Recentemente, Bolsonaro demitiu o Secretário de Governo, o General Santos Cruz. Para seu lugar, foi chamado outro militar, esse da ativa: o General Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, responsável pelo Comando Militar do Sudeste e que tem como grande feito em seu currículo militar ter sido o chefe da Minustah entre 2011 e 2012, na época que talvez tenha sido a mais traumática da missão, logo após o terremoto que destruiu o Haiti e ceifou mais de 200 mil vidas.
Além disso, convém lembrar que a Secretaria de Governo foi fortalecida por decreto no último mês de maio. Agora, tem funções como articulação política e nomeação de reitores de Universidades Públicas Federais. Colocar um General da ativa pra comandar o Ministério que talvez seja o mais importante do governo Bolsonaro daqui em diante é algo que só teve paralelo recente na América do Sul com Hugo Chávez, que aparelhou seu governo após a tentativa de golpe de 2002. Os militares se tornaram o baronato venezuelano. E o resultado, como era de se esperar, é catastrófico: a Venezuela está em um caos econômico e político, mas Maduro segue no poder graças a esse baronato de militares que ganha horrores parasitando a máquina pública. Bolsonaro quer construir algo similar no Brasil, e nada indica que ele não vá conseguir.
Mas eu não quero falar muito aqui sobre o currículo de Ministros ou especular sobre os rumos da caserna nos próximos anos, existem pessoas muito mais capacitadas para isso. Eu queria falar de processos, de ilusões, e de uma certa ordem no caos. E para isso vou usar alguns exemplos. Um deles é o do General Santos Cruz.
O General Santos Cruz não foi demitido do nada. Quer dizer, a demissão dele pode ter sido formalizada meio do nada, mas esse processo de fritura durou mais de um mês, quando o General começou a sofrer ataques quase inexplicáveis, insuflados principalmente por Carlos Bolsonaro, o filho do presidente que tem como responsabilidade destruir reputações alheias na Internet. Tudo por uma declaração inofensiva sobre controle de comunicações, interpretado pela horda de hienas do Carlos Bolsonaro e do Olavo de Carvalho como “censura à mídia”. Não é à toa que Santos Cruz disse em entrevista à Época que o governo era uma enorme bagunça. A parte irônica da coisa é que, após o vazamento das conversas do Moro, a postura dessa turma aí em relação ao tema “controle da mídia” mudou completamente.
Não sei se vocês repararam, mas eu organizei esse texto de forma bem caótica. Nessas alturas, você não deve estar entendendo mais nada. Eu fiz de propósito. É pra você entender como funciona o governo Bolsonaro. Nos quatro parágrafos anteriores, eu falei de uns quinze temas diferentes, sobrepondo as coisas, mesmo que um não tenha nada a ver com o outro. O governo Bolsonaro funciona exatamente assim. Jogando pautas. Fazendo todo mundo se mobilizar por um monte de coisas ao mesmo tempo. A confusão não é casual: é estratégia de governo. E sempre dá certo.
É só ver o que o Salles está fazendo com o Fundo Amazônia, por exemplo. Ou com a postura dos dois Ministros da Educação de perseguição às Universidades, que ensejou manifestações enormes pelo país. Nada disso frustrou os planos de Bolsonaro. De um jeito ou de outro, ele consegue o que quer.
Querem outro exemplo? Na MP de reorganização administrativa no início do ano, Bolsonaro mandou a demarcação indígena pro Ministério da Agricultura. Sim, ele botou os ruralistas para demarcar terras indígenas. O Congresso obviamente derrubou esse absurdo e colocou a demarcação de volta para a FUNAI. O que Bolsonaro fez? EDITOU OUTRA MP repassando a demarcação pro Ministério da Agricultura. O Bolsonaro se alimenta do conflito. Quando não consegue criar crises com a população, cria conflitos internos. É estratégia.
E estratégia pra que? Estratégia de mobilização permanente. A crise permanente é a única forma de manter a base mobilizada. E, sim, Bolsonaro tem uma base. É inocente achar que a base do Bolsonaro é volúvel. Vejam o caso dos evangélicos, por exemplo: os valores que fizeram a maior parte desse grupo aderir ao Bolsonaro foram cultivados por uns 30 anos, ao menos. Eles não aderiram ao Bolsonaro de maneira casual. Aderiram porque enxergaram no Bolsonaro a defesa dos “valores morais” que eles defendiam. E também a defesa da liberdade de empreendedorismo que é a base da “prosperidade” em muitas dessas igrejas.
Outro exemplo: o conservadorismo brasileiro, que sempre teve tendências autoritárias, tinha no PSDB um instrumento de controle. Como partido de centro direita, o PSDB agregava e continha esses grupos conservadores, impedindo-os de assumir esse conservadorismo autoritário que sempre existiu. O Brasil foi o país da UDN, cazzo! Não é possível achar que soluções autoritárias e golpistas são privilégios de uma massa amorfa que surgiu de 5 anos pra cá.
Com o esfacelamento do PSDB, esse conservadorismo autoritário pôde se manifestar de forma orgulhosa e completa. E esse orgulho encontrou em Bolsonaro a sua expressão mais conpleta. Nada indica que essa turma vá abandonar Bolsonaro tão cedo: Bolsonaro é exatamente aquilo que eles queriam. É o personagem político com quem essa turma sonhava há mais de 30 anos. O “vingador da ditadura”. E essa turma inclui tanto os militares quanto a galera conservadora do Poder Judiciário que vê na manipulação de processos uma oportunidade de “eliminar o PT”.
E a elite econômica? Essa talvez seja o setor mais volúvel entre os apoiadores de Bolsonaro, mas enquanto houver patrimônio público para ser dilapidado, eles estarão lá. É uma oportunidade pública. Eles vão poder se apropriar de tudo o que puderem abraçar. É ilusão achar que essa turma vai abandonar o Bolsonaro tão cedo. Não vai.
O governo Bolsonaro é forte. É forte pra caramba. Tem tudo para se consolidar, e, caso se consolide, não sairá mais do poder. Bolsonaro já mostrou que não tem nenhum pudor de destruir as instituições democráticas para seus próprios interesses. E para isso, o cenário de crise permanente é necessário. Porque ele faz com que essa base esteja sempre mobilizada para fazer com que Bolsonaro imponha o seu projeto autoritário.
Isso é obviamente covarde. É sujo. É vil. Mas é uma estratégia vista em todos os governos dessa nova leva de autoritarismo mundo afora. Trump, Salvini, Erdogan, Orban: todos trabalham com esse caos. Todos criam uma ilusão de fraqueza pra se consolidarem no poder. Essa ilusão de fraqueza é essencial para a imposição do autoritatismo, por dois motivos: 1) ela desmobiliza a oposição, que passa a se considerar capaz de limitar o governo a qualquer momento; e 2) justifica todo e qualquer autoritarismo, afinal “existe uma grande conspiração e podemos cair a qualquer momento”.
A ilusão da fraqueza, nesse caso, é a força dos covardes. E subestimar essa força com base em derrotas superficiais no Congresso e comemorar o arranhão que você dá em seu inimigo enquanto toma uma facada no peito.
Mas, afinal, como vencer isso? Como vencer essa máquina geradora de crises? Se ignorarmos, eles tem o caminho aberto. Se respondermos, tornamo-nos reféns da armadilha deles. Os únicos movimentos nesse sentido que tem gerado algum resultado são os movimentos que, ao mesmo tempo, respondem à altura às provocações e elencam uma pauta propositiva, especialmente nas esferas econômica e ambiental. Nas eleições para o Parlamento Europeu, por exemplo, os Verdes tiveram seu melhor desempenho desde a formação da União Europeia. E isso porque, ao contrário da centro-esquerda, eles de fato tem uma pauta palpável (a ambiental) e medidas práticas para implementar essas pautas (energias renováveis, restrição de circulação de veículos em grandes cidades, iniciativas de fomento à “indústria limpa”)
Nesse sentido, os setores progressistas no Brasil seguem muito atrasados. A esquerda brasileira não conseguiu fazer nenhuma proposta econômica séria, por exemplo, que levasse em conta os trabalhos desenvolvidos pela equipe de Thomas Piketty. Não estamos discutindo com dados a questão da desigualdade além da academia. E isso é dar ao bolsonarismo uma narrativa pronta: “a esquerda quebrou o Brasil e não faz nada pra consertar, portanto nós (eu e o Paulo Guedes) podemos fazer qualquer absurdo aqui”.
Só que os absurdos que Bolsonaro e Paulo Guedes estão fazendo devem trazer mais crise ainda. Devem levar o Brasil e um cenário similar ao de Macri na Argentina, com a predisposição ao autoritarismo que Maduro tem na Venezuela. E a única solução para isso, em qualquer setor progressista, está em estabelecer uma agenda propositiva que confronte as medidas do Bolsonaro com propostas melhores, especialmente na área econômica.
É com essa mentalidade que Tábata Amaral tem se destacado na área da educação. É possível discordar com ela em um monte de coisa, mas ela tem feito algo que o PT se recusa a fazer: uma oposição propositiva. Além de apontar “Você está errado”, Tábata mostra aonde está o erro e ainda traz propostas para a área. O ideal era ter pessoas com a combatividade da Tábata em todos os setores, e, com base nessas propostas, discutir um plano de governo progressista que contemple a pauta econômica, a educação, a saúde, a segurança pública, a parte social, a infraestrutura, a política indústrial e todos os demais setores que devem estar contemplados em um governo. Visando o Planalto, sim, mas visando também as eleições municipais de 2020: o ideal é testar boas propostas nas cidades e nos estados para que elas estejam robustas quando forem apresentadas no plano federal. Nesse sentido, a Tábata é um exemplo de atuação para os demais parlamentares progressistas. Outro parlamentar com esse perfil tem sido o Marcelo Freixo, especialmente na área da segurança pública.
Mas esse processo não precisa começar do zero: existem bons exemplos vindo de alguns governos do Nordeste, em relação a vários temas, incluindo aí a gestão fiscal, que foi o grande calcanhar de aquiles dos governos progressistas após o péssimo exemplo deixado pelo governo Dilma. A esquerda tem se caracterizado nos últimos anos pela completa incapacidade de agregar as boas iniciativas existentes em planos robustos e coerentes.
É como se o processo de impeachment tivesse desencadeado um surto de amnésia coletiva na esquerda do país. Um derrotismo fatalista, em que “não adianta fazer nada porque vão nos destruir”. É um diagnóstico só parcialmente correto: se o bolsonarismo tiver o apoio da população vai destruir todo mundo sim. Mas o bolsonarismo só vai conseguir esse apoio consistente além de seus grupos naturais de apoio se os demais setores da sociedade não apresentarem nenhuma contraproposta.
O bolsonarismo conta com o imobilismo da esquerda. Com a incapacidade da esquerda de construir pautas. Só assim vai conseguir impor pauta após pauta, criando crises constantes e mobilizando sua base de apoio. E vende a ilusão da fraqueza justamente para fomentar o imobilismo e a atitude sempre reativa. A esquerda, desde o impeachment, só reage. Não age mais por conta própria. Não propõe pautas sensíveis. Quem propõe é a direita bolsonarista. Um exemplo: eram os bolsonaristas que estavam protestando junto com os caminhoneiros há um ano atrás. Eles criaram uma capacidade própria de mobilização e a esquerda não conseguiu responder a isso adequadamente ainda.
Um exemplo disso são as mobilizações em relação à educação. Tema nobre, tinha tudo pra dar certo. Em certa medida está dando. Três protestos massivos, reversão de alguns contingenciamentos, resultados pontuais. Mas o Weintraub continua no Ministério. É uma vitoria de pirro. E o tempo de 15 dias entre cada protesto é uma onda em que Bolsonaro surfa com maestria. Em 15 dias, já surgiram tantos factóides que a maioria nem lembra mais que precisa protestar por mais educação.
Eu não quero desanimar ninguém com esse texto, embora compreenda quem sente um certo desalento após ler tudo isso. Esse texto é, antes de tudo, um alerta. Um alerta de que a oposição ao projeto autoritário de Bolsonaro não é um sprint de 100 metros, como o próprio Bolsonaro quer fazer parecer. É, ao contrário disso, uma maratona, e uma maratona que está em seus primeiros quilômetros. Para vencer uma maratona, é preciso preparo, mas também é preciso ter inteligência e estrategia, para não estar cansado demais nos momentos decisivos, que demandam mais energia. A ilusão de fraqueza e de crise permanente que Bolsonaro tenta impor é uma estratégia para todo mundo gastar todas as suas energias nos primeiros quilômetros. Se todos fizerem isso, ninguém terá forças para se contrapor ao governo Bolsonaro quando os projetos realmente autoritários chegarem (e saibam, eles vão chegar).
Porque todo governo autoritário é covarde. E a ilusão da fraqueza é a força dos covardes.
É uma ótima análise, Leo. Agradeço demais tua paciência e persistência pra fazer e dividir teus textos, me ajuda a entender um pouco o monstro. E esse apontar de caminho é uma luzinha. Ainda assim é difícil não desanimar.
CurtirCurtir