Parafraseando Alexis de Tocqueville, o texto fala justamente de como a democracia pode (e deve) sobreviver tendo em face os desafios do século XXI.
Existe um aplicativo onde eu frequentemente respondo perguntas (o link é esse) e uma dessas perguntas foi aprofundada a ponto de eu ter que responder aqui, no Medium. Segue a questão:
Cara, vou mandar a pergunta em partes, porque o botão “submit” some quando escrevo muito.
Há algum tempo presenciamos o crescimento dos determinismos identitários no mundo pós-Guerra Fria. Os fundamentalismos monoteístas, os nacionalismos ocidentais, o etnocentrismo na África. Para alguns autores, como Castells, Bauman e Hall, esse fenômeno é resultado de um inflexão entre a rede utilitária da globalização e a identidade, aliado a um descentramento do sujeito. Em um mundo mais compacto, as interações entre as sociedades aumentam. No cenário de crise, essas interações tensionam-se. A intolerância — constante na história da humanidade — se sobressai.
Rainer Forst diz que a tolerância pressupõe dois condicionantes principais: (1) um julgamento moral de que determinada prática é errada e (2) uma razão que justifique a convivência com aquela prática. Hoje temos um problema muito claro: perdemos as razões para tolerar o “errado”, que normalmente é associado ao diferente. Há uma crise dos valores democráticos, portanto, e um retorno à procura da pureza cultural.
Wallerstein aponta que esses valores democráticos foram construídos de forma particularista pela Europa, mas com pretensão universalista. No momento que o universal entra em crise e as sociedades buscam o particular, evidentemente esses valores serão abalados, pois não são endógenos, em grande parte. Todorov vai além: mostra como esses princípios ocidentais podem ser utilizados para dividir o mundo em civilizados x bárbaros.
Na esfera econômica, o ambiente é nebuloso. No Brasil, estamos aceitando qualquer cartilha neoliberal. Na Europa, há um vácuo de projeto econômico. Não caem no conto do neoliberalismo — pelo menos o que têm força pra resistir -, mas também percebem uma defasagem do novo velho modelo de bem-estar social, abalado na crise de 2008 — que ainda é a nossa. Nesse vácuo, discursos nacionalistas fundados na retórica do grande inimigo, vide Trump, ganham terreno. O capitalismo tardio encontra novas formas de se apropriar do nacionalismo. Indústria no começo do século XX. Setor financeiro no começo do XXI.
Milton Santos e Ellen Meiksins Wood afirmaram que a globalização depende do Estado-nação, do poder regional. A questão que fica é: a globalização depende do Estado, mas quem determina os processos? O Estado, de forma autônoma, ou o mercado? Não há resposta definitiva, acredito.
Chegamos à pergunta. É tempo de crise. Política, social e econômica. Os valores democráticos sobreviverão? O que deve ser feito para mantê-los e reforçá-los? Quais são os desafios nessa missão?
Obs.: vi que você é leitor do Zizek, então me permiti fazer as “perguntas difíceis” e pensar, contigo, os problemas antes das respostas.
Forte abraço!
O lado bom das reflexões do Curious Cat é que elas são anônimas, e justamente por isso permitem reflexões complexas e bem fundamentadas cono essa, sem nenhum comprometimento (ok, o anonimato também faz com que rolem um monte de ofensas lá, mas essas daí a gente abstrai, em nome da manutenção da sanidade)
Aparentemente, um bom ponto de partida está no próprio Castells, em seu segundo livro sobre a Sociedade em Rede. Lá ele mostra como a globalização e a utilização das novas tecnologias traz dois efeitos: a afirmação de identidades de resistência, tendo em vista a sensação de “sufocamento” imposta pelo novo paradigma tecnológico e por seus efeitos em relação à globalização.
Mas essa ideia não é nova. Em 1903, Georg Simmel publicou o ensaio “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito”, já tratando de um fenômeno que foi exponencialmente escalonado em Castells: para Simmel, a vida nas grandes cidades maximizava as conexões e suprimia a individualidade, e isso fazia com que as pessoas ou reafirmassem individualmente ou criassem identidades de grupo.
Essas identidades de grupo tem várias camadas. No início do século XX, elas foram adquirindo um conponente local, que se revelou um forte complemento ao componente nacionalista dos governos europeus da época. Quando esses componentes identitários saíram do controle, a retórica nacionalista adquiriu ares histéricos e provocou a Primeira Guerra Mundial (existem outros fatores, é bom dizer, mas nenhum analista sério deixa de colocar o nacionalismo europeu, insuflado pelo imperialismo e pelo neocolonialismo, como um dos motivos principais para a guerra)
As leituras de sociedade semelhantes em dois periodos tão distintos mostram que a afirmação das identidades, embora relevante enquanto mecanismo de defesa de processos de opressão, tem papel deletério na medida em que cria grupos antagônicos. A sociedade passa a se dividir de acordo com a identidade adotada: os cidadãos são aqueles que compartilham das mesmas identidades. Quem não compartilha das mesmas identidades de grupo é progressivamente destituído: primeiro de sua cidadania, e depois de sua própria humanidade.
A coincidência entre as percepções de Simmel e Castells (e de Bauman, e de Hill) é um enorme alerta para os tempos atuais: essa afirmação gritante de identidades, catalisada pelas novas tecnologias de informação, em especial a Internet, com foco na capacidade reprodutiva das redes sociais, está formando grupos identitários que promovem a desumanização, de forma progressiva, de quem não se identifica com as mesmas opiniões. E isso indiferente do tema: pode ser política, religião, futebol ou qualquer coisa que contribua para a construção de uma identidade que soe popular no contexto atual.
Esse processo é ainda mais catalisado pelo fato de que essa criação e consolidação de identidades se dá essencialmente pela Internet. O caráter impessoal da rede facilita enormemente os processos de criação de inimigos, com sua posterior desumanização. Essa desumanização inviabiliza parte expressiva das redes sociais como instrumentos de aprendizado contínuo através da discussão, afinal, na impossibilidade de destruição do inimigo, a estratégia é sempre a de intimidá-lo até que ele se cale.
Eu concordo com o Rainer Forst, mas há um fator mais fundamental aí: a tolerância pressupõe lados antagônicos em uma discussão ou em um disputa de poder considerem que o outro lado é humano. Quando até isso se perde, não há como trabalhar consensos e o próprio processo civilizatório está em risco. Se há uma perda de razões para tolerar o “errado” por parte de diferentes grupos identitários, é plausível pensar que o mundo está a beira de um colapso endógeno. E isso por conta das características dessas identidades atuais, fomentadas pelas redes sociais.
As redes sociais nasceram como grupos virtuais de reprodução das relações sociais existentes: as primeiras redes sociais serviam para que as pessoas encontrassem familiares, ex-colegas de trabalho, amigos de escola, conhecidos do bairro. Com o tempo, essa característica foi se perdendo (e sendo ridicularizada até) e sendo substituída por outra, mais marcante: as relações passaram a se dar por afinidade, por ideias em comum, criando novas identidades baseadas na homogeneidade de opinião.
Adicione-se aí um outro componente: para se tornarem rentáveis, os grandes mecanismos de busca e redes sociais (Google e Facebook, sendo mais específico) investiram em um modelo publicitário baseado na quantidade, e não na qualidade. A rentabilização por pageviews, por curtidas e por compartilhamentos tornou a audiência infinitamente mais importante que a relevância. E isso serviu de canal para que grupos identitários que eram sufocados simplesmente por serem ruins, dissimulados, mentirosos e criminosos pudessem espalhar suas opiniões à vontade. Por que? Porque a motivação para a curtida, para o clique no link e para o compartilhamento pode ser qualquer uma: a revolta, o choque, a denúncia. Por muito tempo, nenhum algoritmo foi capaz de separar “compartilhamentos por endosso” de “compartilhamentos por denúncia” adequadamente. E, mesmo que hoje eles sejam, não é do interesse dessas empresas que essa separação aconteça. Elas ganhariam menos.
Uma outra questão é que esses grupos identitários exercem muita influência, especialmente em sociedades em que o pensamento crítico não é valorizado, como a brasileira. O pensamento crítico tem o mérito de ensinar as pessoas separarem o que é um pensamento aceitável e o que não é. É a fronteira entre civilizados e bárbaros, citada pelo Todorov. Esse conceito é artificial e fortemente eurocêntrico, pois a história da humanidade tem como característica marcante, nos últimos séculos, a da imposição da cultura européia ao resto do planeta. Em muitas oportunidades, das formas mais cruéis possíveis, especialmente nas colônias de exploração na América, na África e na Ásia. Isso leva a ideia de sistema-mundo do Wallerstein: o mundo foi moldado pelos europeus para ser um sistema em que a miséria e a submissão de alguns países é a engrenagem que abastece a prosperidade de outros.
Infelizmente, o Brasil sempre esteve na galeria dos países subjugados. Para manter essas relações de exploração intactas, o país, assim como toda a América Latina, conta com uma incansável “lumpemburguesia”, nas palavras de Andre Gunder Frank, e uma das funções dessa lumpemburguesia é justamente impedir o que seria a libertação política, econômica e social da população em geral. É impedir que a população desenvolva as suas capacidades, tornando-se eternamente dependente dessa lumpemburguesia e subjugada dentro do sistema-mundo de Wallerstein. Só que, ao impedir a formação consistente do pensamento crítico na população, a lumpemburguesia tornou a sociedade mais permeável a essa influência por vezes perniciosa de grupos identitários baseados na recusa da humanidade do outro, e hoje isso transcende o campo virtual e passa a ter efeito nas atitudes cotidianas, da briga entre familiares ao patrão que vai olhar as redes sociais do entrevistado antes de contratá-lo para saber se ele “é de esquerda”.
É óbvio que isso traz efeitos econômicos. Toda crise econômica em escala global tem o mesmo motivo de fundo: as pessoas tentaram maximizar seus ganhos formando uma concepção irrealista da riqueza global gerada pela produção, pelas trocas econômicas e pela prestação de serviços. É obvio que a explicação de crises como a de 1929 e a de 2008 vai muito além disso, mas o cerne de desequilíbrios econômicos é sempre esse: pessoas, grupos ou corporações que acham que podem se apropriar do sistema econômico para benefício próprio, ao invés de respeitar a máxima de que o sistema econômico deve servir ao desenvolvimento da sociedade como um todo (e que o ganho derivado disso vai gerar benefícios próprios a cada um). No fim, é por isso que a crise ainda não se resolveu: pessoas, grupos e corporações continuam erodindo o sistema econômico para maximizar seus ganhos em detrimento do restante da sociedade. O alarmante aí é que, no caso da Crise de 1929, as coisas só se resolveram de fato após a Segunda Guerra Mundial.
E o papel do Estado realmente é muito importante, mas talvez hoje Milton Santos pensasse de maneira diferente: Milton Santos sempre pensou nos Estados-Nação como contraposições ao poder dos mercados, mas, atualmente, existe uma ascensão dos Estados-Nação e dos ideários nacionalistas como promotores artificiais das desigualdades patrocinadas pelo mercado. O atual estado nacionalista é um agente de oligarquias que sufocam todo o restante da atividade econômica para maximizar seus próprios ganhos. Se fosse só isso já seria ruim, mas é ainda pior: esses estados nacionalistas sufocam toda e qualquer noção de sustentabilidade, no sentido de construir uma sociedade perene ao longo do tempo. São Estados que só priorizam o ganho imediato, por serem subservientes a oligarquias com interesse de ganho imediato, que sufocam mudanças paradigmáticas para manter um status quo favorável a elas mesmas, ainda que o preço posterior seja alto demais.
Nesse cenário, a democracia no século XXI corre risco sim. Não só um risco “de facto”, mas também risco como modelo político ideal. As construções sociais que permitiram que sociedades inclusivas e prósperas fossem forjadas parecem cada vez mais esgarçadas, e existem até marcos filosóficos anti-democráticos em voga, como o eurasianismo de Alexander Dugin, por exemplo.
A questão é que a democracia está ameaçada justamente por ser o melhor modelo político, o mais inclusivo, o mais igualitário. Em tempos em que as elites querem organizar os estados em oligarquias, a democracia passa a ser um fardo. A liberdade passa a ser prejudicial. Daí, pensadores autoritaristas inventam conceitos como “democracia iliberal”. Se não promove liberdades, não é democracia. É só uma semidemocracia em que as pessoas votam temporariamente, s participar efetivamente do processo político.
O principal componente para um novo fortalecimento da democracia é a ideia, que fatalmente vai se consolidar, de que a humanidade depende da democracia para sobreviver. A relativização atual da democracia deve provocar, em médio e longo prazo, distúrbios que vão colocar em risco a própria existência humana. Nem precisa ser uma guerra, no conceito clássico do termo. A desagregação social provocada pelo fortalecimento de movimentos identitários excludentes facilitou o surgimento de líderes autoritários, como Trump, e aumentou o poder e a legitimidade de outros, como Putin e Erdogan. E é bastante provável que a intempestividade de um desses líderes, ou mesmo de algum louco “default” como Kim Jong Un, provoque uma tragédia de proporções globais e acenda a luz vermelha “que desgraça estamos fazendo com a humanidade afinal”?
Para fortalecer a democracia, é necessário criar alternativas reais aos governos autoritários. Enfatizar benefícios óbvios da democracia, como os enumerados por Amartya Sen: em regimes democráticos não há genocídios e nem fomes coletivas, porque há um controle externo do líder eleito por instâncias estatais supragovernamentais. Se a ameaça de fomes coletivas ou de genocídios começa a se avizinhar, é porque as instituições imbuídas de defender a democracia estão sendo erodidas a ponto de não conseguirem atuar. Nesse ponto, já não existe democracia de fato, embora exista, em alguns casos, democracia “de direito”, com processos eleitorais questionáveis e opressão generalizada de grupos minoritários.
É o que pessoas como Erdogan, Trump e Putin fazem atualmente. Esses líderes autoritários só surgiram porque muitos grupos identitários criaram todo um discurso de medo do diferente. De que todos os que não compactuam com suas idéias são uma ameaça e devem ser destruídos. Então a alternativa está no resgate do senso de humanidade, na idéia de que o homem só sobreviverá sem destruir o planeta em um sistema em que todos pensem em todos, em que a participação de todos seja garantida, e não só na hora de votar. É isso que deve ser defendido como democracia. E é só isso que vai possibilitar ao homem sobreviver e continuar construindo sua história.