O Caminho da Assertividade na Questão Fundiária

O Brasil está em um momento sui generis, sob o comando de um presidente de extrema direita, com atitudes absurdas diárias que visam desarticular a oposição, fazendo com que as pessoas sejam apenas reativas e caiam em desalento, porque ninguém em sã consciência tem preparo mental para combater essa distopia em que o absurdo se torna realidade todos os dias.

Reagir é obviamente preciso, porque existem pessoas que estão sendo vítimas desse governo hoje. Existem pessoas sendo fustigadas, pessoas sendo mortas pela polícia. Essa sensação de urgência faz com que nossa ação seja muito mais de denúncia do que de proposição. Mas, para todos os efeitos, a denúncia deve sempre vir acompanhada de proposição.

Bolsonaro fala e faz tanta coisa grave que fica difícil escolher uma delas para pinçar e denunciar. Mas vamos lá: Bolsonaro disse que fazendeiros tem “licença para matar” invasores de terra. E isso considerando que o Brasil perdeu nos últimos 3 anos 18% da Amazônia. Para piorar, tudo indica que o ritmo de desmatamento deva aumentar nos próximos anos.

É desalentador. Mas também é um desafio. Porque, apesar das políticas de preservação da Amazônia realizadas nos governos petistas, especialmente enquanto Marina Silva era a Ministra do Meio Ambiente, o passivo da esquerda com a Amazônia é enorme. Usinas como Belo Monte e Jirau expulsaram comunidades nativas e alagaram áreas imensas, além de abrirem espaço para que os trabalhadores da obra se tornassem garimpeiros ou agropecuaristas depois disso, sob as ordens de grileiros que foram se apossando de terras na região. Se vocês repararem no mapa fornecido pelo projeto MapBiomas, verão que os três estados com maior desmatamento recente são Mato Grosso, Rondônia e Pará. Mato Grosso teve forte pressão agrícola, com muitos platôs se tornando plantações de soja. Rondônia e Pará foi onde tivemos grandes usinas hidrelétricas instaladas.

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Esse é o contexto em que Bolsonaro quer impedir as invasões de terra agrícolas. O contexto do privilégio aos latifundiários ruralistas, que destroem a floresta para criar pastos pouco produtivos (os pontos amarelados do mapa) e conseguem a propriedade de terras que não são deles através de documentos frequentemente falsos. Além disso, pressionam os povos nativos que tem reservas na região a se afastarem. É aquela mentalidade chucra do tempo da ditadura em que o país pensava em povoar a Amazônia para não perdê-la em alguma conspiração internacional. Exatamente a mesma forma de pensar do atual presidente, que se embasa nas falácias de pseudocientistas como Ricardo Felício, que conjuga sua militância sem dados críveis contra a “falácia das mudanças climáticas” com candidaturas mal sucedidas pelo PSL.

Ok, é bastante óbvio que devemos nos revoltar contra assassinatos no campo, que já são muito mais frequentes do que deveriam no Brasil. Mas o que propor no lugar disso? É preciso pensar em um novo modelo econômico que seja capaz de, ao mesmo tempo, promover desenvolvimento econômico (não dá pra ignorar as demandas das populações locais) e preservar a natureza. E, para isso, as propostas progressistas tem que responder à altura ao radicalismo da direita. Enquanto o governo de centro esquerda do PT fez aliança com os produtores rurais, tentando conciliar as demandas dos latifundiários com as demandas dos assentados, o governo de extrema direita do Bolsonaro fala com todas as letras em bloquear qualquer disputa de terra com bala, privilegiando a monocultura e a pecuária improdutiva que destrói a floresta e forja títulos de posse de terra.

Qual seria a resposta progressista para isso? Reforma agrária de fato. Parece anacrônico falar isso, mas, em um contexto em que o agronegócio fala que tem direito de destruir a Amazônia, nunca soou tão atual. E mais do que isso: uma reforma agrária que proteja a floresta, fazendo um cinturão de assentamentos com sistemas de cultivo agroflorestais.

Pra quem não sabe, existem vários tipos de agrofloresta: o mais comum é usar toda a área da região para o plantio de árvores nativas com cultivos agrícolas nos espaços entre essas árvores. Sabe quem usa isso muito bem há vários séculos? Os indígenas. Além de recuperar a biodiversidade da região e proteger a Amazônia, formando um cinturão que impeça a savanização da floresta, nos moldes do cinturão anti-desertificação no Sahel africano, esse modelo favorece a agricultura familiar e o desenvolvimento econômico das comunidades locais, inclusive com a possibilidade de instalação de indústrias de processamento alimentício nas cidades ao redor.

Isso seria mais revolucionário, por exemplo, do que o Green New Deal proposto pela deputada americana Alexandria Ocasio-Cortez, e por um motivo muito simples: os EUA, com raras exceções, já destruíram completamente a sua cobertura vegetal, e o projeto da deputada democrata se centra na redução de emissões dentro de um contexto capitalista, fomentando a produção e o fornecimento de energia limpa. É muito nobre, mas o Brasil pode fazer ainda mais, criando uma modelagem econômica que preserve a floresta e ainda assim possa produzir alimentos em larga escala para o mundo todo.

Mas para isso é preciso coragem para romper com a lógica histórica de privilegiar o latifúndio. É a parte mais difícil do projeto, porque o latifundiário é intimidador. Só pensa nele e na sua terra, e mata por isso. Mas sem esse enfrentamento, qualquer proposta progressiva trará soluções que são apenas paliativas para problemas que se provam mais e mais crônicos a cada dia.

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