Sobre Mulheres e a Bíblia

SPOILER: esse texto não tem links. Não tem fotos. É pra ser tão difícil de digerir quanto um prato de farinha sem nada para beber junto.

Vou contar uma piada muito ruim:

“Você sabia que a bancada evangélica quer implantar a ditadura gay?”

“Como assim? Eles que inventaram esse termo maluco aí”

“Simples. Eles acham que estupros são culpa da mulher. Daí querem impedir as mulheres de abortarem e se tratarem quando são abusadas. Quando são mães, não podem amamentar em público porque é ‘imoral’. Depois a criança cresce e é impedida de discutir gênero na escola. Quando se torna adolescente sofre abusos e não pode discutir a violência porque é ‘doutrinação ideológica’. Quando adultas, tem que ficar caladas ou serem mortas pelo “seu homem”. Mas sem que isso tipifique feminicídio, ‘coisa de comunista’. Esses filhos são executados pelo tráfico ou pela polícia, agora vai ter até mais armas pra isso. Ou são jogados em masmorras que destroem qualquer esperança (e agora será à partir dos 16 anos). E o ciclo se repete eternamente”

“E o que isso tem a ver com ditadura gay?”

“Ninguém aguenta essa vida. Uma hora, todas as mulheres ou serão mortas ou vão se matar. Aí só vão sobrar os homens e todo mundo vai ser gay”

Eu disse que a piada seria péssima

Mas daí a gente pensa: por que os deputados auto-identificados conservadores, geralmente ligados a matrizes ideológicas cristãs, são tão refratários com a questão do gênero feminino?

Parte 1: o vínculo entre afirmação de identidades e valores progressistas

O vínculo entre movimentos autodenominados conservadores e a opressão às minorias ou grupos historicamente menosprezados na sociedade parece bem óbvia, mas precisa ser explicada: os grupos hegemônicos na sociedade sempre tiveram um status quo favorável e nunca pensaram em se esvaziar desse poder historicamente conferido.

Isso explica, por exemplo, as denúncias de “doutrinação ideológica” que se fortaleceram recentemente: a disseminação da informação fez com que os locais de resistência à lógica hegemônica da sociedade fossem expostos. E essa exposição mostrou o medo de quem tem a hegemonia: o de perder essa hegemonia, ou ter essa hegemonia contestada. Como você faz para que essa hegemonia não seja contestada? Cala todos os discursos contrários. O argumento da “doutrinação ideológica” é uma forma de tentar fazer isso, em um contexto em que não é socialmente aceitável fazer isso pela força.

É aí que entram as minorias: da mesma forma em que a retórica da “doutrinação ideológica” é uma forma de calar discursos dissonantes, também há a necessidade de calar grupos que apresentem esses discursos. É aí que entra a birra contra o feminismo e a militância LGBT, por exemplo. Porque o protagonismo feminino é uma alteração de status quo que não pode ser admitida por pessoas que sempre exerceram um tipo de dominação opressora.

As afirmações de identidade também se fortaleceram com a disseminação da informação em escala global. As pessoas ficaram sabendo, por exemplo, que uma mulher sofre estupro a cada 11 minutos no Brasil e que a idade média do #primeiroassedio, de acordo com os relatos divulgados na internet, é MENOS DE 10 ANOS DE IDADE. Puta merda.

Parte 2: o que a Bíblia diz à respeito?

Ok, já sabemos que esses caras curtem ser hegemônicos e tal, mas a questão religiosa agrava a coisa. Não é coincidência que a maior parte da opressão contra qualquer movimento feminista venha de religiosos. E isso por que? Porque esses caras se aproveitam de interpretações errôneas da Bíblia para praticar uma política de opressão e de medo em suas comunidades. Contra todo mundo, mas especialmente contra as mulheres. E, para isso, usam um monte de passagens distorcidas da Bíblia para isso. Vamos a alguns exemplos:

A Criação e a Queda

Então o Senhor Deus declarou à serpente: “Já que você fez isso, maldita é você entre todos os rebanhos domésticos e entre todos os animais selvagens! Sobre o seu ventre você rastejará, e pó comerá todos os dias da sua vida. Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela; este lhe ferirá a cabeça, e você lhe ferirá o calcanhar”. À mulher, ele declarou: “Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu desejo será para o seu marido, e ele a dominará”. Gênesis 3:14–16

Os mais exaltados já vão dizer: TÁ AÍ, A MULHER TEM QUE SER DOMINADA. Pois bem, vamos explicar a parada.

Fato 1: a serpente aí é Satanás. E Deus coloca inmizade entre Satanás e a mulher. Por que? Porque, no versículo 15, Deus promete um descendente à mulher, que é o messias da religião cristã. Ou seja, Satanás seria derrotado através daquele que seria o fruto da mulher. Porque o primeiro pecado da mulher na Bíblia foi comer o fruto e entregá-lo a Adão. Mas o segundo pecado do homem, sem nenhuma serpente instigando, foi o de ser um bundão e tentar tirar o seu da reta apontando o dedo para a mulher quando Deus veio questioná-lo: “Foi a mulher que me deste por companheira que me deu do fruto da árvore, e eu comi” Gênesis 3:12

Além disso, tem um outro aspecto importante aí: pelo fato da mulher e de Satanás serem inimigos — e isso pelo fato de que o Salvador do Mundo sairia do ventre da mulher — Deus tá falando que Satanás iria usar os homens, por toda a história, para oprimir as mulheres. A acusação de Adão era só o começo. Por isso que o versículo 16 fala que “o seu desejo será para o seu marido, e ele a dominará”.Porque Deus deu uma bênção pra mulher, deu o protagonismo da história de redenção da humanidade para as mulheres, e Satanás ia tentar sufocar isso de qualquer forma através dos homens. Não é uma ordenança, é uma consequência.

Daí o tempo passou, a humanidade se estabeleceu, e a mulher era tão oprimida que não era nem contada como gente quando os hebreus saíram do Egito. Mas diversos exemplos de participação feminina na Bíblia devem ser revisitados. Porque a gente entende tudo errado.

Davi e Bate Seba (ou Betsebá)

A maioria dos religiosos conta a história de Davi e Bate Seba assim: Davi estava em sua casa, daí a safada da Bate Seba ficou se exibindo para ele tomando banho em público e ele caiu em tentação.

Vou explicar um negócio aqui rapidão: Davi cometeu um ESTUPRO. Sim, nesses termos mesmo. É só ler a passagem pra saber.

“E aconteceu que, tendo decorrido um ano, no tempo em que os reis saem à guerra, enviou Davi a Joabe, e com ele os seus servos, e a todo o Israel; e eles destruíram os filhos de Amom, e cercaram a Rabá; porém Davi ficou em Jerusalém. E aconteceu que numa tarde Davi se levantou do seu leito, e andava passeando no terraço da casa real, e viu do terraço a uma mulher que se estava lavando; e era esta mulher mui formosa à vista. E mandou Davi indagar quem era aquela mulher; e disseram: Porventura não é esta Bate-Seba, filha de Eliã, mulher de Urias, o heteu? Então enviou Davi mensageiros, e mandou trazê-la; e ela veio, e ele se deitou com ela (pois já estava purificada da sua imundícia); então voltou ela para sua casa. E a mulher concebeu; e mandou dizer a Davi: Estou grávida.” 2 Samuel 11:1–5

Primeira coisa aí: Bate Seba não estava se exibindo. A lei hebraica, dada por Deus a Moisés, ordenava que as mulheres tomassem banho para se purificar após seu período menstrual. Existiam espaços, como o que Bate Seba usou, que eram comuns para as mulheres palacianas. Bate Seba era mulher de um dos 30 oficiais de Davi, e não era uma estranha no palácio.

E por que mulheres tomavam banho ali sem maiores restrições? Porque os homens tinham ido para a guerra. Geralmente Davi ia junto. Por algum motivo, ele resolveu ficar. E daí, numa tarde, ele acordou querendo comer alguém de qualquer maneira. Foi aonde elas tomavam banho. Viu Bate Seba e a chamou. Foi tudo premeditado.

Imaginem só a angústia de Bate Seba nessa situação. Ela toma um banho para se purificar, porque nos dias da menstruação a mulher não podia nem ter contato social com o resto do povo. Tomar banho era um alívio para a mulher, era o passaporte para retomar a vida normal por 3 semanas até a próxima menstruação. Daí ela recebe a mensagem “olha, o rei tá chamando”. O primeiro pensamento deve ter sido “ué, o rei tá aí?”. O segundo deve ter sido mais grave, algo como “pronto, meu marido morreu”.

Daí a Bate Seba chega lá e o Rei Davi provavelmente já está até pelado e exibindo seus atributos pra ela, porque já tinha arquitetado tudo. Estilo esses babacas que vão conversar com as mulheres nos WhatsApp da vida e mandam foto de pinto aleatória. Agora me explica: numa situação dessas, qual a chance de Bate Seba recusar sexo com o Rei Davi e sair viva? Nenhuma. Foi um abuso. Um estupro, no pior sentido possível do termo.

Mas piorou. Bate Seba era casada com um cara que daria a vida por Davi. Na sequência de 2ª Samuel 11, ao saber que Bate Seba estava grávida, Davi tentou dar um migué. Chamou Urias e falou pra ele passar uma noite em casa. Urias não achava isso certo com os amigos dele morrendo no campo de batalha. Daí, no dia seguinte, Davi embebedou Urias e mesmo assim ele não foi pra casa transar com Bate Seba para encobrir o estupro que Davi cometeu. Daí Davi resolveu MATAR Urias. Com requintes de crueldade.

Davi mandou, pela mão do próprio Urias, uma carta pro comandante dele, Joabe, dizendo com todas as letras pro Joabe matar o Urias. No meio de uma batalha, isso era fácil: era só colocar ele na linha de frente, sob ataque direto dos adversários. Bem, o Urias morreu.

Agora, pensa na situação da Bate Seba: ela foi estuprada, e quando disse pro estuprador que estava grávida, o estuprador mandou matar o marido dela. E ela ainda acabou obrigada a casar com o estuprador.

Toda essa história é cruel pra caramba com as mulheres, né? Pois é, Deus viu tudo o que aconteceu. Davi se arrependeu, mas teve que pagar pelo que fez. Vejam o que rolou com Davi daí em diante:

  • O filho fruto do estupro morreu (2ª Samuel 12:18)
  • Viu um de seus filhos (Amnom) estuprar sua meia-irmã (Tamar) e depois ser morto por seu irmão Absalão (2ª Samuel 13)
  • Viu seu filho Absalão se rebelar e transar em público com suas concubinas (2ª Samuel 16:22)
  • Viu seu filho Absalão ser morto por Joabe (o mesmo que mandou Urias pra morte) mesmo tendo falado claramente pra não matarem Absalão (2ª Samuel 18:14)
  • E a mais irônica de todas: se tornou um velho impotente. Anos depois de forçar a barra pra transar com quem ele não podia, ele tinha uma mulher formosa à disposição e podia transar. Mas não conseguia “E buscaram por todos os termos de Israel uma moça formosa, e acharam a Abisague, sunamita; e a trouxeram ao rei. E era a moça sobremaneira formosa; e tinha cuidado do rei, e o servia; porém o rei não a conheceu.” 1 Reis 1:3,4.

E a Bate Seba? Deus deu o trono para o filho dela. Por interferência dela. Davi estava velho, um cara chamado Adonias se proclamou rei e Bate Seba foi até Davi cobrá-lo à respeito da sucessão do trono. E ficou lá até Davi nomear Salomão como seu sucessor e dar todas as ordens a respeito do reino. Tudo porque Bate Seba insistiu, e porque Davi sabia que tinha uma dívida com ela depois de tudo o que fez, mesmo tendo se arrependido.

Deus só é machista na cabeça de quem quer oprimir os outros.

Outras Histórias Bíblicas que Desmentem a Abordagem Machista

Seria possível contar um monte de outras histórias sobre mulheres protagonistas da história bíblica. Na Bíblia, as mulheres tem um papel importante demais para quem não era nem contada como cidadã no Antigo Testamento. Raabe, que a Bíblia descreve como prostituta, foi essencial para o povo hebreu derrubar Jericó, e acabou entrando na genealogia de Cristo. Débora, a juíza, deu ordens pra Israel vencer uma batalha, e o comandante inimigo foi morto por uma mulher que não queria ser estuprada por ele, Jael. Rute não quis largar sua sogra, Noemi, após a morte dos filhos dela, porque sabia que as viúvas não tinham esperança na sociedade de Israel, e acabou também na genealogia de Cristo. Outras mulheres, como Ester e Ana, por exemplo, também se destacaram vinculando a luta contra circunstâncias adversas à crença na ação divina.

No Novo Testamento, os exemplos abundam. Jesus conversava com mulheres e as ensinava (a mulher samaritana, Marta e Maria são exemplos), coisa que nenhum outro Mestre da Lei em Israel fazia. A morte de Cristo igualou todos os seres humanos novamente, retomando a questão da identidade revelada na igreja antiga e restaurando as relações pessoais. Isso introduziu uma inovação nas igrejas do Novo Testamento: a participação efetiva de mulheres, que eram tratadas como “parte do corpo”, e não como objetos cultuais, como acontecia em outras religiões.

Mas e as passagens bíblicas que falam de submissão?

Algumas passagens bíblicas, mesmo no Novo Testamento, falam de submissão. 1 Corintíos 11 e Efésios 5 são exemplos. Porém, esses exemplos não deixam de ser contextuais: se a relação entre homem e Deus é firmada em amor, que é a natureza de Deus, a relação entre o homem e a mulher também deve ser firmada em amor, como demonstração terrena da natureza de Deus. É por isso que a submissão em Efésios 5 é “em amor”.

Também existiam algumas situações-limite. Em Corinto, por exemplo, a presença de prostitutas cultuais da religião romana (que antes era grega) era muito forte. O relacionamento e a vinculação aos maridos salvava as mulheres de serem confundidas com essas prostitutas cultuais. Por isso Paulo fala para as mulheres de Corinto (e só de Corinto) usarem véus: para não serem confundidas e abusadas como prostitutas cultuais.

Pedro, por exemplo, fala para as mulheres serem sujeitas aos maridos para “se alguns não obedecem à palavra, pelo porte de suas mulheres sejam ganhos sem palavra;” 1 Pedro 3:1. Ou seja: não é sujeição. é um negócio que hoje chamaríamos de liderança pelo exemplo.

Tô acabando, prometo

Se uma mulher tem a capacidade de mudar a atitude de seu marido pela sua própria atitude, é notório que Deus reservou um papel especial para as mulheres: desde Eva, a mulher é a influenciadora do homem. Para o bem e para o mal. Sara, por exemplo, influenciou Abraão a ter um filho com sua concubina. Nasceu Ismael, cujos descendentes nunca se entenderam com os descendentes de Isaque. Rebeca fez com que Isaque abençoasse a Jacó e não a Esaú, fazendo se cumprir a promessa divina de que “o mais velho serviria ao mais novo” Gênesis 25:23

Com esse monte de exemplos, fica difícil defender o sujeito que quer legitimar a opressão à mulher na Bíblia. Se você contextualizar cada uma das passagens bíblicas que eles usam, o argumento da opressão é destruído sistematicamente. As mulheres são até mais importantes que os homens na Bíblia, se considerarmos que Jesus Cristo, o Messias, que divide a Bíblia e a história em duas partes, só veio ao mundo porque Deus prometeu que Jesus sairia do ventre de uma mulher, ainda que gerado de forma sobrenatural.

Se existe um status quo que o cristão deve manter e cultivar, é o do amor. Porque o cristão é basicamente o cara que sabe que é nascido de Deus, e Deus não TEM amor. Deus É amor. É por isso que 1 João 4:8 é uma relação lógica: se você não ama você não conhece a Deus, porque Deus É amor. A gente acha que o amor é um sentimento. Mas, no caso do cristão, é (ou deveria ser) a confirmação de uma natureza. O cristão não oprime os outros. O cristão ama. E por isso é complicado chamar uma turma de políticos que só pensa em oprimir os outros de cristã. A Bíblia, que eles dizem seguir, não corrobora isso.

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