O Backlash da Democracia, a Esquerda Meritocrática e a Sobrevivência do Planeta

Backlash é um termo inglês que significa, originalmente, um monte de coisa: repercussão, batida, sacudida. Essas definições pouco específicas acabaram ficando em segundo plano à partir do momento em que se começou a usar o termo com conotação política, tentando denotar a reação a uma mudança. A ideia de backlash como reação violenta a uma mudança se popularizou. De acordo com o Cambridge Dictionary (aqui), o backlash é “um sentimento forte entre um grupo de pessoas em reação a uma mudança ou a um evento recente na sociedade ou na política”.

Esse sentimento normalmente se manifesta com mais força em situações de crise ou de mudança acelerada da sociedade. A crise leva as pessoas a cultivarem um sentimento de nostalgia que é bastante compreensível: se as coisas estão ruins agora, convém lembrar de um passado distante em que elas não eram tão ruins assim. E, geralmente, esse momento é o da juventude, do vigor físico, da “formação de caráter”. E isso é normal: as memórias que permanecem décadas depois são romantizadas, porque a recordação não traz consigo o sofrimento da situação.

Vamos falar de coisas triviais para a realidade brasileira dos anos 60 e 70, como o fato de que só se consumia carne uma vez uma ou duas vezes por semana (peço perdão aos vegetarianos, mas até bem pouco tempo atrás o consumo de carne era um indicador relativamente confiável de renda familiar). Ou que doces e refrigerantes eram itens supérfluos, reservados apenas às famílias mais ricas. Ou que televisão era artigo de luxo e normalmente só uma ou duas casas tinham o aparelho em cada rua. Quando essas lembranças vem, são de uma maneira romântica, acompanhadas de uma expressão “ah, aquilo que era vida”. Mas ninguém se dispõe a viver sem televisão ou a deixar de comer doces porque “antigamente era melhor”: a nostalgia traz mesmo esse artifício mental.

E por que eu falei especificamente dos anos 60 e 70? Porque essas duas décadas são os alvos de nostalgia do brasileiro acima de 50 anos, como se tivessem sido momentos idílicos de nossa história. E isso tem um motivo simples: a propaganda desmedida da ditadura militar, que saiu do armário com as redes sociais e ajudou a eleger Jair Bolsonaro Presidente da República.

O Brasil tem um contexto muito específico nesse sentido: a ditadura militar produziu anos de crescimento econômico em um ambiente de censura, em que as informações contra o governo não eram divulgadas pelos grandes meios de comunicação. Todas as tentativas de desmentido da máquina de propaganda da ditadura militar foram bastante tímidas, tanto que os mesmos órgãos de imprensa que adotaram postura colaborativa com o regime militar seguem mandando no país. A redemocratização é vista até hoje por grande parte da população brasileira como uma “concessão” dos militares ao povo. Na verdade, os militares foram covardes: após falirem o país em 1982, os militares não quiseram mais administrar a insatisfação da população e decidiram aceitar o processo de redemocratização, não sem antes atuarem ativamente por uma eleição presidencial indireta em 1985.

É bom ressaltar que essa falência foi literal: o Brasil chegou a um ponto em que não tinha mais como pagar as contas do próprio governo em 1982 (mais detalhes, aqui). Os EUA de Reagan ofereceram ajuda ao Brasil, mas ela teve um preço alto: o alinhamento incondicional aos EUA na Guerra Fria e a aprovação de propostas encaminhadas pelos americanos ao GATT (órgão que seria substituído pela OMC em 1995). Tudo porque os militares endividaram o país de forma irresponsável para fazer as obras de infraestrutura que hoje Bolsonaro aclama como maravilhosas. Como a imprensa era censurada e não havia como denunciar a corrupção dos representantes do regime, acabou ficando essa percepção equivocada de que “não havia corrupção na ditadura. Nada pode ser mais equivocado.

Aliás, existiu uma coisa que foi mais equivocada sim: a abertura democrática brasileira. Além da anistia geral e irrestrita, que impede a punição de torturadores e assassino que atuaram a serviço do aparato repressivo da ditadura, a abertura não se deu de forma completa: os atores políticos que estavam na Arena seguiram suas carreiras normalmente. Tudo isso contribuiu para um cenário bastante confuso, em que a Constituição de 1988 foi um sopro bem vindo de cidadania, mas a democracia sempre foi condicional.

A ditadura brasileira não morreu, apenas se envergonhou. Mais do que isso: ela se calou, foi colocada em stand by. O fracasso retumbante do regime não permitia defesas apaixonadas. O medo de punição também não. Os militares envolvidos nas atrocidades do regime ficaram calados por décadas, afastados da esfera pública enquanto manifestavam orgulho de seu legado repressivo em ambientes particulares, como o Clube Militar.

Esse cenário se modificou progressivamente dos anos 2000 em diante. E existem diversos fatores envolvidos nisso. O primeiro deles é a eclosão e a progressiva popularização das redes sociais. É notório que as redes criaram grupos de afinidade, já nos anos 90. Manuel Castells fala sobre isso em “O Poder da Identidade”. Uma das identidades que Castells mostra é a de legitimação, em que o viés de confirmação é decisivo: as relações de afinidade se constroem com base em opiniões parecidas sobre assuntos específicos, e essas opiniões levam a construção de uma espécie de “espírito de corpo”, manifesto em comunidades fechadas, tais como eram as antigas comunidades do Orkut ou como são, atualmente, os grupos de WhatsApp ou do Facebook.

É necessário aqui enfatizar a questão das comunidades fechadas por um motivo simples: nessas comunidades, as pessoas se sentem acolhidas e passam a compartilhar aquelas que são suas opiniões particulares. Essas opiniões, em muitas oportunidades, não são aceitas na esfera pública. O compartilhamento dessas opiniões em espaços de afinidade privado fez com que elas fossem ganhando massa crítica até serem reinseridas, aos pouco, no debate público. O revisionismo em relação a ditadura militar foi um desses temas. Mas essa inserção foi muito minoritária, e percebida por pouquíssima gente até que isso chegasse ao mainstream.

As redes podem ter tido um papel decisivo na formação de massa crítica, mas não são as “grandes culpadas”. A ideia de um backlash da democracia não se dá apenas com a agregação de ideias contrárias em grupos fechados nas redes sociais e com a defesa posterior dessas ideias em público. É necessário um contexto em torno disso. E esse contexto é o de crise. A sociedade atual, pós Guerra Fria, prometeu o “fim da História”, mas entregou um estado de crise permanente. Porque a financeirização do capitalismo e a transformação do paradigma informacional trouxeram profundas mudanças ao mundo econômico, mas essas mudanças não se refletiram necessariamente na distribuição de riquezas por toda a sociedade, especialmente após a Crise de 2008, que, em alguma medida, atingiu todo o mundo. A Crise de 2008 teve um papel decisivo no recrudescimento do discurso antidemocrático mundo afora, uma vez que ela mostrou da maneira mais crua possível a insuficiência do modelo de democracias liberais em responder a corrosão do bem estar social.

Nesse momento, os movimento conservadores elegeram um grande culpado pelo fracasso da democracia liberal. Sendo conservadores, obviamente esse fracasso não seria o do modelo capitalista em si, de base liberal. A culpa passou a ser, então, da democracia. Porque a verdade é que a democracia nunca foi o grande pilar do projeto capitalista. Quem vive em países periféricos sabe muito bem disso. No entanto, a democracia foi vendida pelo sistema capitalista durante a Guerra Fria como diferencial capitalista em relação aos modelos estatistas praticados pela União Soviética e pelos demais países do bloco socialista. E isso deu muito certo: a grande maioria daqueles que nasceram no pós Guerra vêem democracia como sinônimo de capitalismo, e socialismo como sinônimo de regime ditatorial. Quando a “regra” era quebrada, como no caso das ditaduras latino americanas, o argumento era sempre o mesmo: “estamos passando por um momento não democrático, mas a democracia logo virá. Esse momento é necessário para combatermos o risco do socialismo, mas assim que o risco passar a democracia volta”. A lógica do discurso capitalista durante a Guerra Fria era sempre a da associação do capitalismo com a democracia. Os militares passaram 21 anos administrando uma ditadura no Brasil prometendo “a breve volta da democracia”.

Com o fim da Guerra Fria e o colapso do socialismo em âmbito global, esse cenário mudou completamente. E, na primeira grande crise, o óbvio se descortinou: como não há mais opção ao capitalismo, também não há mais motivo para associar a democracia ao capitalismo. O capital pode perfeitamente ser autoritário para implantar sua pauta. E, não tendo mais socialismos para culpar, culpa-se a democracia pela crise. Afinal, a democracia faz com que o estado seja grande, faz com que as demandas por bem estar social sejam mais intensas, e faz com que as estruturas governamentais sejam voltadas aos cidadãos, e não aos mercados.

E qual é a melhor maneira de descredibilizar a democracia? Associando essa estrutura de bem estar social que a democracia nos proporciona ao… socialismo. E espalhando isso nesses grupos fechados. Esse não é um fenômeno brasileiro: é um fenômeno mundial. Que remete, em vários países, ao momento histórico imediatamente anterior à consolidação das democracias nesses lugares: o nacionalismo, ou, em palavras mais robustas, o último momento em que um governo autoritário esteve no poder.

Obviamente, esse critério exclui, no caso dos países do Leste Europeu, os anos sob dominação socialista. A celebração, no caso deles, é a quem lutou contra o socialista. Na Ucrânia, a Ukrainian Insurgent Army, que se levantou contra Stálin na Segunda Guerra Mundial, lutando ao lado dos nazistas, passou a ser celebrada. Na Polônia e na Romênia, movimentos similares de celebração do nacionalismo começaram a ocorrer. Na Inglaterra, a luta pelo Brexit passou a ser sinônimo de luta pelo retorno idílico a um tempo em que o sol nunca se punha no Império Britânico.

Nos Estados Unidos, uma situação curiosa ocorreu. O país se vende como sinônimo de democracia desde a sua fundação, em 1776. Para vender um projeto antidemocrático, Donald Trump não poderia apontar para nenhum momento específico da história norte americana sem se inviabilizar. Se apontasse na direção dos confederados, por exemplo, seria rejeitado por grande parte da população do país ao se vender como racista. Nesse contexto, a opção de Trump foi ser genérico. “Make America Great Again”, sem nunca explicar qual seria a referência desse “again”. É notório que a estratégia deu certo: Trump capitalizou em cima da insatisfação de muitos grupos dentro do país.

Ao falar “Make America Great Again”, Trump dava um recado difuso sobre a sensação de crise que muitos americanos ainda tinham em 2016, ainda que o governo Obama dissesse que tudo estava indo bem na economia. Em alguma medida até estava sim, mas o crescimento econômico não implicava em distribuição da riqueza para a população. “Make America Great Again” remete a um passado idílico, onde não havia crise. A QUALQUER passado idílico, e isso lembrava qualquer coisa: para os baby boomers, os anos 50 e 60, em que os EUA se desenvolviam rapidamente e realizavam proezas como levar o homem à Lua. Para quem veio depois, os anos 90, da vitória sobre o comunismo e da euforia com o que viria depois. Para os mais jovens, a lembrança de um tempo que eles nunca viveram, e que só ouviram falar pelos relatos de seus pais e avôs.

A insatisfação serviu para vender um projeto autoritário. Um projeto de desmonte do estado de bem estar social e de aprofundamento das desigualdades existentes. Um projeto que se tornou vencedor porque contesta a democracia prometendo algo genérico que soa melhor do que ela. Sim, porque a democracia é a causa da crise, e não o sistema capitalista. Se for necessária subjugar a democracia para manter o sistema capitalista em pé, Donald Trump não vai hesitar em nenhum momento.

No Brasil, a crise de 2008 chegou retardatária, mas excepcionalmente forte. O que o ex-presidente Lula chamou de “uma marolinha” em 2008 voltou com toda a força à partir de 2013, quando a economia perdeu tração e a insatisfação de diversos setores da sociedade passou a ficar mais visível.

Existem várias teorias sobre as manifestações de junho de 2013. O que nenhuma dessas teorias dá conta é de explicar por que a revolta contra um aumento de 20 centavos no preço do transporte público de São Paulo encontrou tanto respaldo na população. Pra variar, a insatisfação tem origem econômica. A maneira de mensurar o vigor da economia para a maioria das famílias é muito simples: as pessoas verificam se o mês cabe no salário. Desconforto existe quando o mês passa a não caber mais no salário. Daí os 20 centavos se tornam extremamente importantes. A evolução do endividamento e do comprometimento de renda das famílias, feito pelo Previ/BB, é um indicador que mostra o desconforto da situação em 2013:

Endividamento das familias, 2005/2017. Fonte: Previ/BB

Qualquer análise política precisa estar assentada no mundo real. Endividamento das famílias é um indicador muito bom porque é um indicador com forte correspondência no cotidiano. A sensação de receber o salário e ver que ele já está todo comprometido é uma das sensações mais terríveis que uma pessoa pode ter, especialmente se ela tem a incumbência de sustentar uma família. É algo que traz desconforto em todas as áreas da vida: alimentação, saúde, lazer, educação, tudo fica comprometido. Deixar de fazer algo essencial para a rotina de uma família por falta de dinheiro é algo que traz uma sensação de desalento enorme, e essa sensação de desalento invariavelmente vai se tornar uma insatisfação latente, tendo a classe política como principal alvo. É o que passou a ocorrer no Brasil desde 2013 e, no limiar do final da década, segue sem solução. Porque a grande maioria dos formuladores de políticas públicas não consegue enxergar esse desalento generalizado como um problema.

Enquanto esse desalento permanecer, a instabilidade política irá permanecer. E é justamente esse desalento que foi utilizado pelas forças antidemocráticas de plantão para deixar orgulhosa os porões da vida privada. Afinal, para essas pessoas, a crise e o desalento das pessoas que participaram das manifestações de 2013 não era só uma sensação de desconforto: era a prova que eles precisavam de que os quase 30 anos de democracia no Brasil “fracassaram”.

No Brasil, é fácil fazer uma referência ao último período autoritário. Boa parte das pessoas que viveram a ditadura civil-militar de 1964-1985 ainda estão vivas, e, para muitas delas, as lembranças não são necessariamente ruins. Elas viveram sob um cenário de censura e de medo: os aspectos negativos da ditadura não entravam no debate público, e a ditadura militar também conseguiu exercer relativo controle sobre a vida privada, através do medo das delações. Criticar o regime, mesmo na esfera privada, bem como andar com pessoas “subversivas”, era algo bastante perigoso, podendo motivar investigações ou visitas das forças repressivas de plantão. A ditadura foi extremamente bem sucedida em suprimir a discussão política do cotidiano da maior parte da sociedade brasileira, e isso traz reflexos negativos até hoje. Mais referências sobre o tema podem ser encontradas no texto “Fatos e Falácias sobre a Ditadura Militar Brasileira”, publicado aqui.

A questão é que as manifestações de 2013 e o desalento das pessoas com a sua condição de vida tornaram o discurso antidemocrático mais permeável a uma parcela expressiva da sociedade. No Brasil, há um agravante: todo esse processo ocorreu sob um governo de esquerda, e isso forneceu o argumento perfeito para os críticos da democracia: “precisamos lutar contra o comunismo da mesma maneira que os militares fizeram em 1964”

Perceba aí que há o resgate do discurso utilizado pela ditadura militar. Para os militares, o Brasil nunca viveu sob uma ditadura, mas esteve apenas sob um momento de “pausa democrática” que durou 21 anos, sempre com o objetivo de “suprimir a ameaça comunista”. Então, a conclusão posterior é simples: a pausa democrática é necessária e legítima sempre que for necessário suprimir a “ameaça comunista”. A lógica, no caso brasileiro, é essa. No mundo todo, existem lógicas similares, por um motivo muito simples: a Guerra Fria inseriu no imaginário global que capitalismo é sinônimo de democracia, enquanto o comunismo é sinônimo de regime ditatorial. A associação automática entre capitalismo e democracia é o que possibilita essa lógica ocorrida na ditadura militar brasileira (e em diversos regimes ditatoriais mundo afora) de que, em algumas ocasiões, é necessário promover regimes ditatoriais para defender a democracia. A verdade é que esses regimes ditatoriais sempre são defesas do capitalismo, e não da democracia.

Repare que não há nenhum juízo de valor sobre a questão do capitalismo como sinônimo de democracia. Em nenhum momento a precisão dessa tese foi analisada. Até porque existem exemplos suficientes mundo afora para desmentir a lógica de que o capitalismo é sinônimo de democracia. Mas a Guerra Fria criou uma narrativa nesse sentido. E essa narrativa é uma narrativa vencedora, no sentido de que justificou diversas ações militares mundo afora. E é vencedora até hoje, no sentido de que grande parte das pessoas não consideram essas ações militares condenáveis, mesmo quando elas resultaram em regimes como o de Nestor Pinochet no Chile, por exemplo.

Esse raciocínio é necessário para compreender que a construção de uma sociedade na cabeça das pessoas é um processo complexo e cheio de nuances. Também é algo que não necessariamente tem um referencial lógico. Inclusive, o capitalismo liberal meritocrático, padrão no Ocidente pós Guerra Fria, traz fortes consequências em relação a criação desse ressentimento, que foi essencial nessa negação atual da democracia por trumpistas, bolsonaristas e por outros grupos que hoje defendem abertamente regimes autoritários, quando não o nazi-fascismo.

A penetração da ideia de meritocracia na centro-esquerda, a partir dos anos 90, fez com que o discurso de estado entrasse na esfera da “responsabilidade pessoal”, fazendo com que a esquerda adotasse um discurso de “superioridade moral” que esvaziou causas de esquerda e, em alguma medida, contaminou o campo progressista com aquilo que o campo progressista mais temia: o discurso conservador.

Nesse sentido, o discurso meritocrático tirou do campo progressista o seu grande diferencial:  a noção de processo revolucionário. As pautas deixaram de representar rupturas e passaram a representar aceitação ao modelo. As demandas passaram a ser por adaptação e não por superação do que Milanovic chama de “capitalismo liberal meritocrata”.

Sindel diz que duas retóricas embasam o discurso meritocrata: a retórica da responsabilidade pessoal e a retórica da ascensão (SINDEL, 2021). A primeira retórica diz respeito justamente a essa superioridade moral característica da meritocracia. A humanidade deixou de lado milhares de anos de pensamento filosófico para desenvolver um pensamento profundamente autodependente, baseado quase que apenas em um processo individual de atribuição de pensamentos e atitudes aceitáveis ou não. Isso traz um problema tão grave quanto óbvio: a falta de atenção aos contextos, que em sistemas capitalistas tendem a ser profundamente desiguais. Autores liberais igualitários (e aqui falamos especificamente de John Rawls), buscam resolver essa questão com limitações às diferenças entre as pessoas, no sentido de proporcionar os maiores mínimos possíveis em relação aos insumos, liberdade de escolha e uma noção de justiça que remete à equidade, embora os mecanismos para a promoção dessa equidade ainda sejam alvo de muita discussão.

A retórica da ascensão, por sua vez, reside numa criação de expectativas. A grande sacada do capitalismo nos últimos 200 anos foi o estabelecimento de uma profunda e arraigada retórica de promoção da possibilidade de mobilidade social através do capital. No século XIX, essa retórica permeou o discurso dos grandes capitalistas monopolistas estadunidenses que surgiram “do nada”, como John Rockefeller e Andrew Carnegie. No século XX, embalou os sonhos dos grandes industriais, vistos como modelos e referências para grande parte da sociedade no tema da atuação empresarial. No século XXI, com o encontro do capitalismo financeiro com a era da informação, esses modelos passaram a ser “gurus”, no sentido de serem modelos não apenas em relação a atuação empresarial, mas principalmente em relação a um estilo de vida aceitável pela sociedade, refletido no sucesso financeiro, em uma rotina de palestras com o mote “repita a minha fórmula” e em hábitos de consumo que se tornam os hábitos de consumo desejáveis por toda a sociedade. Novamente, uma retórica de superioridade moral capitalista. Até a generalização do discurso da meritocracia, os setores progressistas da sociedade se voltavam contra essa retórica. Após a queda da Cortina de Ferro, as pautas de grupos oprimidos da sociedade acabaram se reduzindo à incorporação em um modelo capitalista “vencedor” que parecia o único modelo de sociedade possível.

Hoje, grande parte dos embates públicos na sociedade capitalista são entre uma centro-esquerda meritocrática e aderente ao neoliberalismo, incapaz de sonhar com outro modelo de sociedade, contra uma direita ressentida, anticientífica, com um desejo de destruir todas as estruturas estatais e com severas inclinações autocráticas, por ser incapaz de defender suas posições de forma racional. No meio disso, uma centro-direita neoliberal que é aderente às pautas de destruição de estado, mas não concorda com os métodos autoritários dessa direita ressentida. Parece um impasse difícil de resolver.

Esse cenário não tira a legitimidade dos atores envolvidos. Lutas como a antirracista, a luta pela igualdade de gêneros e a luta pelos direitos LGBTQ+ são extremamente importantes, em um sistema que tem como característica o sufocamento desses grupos. O capitalismo sobrevive e se reproduz com uma lógica que chegou ao seu ápice com o conceito de meritocracia, em uma eleição eterna de vencedores e de perdedores, de opressores e oprimidos. Hoje, muitos desses grupos historicamente desprezados deixaram de lado o sonho de transformar a sociedade em uma sociedade não capitalista, não pautada pela meritocracia, para lutar apenas por uma mudança de posicionamento dentro dessa sociedade meritocrática. O objetivo não é mais transformar nossa sociedade em um modelo de sociedade que não reproduza mais as relações de opressão, e sim lutar contra opressões pontuais sem necessariamente questionar as bases dessa sociedade meritocrática.

Por outro lado, a direita ressentida esteve historicamente em uma condição de opressora nessa sociedade, e não à toa que muitos expoentes dessa direita se orgulham em utilizar esse adjetivo como forma de se definirem. A sociedade capitalista atual, de base meritocrática, questiona essa condição de privilégio nesses grupos, fazendo com que esses grupos questionem o próprio modelo, com forte aderência de uma classe média nostálgica dos tempos de bem estar social no pós guerra. Esse ressentimento é o ressentimento do norte-americano que viu sua condição de vida se deteriorar após a crise de 2008, mas também é o ressentimento das elites brasileiras que não querem compartilhar aeroportos com uma classe média ascendente por meio da inclusão no mercado consumidor, nos idos de 2010.

Esse ressentimento tem duas vias com forte intersecção entre si: a nostalgia de quem já tinha uma condição de vida razoável e perdeu isso por conta do aumento da competição em escala global à partir da guinada neoliberal dos anos 80, que deteriorou a qualidade dos empregos desse grupo social; e a via de quem sempre foi privilegiado e agora vê que seus privilégios estão cada vez mais ao alcance de todos, o que, de certa forma, coloca essa situação de privilégio em risco. É o ressentimento de quem já perdeu qualidade de vida e o ressentimento de quem tem medo de perder qualidade de vida. E ambos os grupos se voltam contra a ideia de mobilidade social e de combate às desigualdades sociais.

Os neoliberais, por sua vez, referendam quase que completamente o discurso da direita ressentida, mas sem a parte do ressentimento. Eles também veem a desigualdade social e as situações de privilégio com bons olhos, com o adicional de que eles julgam ter uma justificativa econômica para isso. A autorregulação dos mercados é justificada com um viés de meritocracia: a riqueza, que historicamente era vista como usura em sociedades cristãs, passa a ser vista como manifestação do sucesso e de que Deus se agrada de você. E isso cria um ressentimento de duas mãos: a centro-esquerda se sente negligenciada nesse processo, pleiteando a inclusão de novos grupos nesse modelo meritocrático e a direita ressentida se sente alijada desse processo, acusando o sistema de ser cooptado por forças comunistas, de não ser meritocrático o suficiente, de não proporcionar liberdades fundamentais, na visão deles, como a liberdade de manifestação de seus próprios preconceitos e de proporcionar a eliminação física de seus oponentes. Sim, é uma visão essencialmente fascista.

Nessas alturas, parece claro que o problema está no próprio capitalismo liberal meritocrático. É a meritocracia que deve ser combatida. E, partindo nessa necessidade, é preciso um enorme esforço de todos para construir uma sociedade cooperativa, em que relações de opressão sejam cada vez mais irrelevantes. A sociedade capitalista não deve ser só denunciada e combatida, deve ser superada.

Ao mesmo tempo em que o cenário parece difícil, também parece um cenário de oportunidades. O momento atual é decisivo para a história da humanidade, por uma questão de sobrevivência. O Sixth Assessment Report do IPCC, em seu grupo I, mostra de forma inequívoca que a humanidade está diante do maior de seus desafios. É um desafio que atinge opressores e oprimidos, direita e esquerda, os que acreditam e os que não acreditam em meritocracia. A forma com que lidamos com o mundo nos últimos séculos, e especialmente após a Segunda Guerra Mundial estão tornando o modelo de sociedade capitalista liberal meritocrática baseada no consumo algo inviável. Consequências físicas são inevitáveis: é provável que até o fim do século países como Tuvalu sejam inabitáveis.

Tuvalu, ameaçada pelo aumento do nível do mar (Fonte)

Talvez seja o pior momento para uma crise climática. Mas talvez só um evento que afeta a todos seja capaz de proporcionar um questionamento ao estilo de vida insustentável e extremamente desigual que o capitalismo liberal meritocrático trouxe de legado ao mundo. Especialmente porque a direita ressentida é negacionista das mudanças climáticas. E sim, o negacionismo da ciência é um método entre esse grupo, uma vez que a ciência traz consigo um “ar de superioridade” que refuta as crenças místicas e nostalgicas de muitos deles em uma sociedade de privilégio definido por designação divina.

A luta pela democracia nos próximos anos não será só a luta pela democracia: será a luta pela sobrevivência. A humanidade vai sobreviver única e exclusivamente se destruir os meios e os fins de atuação da direita ressentida e antidemocrática. Só o consenso e a ação unificada na mesma direção será capaz de frear algumas das alterações no clima do planeta que já estão em andamento. Só que, para isso, a noção de meritocracia precisa ser superada, assim como a própria sociedade capitalista liberal meritocrática. Ainda que, aparentemente, esse não seja parte do debate público atual.


CASTELLS, M., O Poder da Identidade – A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura – volume 2, São Paulo, Paz e Terra, 1999

SINDEL, Michael J., 2021, A Tirania do Mérito, Civilização Brasileira

MILANOVIC, Branko, Capitalismo sem Rivais: o Futuro do Sistema que Domina do Mundo, Editora Todavia, 2020

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