Não é novidade para ninguém que estamos passando por um momento bem dramático no contexto político brasileiro, com personagens de todos os principais partidos sendo fustigados pela Polícia Federal e pelo Poder Judiciário, especialmente no contexto da Operação Lava Jato. Também não é novidade que, nesse cenário, o PT acaba sendo mais atingido que os demais partidos, afinal, a maioria dos esquemas investigados na Petrobrás ocorreu enquanto o PT estava no governo. E a referência é no pretérito imperfeito mesmo, porque a impressão atual é a de que, embora o PT ainda esteja na Presidência da República de Direito, já não está mais de fato.
Também quero deixar claro que não vou entrar aqui em discussões como a da politização do judiciário (não confundir com a judicialização das políticas), por dois motivos: não tenho expertise em Direito e não vou entrar em uma discussão que atualmente está inflamada, e, portanto, marcada pelo ruído de parte à parte.
Antes de qualquer coisa, é preciso definir o escopo desse texto e o seu público-alvo: esse texto é para pessoas que se identificam como “de esquerda”, ou se identificam com valores “de esquerda”. E quais são esses valores? Não sejam malucos, ninguém defende monopólio dos meios de produção aqui. Na maioria dos países, os movimentos de esquerda pós comunista (sim, galera, acabou, desapeguem) defendem justiça social através da redução de desigualdades sociais e o Estado como protagonista e fomentador do desenvolvimento econômico. Além disso, defendem grupos minoritários ou oprimidos pelo status quo da sociedade, como pessoas com deficiência, mulheres, afrodescendentes e LGBT’s, por exemplo.
Dito isto, tentarei fazer uma analise desapaixonada de um nome que até algum tempo atrás unia tanto a esquerda quanto o Norvana unia todas as tribos: Lula. Mesmo quem se considera de esquerda e detesta Lula hoje em dia precisa reconhecer seu papel de protagonismo por muito tempo frente aos movimentos brasileiros de esquerda. Lula foi o personagem principal do primeiro governo brasileiro autodenominado “de esquerda” após a redemocratização, e foi eleito com promessas com as quais a esquerda realmente se identificava, como a promoção da justiça social e o aumento do papel do estado na economia em relação aos governos anteriores.
Não dá pra dizer que, em seus dois mandatos, Lula não teve relativo sucesso nisso. Noves fora o fato de não terem sido feitas as reformas estruturantes demandadas por setores relevantes da esquerda, como a agrária, por exemplo, o resgate de milhões de pessoas de situações de alta vulnerabilidade social é inegável. Assim como a inclusão de milhões de pessoas no mercado formal de emprego, e a ampliação do acesso do brasileiro à educação de nível superior, através tanto da ampliação do sistema de universidades federais quanto de programas de financiamento como o ProUni e o Fies.
Tudo isso fez com que Lula fosse o presidente que saiu mais bem avaliado do cargo na história do país. O Brasil ganhou protagonismo internacional à ponto de sediar a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Tudo parecia lindo. Mas a ausência de reformas estruturantes cobrou seu preço depois.
A inclusão de milhões de pessoas pelo consumo, e não pela educação e pela consciência de cidadania, produz efeitos mais rápidos, sob medida para um país que não se planeja muio além do processo eleitoral quadrianual. Mas os efeitos colaterais são graves: a falta de consciência política e de senso crítico torna esse grupo de pessoas vulnerável a discursos massificantes e enviesados. Isso é especialmente grave em um país em que os detentores dos meios de comunicação são tão homogêneos em seu conservadorismo (e ainda são ajudados por outros atores contextuais, como os pastores neopentecostais).
A inclusão pelo consumo, nos governos Lula e Dilma, emancipou essa massa de pessoas que viviam em vulnerabilidade social, mas não a libertou. Eu explico: aquele que é emancipado não tem mais sobre si o peso da opressão, mas não consegue enxergar a vida sob outra lógica que não seja a das relações de opressão. Por isso, passa a ter como objetivo oprimir os outros. Quem é libertado não fica livre só da opressão, mas também da lógica da opressão: seu objetivo passa a ser libertar as outras pessoas de suas relações opressivas. Para qualquer pensamento de esquerda, ser emancipado sem compreender que a opressão está na base das relações de competitividade e individualismo decorrentes do capitalismo é ficar apenas na metade do caminho. E quem percorreu só metade da estrada não chegou a lugar nenhum.
Chegar à metade do caminho é tão eficiente quanto construir uma casa fundada na areia. A construção é bem mais rápida do que a de uma casa alicerçada sobre um terreno rochoso, os insumos necessários são menores e a aparência é a mesma. Enquanto tudo está bem a decisão parece maravilhosa. Mas uma hora as tempestades chegam, e é nessa hora que os alicerces são provados.
E qual era a areia dessa sustentação? Os acordos políticos escusos que permitiram a criação ou a manutenção de esquemas monstruosos de corrupção como os detectados na Petrobrás. Não é surpreendente que esses acordos políticos tenham se dissolvido quando o esquema de desvio de dinheiro para fins pessoais e eleitorais também se dissolveu. Na política e nas construções, a areia é volúvel e não pode servir de alicerce. Só serve para alguma coisa quando tem suas ações contidas, sendo misturada às pedras, ao cimento e à água nas proporções certas e formando o concreto que estrutura o tecido estatal.
E como conter a ação dessa areia (estruturas baseadas na corrupção e no beneficiamento próprio) na política? Abrindo o jogo. Embora os governos Lula e Dilma tenham avançado substancialmente na questão da transparência, é nítido que esse avanço não é tão valorizado por setores da esquerda. É relativamente comum ouvir discursos como o de que “Dilma deveria controlar a ação da PF” e “sem as leis de transparência não teríamos a Lava Jato”. Nada mais equivocado. Qualquer discurso que se diz de esquerda precisa estar umbilicalmente ligado à promoção da transparência. E isso tem um motivo relativamemte simples, que será explicado à seguir.
Por que os militantes de movimentos de direita e extrema direita se utilizam tanto do discurso contra a política? Ora, o motivo é simples: se a política é conceitualmente esvaziada de seus valores um único ativo vai passar a ser decisivo na formação de agenda das políticas públicas — o dinheiro. E, no espectro político, onde os detentores do dinheiro estão? Quase sempre à direita. Então, o discurso contra a política nada mais é do que uma falácia que só serve aos movimentos ultraliberais de redução e aniquilação dos interesses do Estado para torná-lo subserviente aos interesses do mercado, que tem como único objetivo “ganhar dinheiro” (quem fala isso é livro de administração, não pensador marxista). A única forma de vencer o embate ideológico e diminuir o protagonismo do dinheiro como definidor de agenda nas políticas públicas – e para isso é preciso investir decisivamente em transparência. Em mostrar para o cidadão exatamente no que o dinheiro dos impostos dele é investido, e, depois disso, em convencê-lo de que esse é o melhor uso possível do dinheiro, em um contexto de uso dos meios técnicos para promoção de justiça social e do fomento do desenvolvimento econômico como instrumento de libertação das pessoas, e não só de emancipação.
Agora as coisas parecem claras. Lula é o nome para liderar esse novo momento da esquerda? Nem de longe. Além de ter sido leniente com a corrupção, no mínimo, e personagem ativo, no máximo, Lula é um exemplo de que o tempo passa, modifica o Ethos da sociedade, e o sujeito que era o mais apropriado para mudar a sociedade em determinado momento histórico vai deixar de sê-lo alguns anos adiante, se não renovar suas ideias. O próprio Lula soube fazer isso muito bem entre 1989 e 2002. Mas parece que não conseguiu fazer isso entre 2010 e 2016. Lula está ultrapassado, e qualquer movimento de esquerda só vai ter algum futuro no Brasil se tomar consciência disso.
Sem Lula, quais exemplos práticos devem embasar os ideais de esquerda atualmente? Dois nomes se destacam: Flávio Dino e Fernando Haddad.
Fonte da imagem: http://www.mercadoeeventos.com.br/site/img/upload/plantao/redim-20130904125542_—_flavio_dino_e_fernando_haddad.jpg
Flávio Dino, eleito para administrar um Maranhão arrasado por décadas pela família Sarney, está investindo na libertação das pessoas, e não na emancipação? Como? Utilizando a transparência como instrumento para mostrar ao povo maranhense que ele é diferente dos Sarney, e valorizando temas nevrálgicos como a educação pública.
Quanto a Fernando Haddad, a situação é um pouco mais complexa. Embora esteja ligado ao PT, e, portanto, ainda envolvido com alianças espúrias como a celebrada com Paulo Maluf, Haddad tem se mostrado um lutador contumaz pela transparência. A cortina de fumaça das ciclovias e da redução de velocidade nas principais vias da cidade esconde uma das medidas mais relevantes para São Paulo nos últimos anos: a criação de uma Controladoria Geral do Município, em 2013, com atuação completamente independente. Essa estrutura foi responsável por revelar casos de corrupção históricos na cidade, como o da Máfia do ISS, por exemplo. Atualmente a CGM está sendo fortalecida com a contratação de 100 auditores efetivos, que vão aumentar a capacidadede fiscalização e a transparência dos contratos do município.
O combate à corrupção precisa ser o diferencial de qualquer movimento de esquerda em relação às forças hegemônicas da sociedade, que baseiam essa hegemonia em um poderio econômico que nenhum movimento de esquerda jamais terá. O erro de Lula foi esse: o de tentar igualar esse poderio econômico inigualável utilizando ou sendo leniente com a corrupção estatal, no melhor estilo “os fins justificam os meios”. Não, não justificam. É por isso que é necessário o apego a novos exemplos, que já entenderam que a diferenciação é necessária e se dá através da transparência como elemento para fazer a coisa pública servir ao público, e não aos indivíduos. Os atuais escândalos de corrupção mostram que isso ainda não foi perdido: as pessoas ainda se revoltam quando aquilo que deveria ser público é utilizado indevidamente como instrumento de afirmação de privilégios individuais.
Esse deve ser o alento de qualquer movimento de esquerda. Porque o que importa é andar o caminho todo, é construir a casa alicerçada em terreno rochoso. Se não for assim, tudo se perde na primeira tempestade.