A decadência do PT enquanto partido de bases

Na Ciência Política, o estudo do caso brasileiro após a redemocratização aponta para dois tipos de partidos políticos: o primeiro grupo é o dos partidos de quadros, que conquistam seus votos através de “estrelas” conhecidas do grande público. Quase todos os partidos relevantes do Brasil pós-redemocratização tem esse viés: nasceram de um líder ou de um grupo de pessoas que usou a notoriedade política prévia para conseguir votos. O PSDB, nascido pela reunião de uma série de cabeças pensantes com história política distinta, é o exemplo máximo desse tipo de partido no Brasil. Mas também tivemos partidos formados em torno de nomes como Maluf, Brizola, Antônio Carlos Magalhães, Roberto Freire e outros, que, independentemente da ideologia política, se sustentaram na força eleitoral de seus quadros.

No entanto, havia uma única exceção. Um único partido político no Brasil que se formou de outra forma, como um partido de bases: o PT. Um partido de bases é diferente de um partido de quadros, porque, apesar de ter “estrelas” com votação expressiva, é amparado em bases eleitorais populares, e as bases do PT eram duas: o movimento sindical e as comunidades eclesiais de base.

O fato do PT ser um partido de bases fez com que muitas tendências fossem criadas dentro do partido. A filosofia de um partido de bases como o PT, de forma muito simplificada é a da “liberdade interna de opinião aliada ao respeito às deliberações do partido, decididas democraticamente”. E essa filosofia, aliada às bases do partido e à união entre trabalhadores, religiosos, ícones culturais e acadêmicos, fez com que o PT fosse o grande guarda-chuva agregador da esquerda brasileira à partir da década de 80, com poucas perdas relevantes até Lula assumir o poder, em 2003.

Foi com o apoio das Comunidades Eclesiais de Base, formadas na década de 60 com apoio de ícones da Teologia da Libertação, como Leonardo Boff e Frei Betto, que Lula montou sua tendência partidária, a Articulação, na década de 80. A tendência foi a predominante no partido durante a maior parte do tempo, mas sempre respeitou a democracia interna do PT: em 2002, por exemplo, embora a candidatura de Lula à presidência parecesse óbvia, ele teve que disputar a indicação do partido com o Senador Eduardo Suplicy.

Com a chegada de Lula ao poder e a articulação com setores conservadores representados no Congresso pela governabilidade, o partido começou a se esfacelar. Algumas tendências de esquerda, como a Ação Popular Socialista, saíram do partido e fundaram o Psol. Em 2005, explodiu o escândalo do Mensalão, atingindo em cheio nomes da Articulação. Tanto que, após o Mensalão, a tendência teve que se reorganizar, apesar de continuar tendo a maioria no partido.

Só que, para continuar tendo a maioria no partido, a democracia interna foi comprometida. As eleições para a diretoria do PT continuam sendo democráticas, com votação aberta aos militantes, mas muitas indicações para cargos públicos não. A imposição do nome de Dilma Rousseff para a disputa presidencial nas eleições de 2010, pelo então Presidente Lula, foi o momento emblemático de enfraquecimento dessa democracia interna.

Paralelamente a isso, ocorreram dois movimentos de enfraquecimento das bases. O primeiro deles, associado aos movimentos sindicais, tem a ver com o próprio exercício do poder pelo PT. Sindicatos são entidades baseadas no enfrentamento, e o PT se colocou em uma situação bastante contraditória ao ter que, ao mesmo tempo, representar os sindicatos e negociar políticas de fomento à indústria com os empresários. Um sinal do desgaste proveniente da exposição dessas contradições é o de que a bancada sindical se reduziu quase pela metade nessa eleição de 2014: de 83 para 46 deputados. Outro exemplo similar ocorreu em relação ao Movimento Sem Terra (MST): ao mesmo tempo em que oferecia apoio e financiamento ao agronegócio, o governo petista apoiava a política de assentamentos do MST.

No caso das Comunidades Eclesiais de Base, o enfraquecimento se deu por outros motivos: na década de 80, o Vaticano retaliou fortemente a Teologia da Libertação, afastando as comunidades do controle da CNBB. Além disso, o crescimento evangélico entre os mais pobres enfraqueceu a coesão dessas comunidades, diminuindo sua relevância. E a inserção da discussão de valores morais conservadores nos programas de governo, à partir das eleições de 2010, colocou as comunidades religiosas em conflito com os setores mais progressistas do partido, o que acabou freando o atendimento de demandas por direitos de militâncias como as de mulheres e de homossexuais.

Além disso, há um terceiro fator para esse enfraquecimento, que é superestimado pela esquerda, em um claro discurso de vitimização, mas que não pode ser desprezado: o PT é vítima de seu próprio sucesso nas políticas de erradicação da pobreza. Não é algo automático, como a militância petista quer fazer parecer, mas muitas pessoas deixaram de ser pobres nos governos do PT, e passaram a se identificar com as classes mais altas da sociedade. E isso não é condenável, é algo psicológico: a pobreza e a insegurança alimentar trazem lembranças ruins, e a maioria das pessoas que saem da pobreza prefere se identificar com as classes mais altas justamente para não viver sufocado por essas lembranças ruins de privação do passado recente.

Outra coisa interessante de se fazer é a comparação das Comunidades Eclesiais de Base com a inserção de grupos evangélicos na política. As comunidades, nascidas na ditadura militar, tem lideranças difusas, interlocução direta com os fiéis e uma ideologia predominante de esquerda, baseada na vida em comunidade e na ajuda mútua: algo que, na teoria, lembra até mesmo a igreja primitiva descrita no capítulo 2 do Livro de Atos.

O grupo evangélico, baseado na prosperidade e no culto à personalidade de líderes com atribuições quase proféticas, é predominantemente conservador, porque a interlocução política nesses grupos não é feita com os fiéis, mas com os líderes. E esses líderes tem como estratégia controlar esses grupos pelo medo (do inferno, do fracasso) e pelo carisma (baseado em promessas de prosperidade e vitória). É, em parte, a mesma estratégia utilizada pelos defensores de um estado policial conservador, como descrito brilhantemente pelo Bruno Paes Manso aqui.

Com todo esse cenário de corrosão da democracia interna e de exposição de contradições, o PT acabou se desgastando. E, nessa eleição de 2014, esse desgaste está resultando na perda das bases eleitorais históricas do partido. É óbvio que não dá para menosprezar a massa de eleitores do PT que é beneficiada pelos programas sociais do partido. Também é impossível  dizer que o partido, que continua com a maior bancada de deputados da Câmara, está fraco. Não está. Só mudou o seu perfil.

Exemplo notório dessa mudança de perfil é o candidato a deputado federal mais votado do PT em São Paulo: Andrés Sanches. Sim, o ex-presidente do Corinthians. É um quadro “puxador de votos”, sem nenhum histórico no partido. Exatamente como ocorre nos demais partidos políticos. Reflexo de que as bases do PT já não tem sido suficientes para garantir votos ao partido.

Nesse sentido, a perda da Presidência da República por uma candidata a reeleição que não é militante histórica do partido seria só mais um sintoma dessa mudança de perfil. A pergunta, agora, independente do resultado da eleição, é se o PT vai continuar trilhando o caminho para se assumir como um partido de quadros, igual a todos os outros, ou se vai tentar retomar a interlocução com suas bases para voltar a ser o partido diferenciado que já foi um dia.

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6 comentários sobre “A decadência do PT enquanto partido de bases

  1. Excelente texto, mas faço alguns reparos: A APS não “saiu” do PT, foi saída, expulsa. E foi mais que a APS, mas amplos setores que vieram a formar a CST, MES, etc. As eleições continuaram sendo democráticas, porém o PT virou uma festa em que qualquer um se filiava e, claro, esses neofiliados em geral estavam com o CNB ex Campo Majoritário. Tudo muito bem pensado para garantir e ampliar o controle da direita sobre o partido. E, como você analisou, Lula indicou Dilma e o partido engoliu. Assim como Haddad, Padilha…

    Outro ponto é que, de fato quando você sobe, não quer se lembrar/identificar com o lugar de onde veio (isso vale pra muitos, não pra todos, claro), mas há também um fator preponderante que é o desejo de se tornar opressor. Você não é mais o oprimido (ou acha que não é), agora pode ser opressor. O que é o PM que mora na favela oprimindo o vizinho? A nova classe média que tem horror a pobre, porque veio de lá? O pobre que é vítima da PM mas defende pena de morte? Todo mundo quer ser o opressor.

    Sei que é estranho começar criticando o texto, mas bem, gostei muito do texto. Concordo em geral com as análises e me somo ao questionamento final. Aproveito pra um pequeno jabá, uma análise do momento eleitoral e da readequação conservadora do congresso: http://www.amalgama.blog.br/10/2014/readequacao-conservadora/

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    • Ah, sim, eu falei da APS como exemplo mesmo, mas tá claro que outras tendências do partido acabaram expulsas junto. Eu comentei que essas tendências “saíram” porque pensei que descrever todo o processo que levou à expulsão desses grupos do PT fosse algo relativamente extenso que acabaria fugindo um pouco da ideia central do texto.

      E o desejo de se tornar opressor é muito real. Como você falou: a pessoa que acabou de deixar de ser pobre é a que mais segrega, porque não quer se identificar com um estado que lhe era negativo. Faz todo o sentido.

      E valeu, li ainda ontem seu texto, está muito bom e coerente também dentro de uma análise eleitoral de viés esquerdista. Abraço!

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  2. Pingback: Lula, não volte em 2018 | Um Pouco de Prosa

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