Quando o 1% supera os 99% (ou: Por que Sanders e Trump estão crescendo?)

O gráfico abaixo fala por si só: em 2010, os 50% mais pobres do mundo (cerca de 3,6 bilhões de pessoas) concentravam o dobro da renda das 62 pessoas mais ricas do mundo. Já era uma situação bem injusta. Uma disparidade entre os mais ricos e os mais pobres, em escala mundial, que atingia a proporção de 1 em 29 milhões. Em cinco anos, a situação se deteriorou para os pobres: enquanto a renda dos mais ricos subiu 60%, a renda dos 50% mais pobres encolheu em quase um terço. Com isso, os 62 mais ricos, sozinhos, passaram a concentrar mais riqueza do que toda a metade mais pobre da população mundial:

Riqueza dos 63 mais ricos vs. riqueza dos 50% mais pobres (Fonte: Oxfam/Forbes/BBC)

A primeira lição desse gráfico é a mais óbvia possível: momentos de crise, como o que vivemos após 2008, atingem basicamente a parcela mais pobre da população, aumentando a diferença entre as classes sociais. Isso acontece porque o cenário de crise é uma espécie de salvo-conduto para os empresários enxugarem gastos, diminuírem direitos, demitirem empregados e, no fim das contas, aumentarem sua margem de lucro. Além disso, há uma faceta um pouco mais perversa aí: em momentos de crise, empresários cortam investimentos. Isso quer dizer que o dinheiro que seria gasto na ampliação das operações e na geração de empregos agora é gasto com outra coisa, e a crise é o pretexto perfeito para isso. Boa parte do empresariado não é feita de investidores contumazes, mas de gente que só investe quando o não investimento representa um risco real de perder mercado. Em momentos de crise esse risco é menor (bem como a quantidade de dinheiro para empréstimo disponível a condições razoáveis), então a propensão ao investimento também é menor.

Com todo esse cenário, enquanto a massa de desempregados, pobres e vulneráveis aumenta, fazendo com que a metade mais pobre da população fique ainda mais pobre, a parcela mais rica da população fica ainda mais rica. Isso explica, por exemplo, porque 2015 foi o ano em que finalmente a renda do 1% mais rico da população se equiparou à renda dos 99% restantes.

Isso ajuda a desmentir um discurso que oscila entre o inocente e o canalha: o do “apesar da crise”. Mostrar explosões de consumo ou momentos de ostentação em meio á crise econômica só ignora a sua faceta mais perversa: a de que existe uma parcela crescente de pobres que vem perdendo progressivamente sua capacidade de consumo. O “apesar de crise” é reduzir o drama de muitas famílias que não tem condições mínimas de sustento a um meme idiota. É desrespeitoso. É vulgar.

Mas o fenômeno da concentração de renda é mundial, e tem atingido os países centrais da economia planetária desde a crise de 2008. Isso ajuda a explicar um sentimento de decepção geral da população com a classe política (que também ocorre no Brasil), e também a ascensão de políticos “não convencionais” no seio do capitalismo, por diferentes vias. Estamos falando de Bernie Sanders e Donald Trump.

Antes de tentar explicar, de forma simples, os dois casos, é bom ressaltar: ambos dificilmente terão as indicações dos Partidos Democrata e Republicano para as eleições de novembro. São outsiders e vieram de fora das estruturas partidárias. Por mais que tenham aceitação popular, é difícil conseguirem convencer os delegados dos partidos. Inclusive, cabe uma explicação mais detalhada do sistema eleitoral americano aqui.

A eleição nos EUA tem duas fases bem definidas, se considerarmos os dois grandes partidos (Democrata e Republicano). A primeira delas é a das prévias internas: os candidatos à presidência são indicados nas prévias dos partidos. Cada estado tem um número de delegados, definidos de acordo com a população. Na fase das prévias, cada estado tem sua regra, mas na maioria deles, quem ganhar a maioria dos votos dos delegados locais dos partidos leva todos os votos do Estado. Além disso, existem os “superdelegados”, que basicamente são ex-presidentes, senadores, congressistas e personalidades dos partidos (ex-Secretários de Estado, por exemplo). É um modelo que parece complicado à primeira vista, mas que tenta privilegiar a democracia interna, para que o resultado da Convenção Partidária, que indica o candidato à presidência, seja o mais consensual possível.

A segunda fase é a eleição em si: cada estado tem um número de delegados eleitorais, definidos de acordo com a população local. O candidato que levar a eleição no estado leva todos os delegados. Foi por isso que, em 2000, a eleição americana demorou tanto tempo para ser definida: os votos da Flórida, que tem um número grande de delegados, precisaram ser recontados, e sacramentaram a vitória de George W. Bush, contestada por alguns democratas até hoje.

Mas, como eu já comentei, Sanders e Trump são outsiders. É de se imaginar que, com todo esse processo eleitoral, democratas e republicanos tenham uma estrutura interna muito bem consolidada. O grande receio de democratas e de republicanos nem é que Sanders ou Trump vençam as prévias, porque, se isso ocorrer, ocorrerá dentro das regras das Convenções Partidárias. O grande receio em ambos os partidos é se Sanders e Trump perderem as prévias e lançarem candidaturas independentes. No caso de Sanders, que já é Senador e está na política há mais tempo, esse risco é menor. Mas no caso de Trump esse risco é real. E qual seria o problema de Trump lançar candidatura? Ele dividiria os votos com o candidato republicano oficial, tornando a eleição do candidato democrata quase inevitável.

Mas esse não é o tema principal do texto. O texto é sobre como o aumento das desigualdades sociais nos EUA impulsionaram as candidaturas de Sanders e Trump. O fenômeno Bernie Sanders, que se define como socialista e oferece risco real à candidatura de Hillary Clinton, é reflexo quase direto da insatisfação associada à sensação de empobrecimento presente desde a crise de 2008 em boa parte da população americana. É sintomático que boa parte da popularidade de Sanders se dê entre jovens entre 18 e 24 anos: é a geração que viu sonhos ruírem por causa da crise de 2008, que é simpática a movimentos como o Occupy, que desconfia dos políticos convencionais e que vê em Sanders um discurso novo, convincente e que vai de encontro aos problemas que eles realmente sentem na pele.

O ataque de Sanders aos bancos e a Wall Street como um todo, que receberam pesados incentivos do governo americano após a crise, bem como sua recusa a receber doações de Wall Street, soam muito bem para esse público. O discurso idealista oferece uma esperança de que Sanders, de alguma forma, vai lutar pelos 99% mais pobres, e não pelos 1% mais ricos, “como todo político faz”. Esse idealismo ganha cada vez mais popularidade (e já conseguiu mais de 2 milhões de doações individuais, mais do que o dobro do que Obama tinha conseguido nessa mesma época em 2008)

A candidatura de Trump também é fruto dessa crise dos políticos tradicionais. Só que o discurso de Trump é radicalmente diferente. Trump se assume como sendo desse 1% mais rico, usa largamente do seu poderio econômico para tentar viabilizar sua candidatura, mas baseia sua candidatura no retorno a um EUA idílico, “4 real” (pra valer), que segundo ele foi deturpado nos últimos anos. Isso ajuda a explicar, por exemplo, porque Trump tem tanta ojeriza aos imigrantes.

Como membro dos 1%, que não quer tirar nenhum privilégio dos mais ricos, Trump quer dividir os 99%. Quer mostrar que alguns são “americanos de verdade”, enquanto outros não são e só atrapalham a vida desses “americanos de verdade”. Ao desviar o foco do problema da desigualdade e colocá-lo na imigração, Trump quer continuar intensificando as desigualdades. Sabendo da insatisfação que isso gera, Trump promete fazer isso com “mão forte”, justificando com a força um status social insatisfatório para muita gente.

Não é à toa que Trump é o candidato mais rejeitado entre os republicanos, de longe. E isso deve ser um fator decisivo para impedir sua indicação. Mas a rejeição contrasta com a popularidade: Trump também é o candidato mais popular entre alguns grupos de americanos que compartilham de sua visão sectária em relação à sociedade, como alguns grupos evangélicos, por exemplo. Entre os republicanos, muita gente é sectária. Não é demais lembrar que os EUA tem um longo histórico de preconceito contra minorias, e nem mesmo a questão racial está completamente superada, como mostram os casos recentes de assassinatos de jovens negros pela polícia em locais tão diversos quanto Ferguson e Baltimore.

O fato é que esse aumento da distância entre ricos e pobres já era uma sensação geral em sociedades como a americana. Os dados técnicos só confirmam uma impressão que já existia, e que era corroborada por pesquisas como a da equipe de Thomas Piketty. E essa sensação já gerou consequências, sendo decisiva para o crescimento de candidaturas que dificilmente teriam o mesmo espaço em outras circunstâncias. Essas consequências mostram que, sob diversos aspectos, essa situação de desigualdade é insutentável à longo prazo. Só resta saber o que será feito no curto prazo, e qual será o caminho escolhido para resolver esse enorme problema.

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