Nos últimos tempos, muitas pessoas tem discutido na Internet a respeito do crescimento do fundamentalismo nas discussões políticas. Essa reportagem da Revista Galileu é um exemplo. Esse texto do Leandro Beguoci no Gizmodo é outro. É chato admitir, mas é um fato que os discursos fundamentalistas estejam ganhando corpo. E isso acontece por alguns motivos.
O primeiro deles é que os políticos estão deixando de lado o método científico enquanto ferramenta de atuação. E esse não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Nos EUA, na Austrália e em outros países, crescem discursos com pouco embasamento na realidade, como o do negacionismo em relação às mudanças climáticas provocadas pelo homem. Além disso, o crescimento das redes sociais (e do fluxo de informações em geral) promove democratização, mas também promove desinformação: a ausência de filtros faz com que aquilo que é “místico” ou “conspiratório” ganhe mais espaço do que as coisas embasadas cientificamente. Por um motivo simples: as pessoas tem interesse especial pelo fantástico, pelo místico, pelas histórias simples que respondam aos seus questionamentos, que dêem conta daquilo que elas não sabem. Carl Sagan já falava sobre o assunto em “O Mundo Assombrado Pelos Demônios”:
O grande objetivo da ciência, desde o princípio, foi com a descoberta de da validade de pressupostos. A ciência questiona, analisa e coleta resultados com métodos específicos para que pressupostos possam ser validados e falseados. Nesse sentido, a ciência assemelha-se ao jornalismo: enquanto a ciência utiliza-se de métodos para validar ou falsear pressupostos, resolvendo questionamentos prévios e aumentando nossa compreensão sobre o funcionamento do universo, o jornalismo faz o mesmo em relação à informação: o exercício de apuração de notícias e de confronto de versões tenta se cobrir da mesma noção questionadora e esvaziada de conclusões prévias que a ciência tem.
A ciência e o jornalismo tem um inimigo em comum: as teorias e versões conspiratórias, deturpadas, com pouco ou nenhum embasamento em fatos reais. Por isso, é necessário que ambos sempre tenham o cuidado de buscar a precisão. Assim como um cientista deve buscar a máxima precisão possível quando faz uma medida, um jornalista deve buscar a máxima precisão ao transmitir uma informação. A falta de precisão tira a credibilidade do trabalho, ainda mais no contexto atual, em que há de fato uma concorrência entre a versão jornalística/científica da realidade e as versões conspiratórias produzidas por pessoas crédulas, que ignoram o método científico ou que só tem má fé mesmo.
Por isso, cada vez que um órgão jornalístico produz uma notícia com imprecisão, expondo uma manchete ou uma notícia com caráter tendencioso, ele produz conteúdo para os grupos fundamentalistas que acreditam em teorias conspiratórias ao invés de produzir conteúdo crível. Vamos analisar essa colocação tendo como ponto de partida um exemplo prático:
O Exemplo Prático:
Quem acessa as redes sociais com alguma frequência sabe que existem grupos políticos distintos na Internet, e que esses grupos políticos defendem ou atacam certos partidos políticos, muitas vezes motivados artificialmente (um eufemismo para “recebem dinheiro”).
Esses grupos, de caráter ideológico-corporativista, tem como objetivo a defesa de um grupo político (ou o inverso disso, que é o ataque a um grupo político oposto), e, para isso, obviamente são obrigados a se despojar de todo e qualquer método científico, uma vez que todos os grupos políticos, no Brasil e no mundo, fazem coisas boas e ruins. Mas a ausência de autocrítica em pronunciamentos públicos é característica desse tipo de militante não científico.
Por exemplo, vamos analisar essa manchete do Jornal O Globo, publicada em 08 de maio:
Bem, a manchete é clara: na autobiografia de José Mujica, Lula deve ter confessado a ele que realmente articulou e participou do episódio específico do Mensalão, esquema que envolveu figurões do PT como José Dirceu, José Genoíno e João Paulo Cunha, desarticulado em 2005 após denúncia do então deputado federal Roberto Jefferson, que na época era líder do PTB na Câmara dos Deputados. É uma manchete grave, que expõe como criminoso a figura política mais importante do país nos últimos quinze anos. Deve ser apurada em seus mínimos detalhes, ainda mais vindo de uma pessoa de credibilidade internacional como o ex-presidente uruguaio José Mujica.
No entanto, observamos a citação a respeito atribuída a Lula na reportagem:
Vou transcrever exatamente o que Lula falou, para não deixar dúvida:
“Neste mundo tive que lidar com muitas coisas imorais, chantagens. Essa era a única forma de governar o Brasil” Luiz Inácio Lula da Silva, 2010
Vejam bem: é uma declaração completamente genérica do ex-presidente Lula, quase em tom de desabafo, expondo algo que sabemos ser verdadeiro: a máquina política (e a sociedade) brasileira sempre esteve impregnada de corrupção, de pessoas tentando utilizar bens públicos em benefícios próprios. Nenhuma citação ao Mensalão ou a qualquer outro evento. Nem mesmo uma confissão de que Lula teria aceitado tais “coisas imorais e chantagens”. Só uma frase genérica.
Não estou falando que Lula é inocente ou coisa do tipo. Não é esse o foco da discussão. Só estou dizendo que a própria reportagem desmente a manchete. E que esse tipo de imprecisão é prejudicial ao jornalismo, e só serve a dois grupos em específico:
Aos militantes anti-petistas, que, desprovidos de qualquer senso crítico (porque o militante, de qualquer área, é um apaixonado), lêem apenas a manchete e já saem compartilhando nas redes sociais que “agora está provado que Lula é um criminoso”, juntamente com uma série de impropérios.
Aos militantes petistas, que utilizam reportagens como essa para embasar conspirações como a de que “a imprensa é golpista” e de que “todos estão contra o PT porque o partido está mudando o país”.
A imprecisão e a má fé jornalistica produzem notícias que favorecem a grupos conspiratórios. A imprecisão e a má fé científica produzem resultados de pesquisas que favorecem a grupos específicos interessados nesse resultado (como os negacionistas das mudanças climáticas, por exemplo).
A verdade é que a ciência e o jornalismo podem encontrar pressupostos verdadeiros ou podem se conformar com meias verdades ou com verdades convenientes. Como a do Senador Ted Cruz, candidato à presidência dos EUA nas prévias do Partido Republicano, que disse em março sobre o aquecimento global que “Os dados de satélite demonstram que nos últimos 17 anos tivemos zero aquecimento, nenhum que seja”. É uma afirmação desonesta: ele pegou apenas os dados de 1998 e de 2015. 1998 foi um ano atípico, por conta da ocorrência do fenômeno El Niño com intensidade inédita. Até hoje é um dos anos mais quentes da história. Ted Cruz distorceu os fatos em nome de sua ideologia
Da mesma forma, ocorre com petistas e anti-petistas em relação à declaração de Lula para Mujica. Lula pode ter participado do Mensalão? Óbvio que sim. A declaração é uma prova cabal de que ele participou? Não. Mas os petistas utilizarão a reportagem do Jornal O Globo como “prova cabal de que querem destruir o PT”, assim como os anti-petistas usarão como “prova cabal de que Lula deveria estar na cadeia”.
Porque militantes apaixonados agem sempre assim: buscam não apenas tirar a credibilidade do que é falado, mas também de quem fala. E é por isso que cientistas e veículos jornalísticos precisam sempre fazer trabalhos de excelência, com a máxima precisão: para não dar espaço a esse tipo de militante. Para impor pressupostos verificados cientificamente ou apurados jornalisticamente sobre conspirações feitas por militantes da ignorância que fazem isso por credulidade ou por dinheiro.
Por que isso é importante? Por um monte de motivos. Inclusive, para dar uma resposta à altura à tal “crise do jornalismo”, que tem afetado cada vez mais as redações brasileiras. E para a manutenção da coesão social, que se vê cada vez mais arranhada por discursos de ódio que começam nas redes sociais, mas que ganham cada vez mais reflexos e versões na vida cotidiana.
Carl Sagan, no mesmo livro citado no início do texto, fala sobre o assunto:
A ciência e o jornalismo são os elementos que a sociedade tem para combater essa “mistura inflamável de ignorância e poder” citada por Carl Sagan. É a única forma de vencer esse combate é fazendo ciência e jornalismo com precisão, com excelência. A imprecisão e a má fé na hora de pesquisar ou de informar são apenas combustíveis para essa “mistura inflamável de ignorância e poder”.
Mas aparentemente cada vez menos gente preza pela precisão e pela boa fé, seja na ciência, seja na política, seja no jornalismo. Nesse caso, é só aguardar a explosão dessa mistura inflamável de ignorância e poder. A “boa” notícia é que ela está dando sinais de que vai ocorrer logo.
Talvez o mérito desse texto seja só o de evitar surpresas.
Bem, pelo visto a minha interpretação estava correta mesmo http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/05/lula-diz-que-teve-de-lidar-com-coisas-imorais-relatam-uruguaios-em-livro.html
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Queridão (alá a falsa intimidade), “A imprecisão e a má fé jornalistica produz…” tem uma concordância mal parida aí, hein. Repete no período seguinte! Não seria “produzem”? Abraços! Excelente reflexão!
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Tem toda a razão. Já corrigi =)
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