Vocês não estão preparados para essa conversa, mas Galinha Pintadinha 2 foi o melhor álbum de música brasileira do ano de 2010.
Galinha Pintadinha 2 é o Sgt. Peppers da Galinha Pintadinha, a obra prima deles, é um álbum conceitual e sem falhas.
Música 1: Quem é que tem
O álbum começa conversando com o álbum de estreia da banda e respondendo aos críticos do galo carijó. Ao celebrar as características de uma Galinha Pintadinha confiante, em contraposição à galinha pintadinha adoentada do primeiro álbum, a Galinha Pintadinha celebra a sua própria superação e o merecido reconhecimento que o álbum um, totalmente inovador, teve após o lançamento.
Música 2 – Meu Lanchinho
Talvez os dois minutos mais intensos da música brasileira em 2010. A música tem um storytelling quase sufocante de tão envolvente e o ritmo vai crescendo na velocidade certa, gerando uma catarse singela, um retrato épico do cotidiano, do trivial. O conceito de pout pourri não é novidade, mas Meu Sininho/Meu Lanchinho conseguiu a proeza de levar esse conceito ao paroxismo. A gente está falando de algo do nível de uma ópera rock produzido em pouco mais de dois minutos. É quase impossível pensar em uma proeza similar.
3 – Atirei o Pau no Gato
Uma aula de História em forma de música. De novo, a Galinha Pintadinha não teve medo de romper paradigmas aqui. Nessa versão, a banda soube ressignificar uma música tradicional que envelheceu mal. É uma denúncia e é uma aula também.
Aqui a mensagem é: a sociedade ensinou para vocês que atirar o pau no gato é aceitável, mas não é. Não podemos mais admitir a agressão aos animais. E tudo isso de forma cadenciada, bem ritmada, coesa. Irretocável!
4 – Formiguinha
Mais um grande manifesto social da galinha pintadinha. Reparem nos produtos que são comprados no mercado: café, batata roxa, gerimum, melão e giz. Os alimentos todos nós dizem o quão importante é viver de forma sustentável, evitando consumir industrializados. Mas o melhor fica para o final: todo mundo sabe que a grande maioria dos mercados não vendem giz. Ao evocar o giz como parte da cesta básica, a galinha pintadinha traz uma mensagem definitiva: a educação deve estar entre as coisas mais essenciais da nossa vida.
5 – Um elefante incomoda muita gente
Tudo na música é arrastado. Os sopros estão ali exatamente para passar essa percepção. Poderia passar uma percepção falha, não fosse a posição da música: Elefante é o freio de arrumação depois de um clássico e duas críticas sociais intensas. Elefante vem nos lembrar que o nosso desejo de transformar as circunstâncias encontra enormes barreiras no caráter inercial das coisas e nas contingências que surgem na nossa frente e que nos incomodam. Apesar disso, no fim, vale a lógica: o número de elefantes sempre é limitado.
Se o número de elefantes é limitado, o incômodo também é limitado, apesar de parecer enorme. E, com o tempo, ele tende a diminuir. Por isso que o número de elefantes aumenta e depois diminui.
6 – Cachorro
Lembrem: Galinha Pintadinha 2 é praticamente uma ópera. Começa falando de autoconfiança (música 1) para enfrentarmos o cotidiano (2) em meio a uma sociedade cruel (3) e pouco sustentável (4), sob enormes problemas (5).
Para enfrentar tudo isso, só o “melhor amigo”. Mas o cão é mais que um amigo: é a pausa para a diversão, a descontração, a certeza de que no meio desse turbilhão haverá espaço para a celebração da amizade. O tom descontraído da música traz a melodia perfeita para esse momento de retomada, de recarregar as energias. Um épico.
7 – O pescoço da girafa
Essa celebração da amizade continua na música seguinte. A girafa naoprecisava ser amiga da galinha pintadinha. A girafa podia olhar todo mundo de cima pra baixo de quisesse. Mas não, a girafa é humilde e procura as características em comum pra ser amiga. A mensagem da música é de que a amizade é isso, no final: buscarmos coisas em comum com as pessoas que amamos para termos uma justificativa para continuarmos com elas. Porque é a amizade que faz com que consigamos enfrentar de peito aberto o cotidiano e todos os seus problemas.
8 – Mestre André
Lembrem: Galinha Pintadinha 2 é uma ópera. É a história da galinha pintadinha que recupera a sua confiança para viver o cotidiano, ganha consciência social e vê na amizade o antídoto para os problemas da vida.
E agora começa a viver a beleza da cultura. O primeiro passo para viver a cultura sem amarras e sem preconceitos é a loja do Mestre André: todo tipo de instrumentos musicais, muitos deles chamados por seus nomes tradicionais e não pelos “nomes de ópera”. A celebração da música como manifestação das diferentes culturas.
Além disso, há outro componente de vanguarda aí: Mestre André é Negro. Só vive de fato a cultura quem se despoja de seus preconceitos, dentre eles o racismo.

9 – Borboletinha
Em Borboletinha, emerge o segundo aspecto da viagem cultural da Galinha Pintadinha: a gastronomia. E, junto com a gastronomia, surge a culinária como elemento de sabedoria tradicional, evocando raizes profundas da sociedade, tocando em seus mitos fundadores.
Isso explica as relações de parentesco formais e baseadas em afeto. Os ingredientes “de bruxaria” usados na confecção do chocolate. O ritmo crescente, condizente com a expectativa de uma criança em ver uma receita pronta no fogão. Tudo tratado com uma sensibilidade ímpar.
10 – Sapo Cururu
Agora a viagem cultural da Galinha Pintadinha ganha cores e nuances concretas. Ao recuperar essa música, sem tirar os aspectos regionais dela, os criadores mostraram em detalhes o modo de vida do sertanejo, a sua simplicidade, expondo diferentes vivências. Aqui estamos falando de um modo de vida vivido na beira do rio, com uma musicalidade característica e pretensões humildes como a de ter um bom casamento. O retrato do sertanejo que sabe que a vida é difícil, mas também encontra beleza nessas dificuldades. Uma lição de vida.
11 – A Canoa Virou
Depois disso, mais um passo na viagem cultural da Galinha Pintadinha. Perceber como os brancos podem prejudicar a cultura milenar indígena. A Canoa Virou é sobre isso. Um questionamento sobre o que fizemos de errado em nossa relação com os povos nativos.
No contexto maior do álbum, que celebra a amizade como a melhor maneira de encarar os problemas cotidianos, o que é “não saber nadar”? É não saber celebrar as amizades como ferramentas transformadoras de contextos. É isso causa o que? Briga, separação e, no limite, até a morte. Não é à toa que, embora não seja uma música triste, “A Canoa Virou” é a melodia em tom mais melancólico do álbum. É uma música sobre o que poderíamos ter sido e não fomos, por não abraçar as diferenças e a natureza.
12 – Pombinha Branca
Depois do momento mais introspectivo em “A Canoa Virou”, a Galinha Pintadinha garantiu que as coisas não dessem errado novamente. Pombinha Branca é uma música sobre a coragem do enfrentamento e sobre o protagonismo feminino contra relacionamentos abusivos.
Pombinha Branca é sobre uma proposta de casamento. É sobre o que fazer quando o machismo provoca comportamentos abusivos (o noivo cuspiu!). A mulher não deve se calar, não deve ser diminuída, não deve permitir abusos. Uma mulher independente com a autoestima em dia não tolera isso!
Aqui, a Galinha Pintadinha usa toda a experiência que já adquiriu pra se impor sobre uma situação que fatalmente se tornaria em abuso se a personagem feminina não soubesse se posicionar. Uma lição, sem dúvidas!
13 – Meu Galinho
Outro épico. Toda a experiência prévia da Galinha Pintadinha foi essencial pra que ela pudesse empreender essa verdadeira jornada do herói que é “Meu Galinho”. Mais uma vez vemos aqui a opção preferencial pela relação. Uma opção com consequências práticas:
- Nossa protagonista ficou três dias sem dormir após perder o galinho
- Nossa protagonista viajou pelo Mato Grosso, pelo Amazonas e pro Pará antes de finalmente encontrar o galinho no Sertão do Ceará.
Isso só mostra até onde a Galinha Pintadinha vai por uma amizade. Quantos perigos a galinha pintadinha passou nesse trajeto? Quantas vezes esteve cansada, sofrendo? Mas nada disso importava. Importante era o reencontro, a amizade, a celebração da vida. E nós encontramos tudo isso em Meu Galinho, um dos pontos altos do álbum.
14 – Se essa rua fosse minha
Aqui, a jornada passa da amizade para o amor. Depois da tentativa frustrada em pombinha Branca, aqui e na próxima música finalmente vemos a cumplicidade que só o amor pode trazer. A Galinha Pintadinha trilhou toda a sua jornada para encontrar o amor.
O interessante é perceber que o amor não está necessariamente vinculado a um relacionamento físico. O amor é expressado em sua forma platônica (ver meu amor passar) e também não há nenhum problema em reconhecer a beleza da solidão e como ela nos toma de assalto às vezes.
15 – Alecrim Dourado
Aqui é o final. O Alecrim Dourado nada mais é do que o presente de celebração do amor. O momento de alegria, sem preocupações, num campo cuja descrição remete ao paraíso. No final, a jornada do álbum todo era em direção ao amor, e agora ele finalmente pode ser celebrado.
Em um álbum de quinze músicas a Galinha Pintadinha aprendeu a ser autoconfiante para encarar o cotidiano, reconhecendo as questões sociais e celebrando a amizade contra os problemas da vida. Adquiriu cultura e se livrou de abusos até finalmente viver sua própria história de heroísmo e encontrar o amor.
Nessas alturas, é impossível não considerar Galinha Pintadinha 2 uma das grandes obras do nosso cancioneiro.