a busca de uma “solução rápida” para “resolver a pandemia” também. Foi aqui que a cloroquina começou a ser utilizada como instrumento de sabotagem do isolamento social. É nesse momento que ficam claros os grupos que influenciaram a ação do governo. A política de Donald Trump, os empresários que queriam suas empresas abertas, pastores que não queriam interromper seus cultos presenciais e nomes de extrema direita como Olavo de Carvalho. Gente que estava no círculo de poder de Bolsonaro e encorajou o presidente a tomar as atitudes que desembocariam, pouco mais de um ano depois, em quintas mil mortes.

Também é importante aqui ressaltar o papel dos militares no processo. Embora eles tenham uma ideologia militarista e fortemente antiesquerdista, não é ela que define as ações aqui. Os militares são a ferramenta do Presidente Bolsonaro para impor suas políticas em relação à pandemia. Isso começa a se tornar realidade quando o Presidente Bolsonaro investe o General Braga Netto como uma espécie de comandante-em-chefe do combate à pandemia. Nesse momento, os militares passam a ser de fato os operadores do combate ao coronavírus, em frentes tão distintas quanto a saúde indígena, a produção de cloroquina em laboratórios do Exército e a política de combate à pandemia empreendida pelo Ministro Eduardo Pazuello entre maio de 2020 e março de 2021. E é por isso que todos esses grupos estão igualmente envolvidos na catástrofe que foi a gestão da pandemia.

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