Para entender a atuação de Eduardo Cunha no comando da Câmara dos Deputados, um pressuposto é essencial: ele veio do meio evangélico neopentecostal (mais precisamente da Igreja Sara Nossa Terra, que já teve fiéis como Baby do Brasil, Marcelinho Carioca e Monique Evans). Isso não seria um problema, se ele não pensasse na Câmara dos Deputados com a mesma visão hierárquica que ele tem de sua igreja neopentecostal. E qual é essa visão?
Bem, igrejas neopentecostais são extremamente centralizadas na figura do líder. Seja ele Pastor, Bispo, Apóstolo, Missionário ou qualquer outra coisa, que tem poderes similares ao de um “líder supremo”. No caso específico da Igreja Sara Nossa Terra, esse “líder supremo” é o Bispo Róbson Rodovalho.
E essa estrutura é justificada aonde? Em uma interpretação obtusa da Bíblia, obviamente. Passagens bíblicas como Romanos 13:1–5, por exemplo, são utilizadas para referendar a autoridade desses líderes (e dos pastores, nas igrejas locais) como algo vindo do céu e absolutamente incontestável, porque “a contestação traz condenação”:
Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus.
Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação.
Em verdade, as autoridades inspiram temor, não porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que temer a autoridade? Faze o bem e terás o seu louvor.
Porque ela é instrumento de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal.
Portanto, é necessário submeter-se, não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência.
Romanos 13:1–5
Esses líderes ignoram o contexto óbvio da época: a igreja cristã de Roma era perseguida pelos Césares, e era relativamente comum que surgissem movimentos políticos subversivos dentro dessa igreja oprimida. Paulo desencoraja esses movimentos sistematicamente, temendo que a igreja cristã espalhada pelo Império Romano fosse dizimada pelo poder político da época (algo que era bem provável de ocorrer, aliás). A interpretação literal e descontextualizada dessa passagem bíblica (e de algumas outras, como a de que o pastor é o “anjo da igreja”, baseada em Apocalipse 1 e 2, o que é algo notoriamente falso) faz com que os líderes não admitam nenhum tipo de contestação, sob pena de “amaldiçoar” e “condenar” os irmãos da igreja.
É bom ressaltar que não são todas as igrejas que tem esse tipo de conduta: batistas, presbiterianos, luteranos e metodistas, em sua maioria, elegem pastores, presbíteros e diáconos por um tempo determinado, evocando o princípio de que a autoridade divina está expressa na igreja enquanto comunidade, e não apenas na figura do pastor. Outras igrejas não são tão democráticas, mas também não são tão centralizadoras: os pastores tem uma equipe ao seu redor que monta o planejamento eclesiástico e as funções são delegadas, fazendo com que as diversas áreas da igreja (música, ação social, limpeza, marketing, etc…) fiquem nas mãos de diferentes pessoas, que não precisam necessariamente do aval pastoral para tudo.
No caso específico de Eduardo Cunha, no entanto, isso não ocorre. Igrejas como a Sara Nossa Terra funcionam praticamente como franquias: o Bispo Rodovalho manda pastores para comandar novas igrejas e em algum tempo essa igreja tem que se mostrar viável financeiramente. É de se imaginar que, como “donos de franquias”, esses pastores adotem uma postura extremamente centralizadora, embasando-a na “autoridade divinamente constituída”. O problema é que Eduardo Cunha levou essa mentalidade para o Congresso Nacional.
A Câmara como uma Igreja
Ao enxergar a Câmara como uma igreja, Eduardo Cunha emula a rede que se forma em torno dos pastores evangélicos de igrejas neopentecostais como a Sara Nossa Terra. E como funciona essa estrutura? É quase como uma pirâmide: o grupo se reúne em torno do pastor não apenas por causa da motivação religiosa, mas também por promessas de ascensão hierárquica: o pastor sonha em se tornar um bispo e, quem sabe, em ter seu próprio ministério um dia; o presbítero sonha em se tornar pastor e em ter sua própria igreja; o diácono sonha em ser presbítero e em auxiliar o pastor de perto; membros comuns sonham com lideranças ou cargos. Isso não é generalizado, não acontece em todas as igrejas evangélicas, mas é muito comum, principalmente nas neopentecostais.
No Congresso, obviamente não há a motivação religiosa como elemento aglutinador e nem a visão do líder como uma autoridade divinamente constituída. Como Eduardo Cunha consegue exercer liderança então? Pra isso precisamos resgatar o pensamento de Walter Benjamin de que o capitalismo é uma religião. E na religião do capitalismo, o controle se dá pelo dinheiro.
Eduardo Cunha não se furta a ser agente de lobbies diversos, que vão bancar as campanhas eleitorais suas e de seus aliados. O processo funciona em duas etapas:
1) Eduardo Cunha vende favorecimento legislativo em troca de financiamento de campanhas eleitorais: ao chegar a acordos com empresas, Cunha consegue comprometer esses grupos a doar para seu grupo político na próxima eleição. Planos de saúde, indústrias de bebidas, empresas de telecomunicações, organizações empresariais, todos fazem esse jogo com Eduardo Cunha para verem seus interesses atendidos. No caso do PL 4330/2004, que estende a terceirização a todas as atividades, a negociação foi diretamente com a FIESP e com a Firjan. Que certamente orientarão as empresas filiadas a doarem para o grupo político de Cunha na próxima eleição.
2) Eduardo Cunha vende dinheiro para campanhas eleitorais em troca de apoio. Na última eleição, estima-se que algo entre 20 e 30 deputados foram eleitos com o dinheiro arrecadado por Eduardo Cunha. Quanto mais Eduardo Cunha arrecada, mais ele pode bancar deputados.
Isso explica, por exemplo, a posição contrária de Eduardo Cunha ao fim do financiamento eleitoral por empresas. Sua sobrevivência política, baseada no escambo eleitoral, depende desse financiamento. É como se ele fosse um doleiro ou lobista, mas presidindo uma das duas casas legislativas federais.
E o que isso tem a ver com uma igreja? Essa troca de favores qualifica Eduardo Cunha a ocupar a posição de “líder absoluto”, que é o estilo de liderança que ele herdou do meio eclesiástico. Além disso, esses deputados vassalos de Eduardo Cunha ganham outros privilégios, como os cargos distribuídos em órgãos internos como a TV Câmara.
Por que esse modelo é insustentável?
Nem vamos entrar no mérito de que isso é uma violação das instituições democráticas e um sequestro da casa legislativa para interesses pessoais e corporativos, porque isso é óbvio demais e Eduardo Cunha não foi o primeiro sujeito a cometer esse tipo de coisa. Mas o modelo de Eduardo Cunha é totalmente insustentável.
O primeiro motivo, mais óbvio, é o de que o Congresso não é uma igreja. Se a graça de Deus é infinita, o dinheiro não é. E existem deputados que não se rendem aos esquemas de Eduardo Cunha. Ou porque já tem seus próprios esquemas, ou porque são honestos, ou porque tem ojeriza política de uma figura tão polêmica e centralizadora. Em uma posição de poder como a de Presidente da Câmara, a oposição a Eduardo Cunha é inevitável.
O segundo motivo é que a postura centralizadora e midiática de Eduardo Cunha vai fazer com que ele colecione inimigos, na Câmara dos deputados e na sociedade civil. A exposição excessiva de Eduardo Cunha em temas polêmicos, como terceirização, maioridade penal, orgulho hétero, sucateamento do SUS e a Reforma Política corporativista do PMDB só vão acelerar o processo de fritura política de Cunha.
Além disso, Cunha foi indiciado na Operação Lava Jato, com provas bem consistentes. A maioria delas se baseia em delações premiadas, como a do doleiro Alberto Yousseff, devidamente referendadas pelo STF como provas. Renan Calheiros e Eduardo Cunha sabem que tem vida curta nas presidências do Senado e da Câmara dos Deputados. Enquanto Renan, que já lidou com diversos outros escândalos, adota uma postura mais discreta, Eduardo Cunha tenta aprovar todos os projetos de sua pauta conservadora-empresarial em um ritmo alucinante, passando por cima dos próprios regimentos da Câmara. Inclusive projetos de constitucionalidade discutível, que acabam no STF, provavelmente adiando o julgamento da… Lava Jato.
E, finalmente, há uma resistência interna crescente, dentre os próprios aliados. A postura de Cunha difama o próprio Congresso Nacional, colocando-o como vilão para a sociedade e dando uma justificativa para o Executivo terceirizar a culpa em relação à situação atual do país. Deputados do PMDB, que só querem cargos e vantagens, precisam de DISCRIÇÃO, e a postura do Eduardo Cunha atrapalha demais isso. Antes de serem fiéis do Cunha, esses deputados tem instinto de sobrevivência: só querem eternizar suas vantagens, e o Eduardo Cunha tratando o Congresso como uma igreja certamente não ajuda nisso.
Igrejas frequentemente se dividem, por cisões internas inconciliáveis. Isso ajuda a explicar, junto com o trabalho missionário, porque existem hoje no Brasil tantas Igrejas Evangélicas. Na Câmara dos Deputados, esse tipo de cisão não é possível. E a liderança absolutista de Eduardo Cunha vai encontrar progressivamente menos respaldo, até se tornar insustentável.
O brasileiro, seja na vida cotidiana ou na Câmara dos Deputados, tem a mania de culpar o líder por todos os seus problemas, e com Eduardo Cunha não será diferente: sua postura megalomaníaca, semelhante à de um líder religioso “revestido de autoridade divina”, vai corroer rapidamente suas relações de vassalagem baseadas no dinheiro, porque a manutenção de Eduardo Cunha no poder vai começar a ser mais custosa para a Câmara dos Deputados do que a sua renúncia.
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