Convém atualizar algumas informações sobre o conflito entre russos e ucranianos, que foi contextualizado na semana passada, quando ainda era uma revolta dos ucranianos contra o governo Yanukovich.
O Estado Atual das Coisas
No sábado, dia 22 de fevereiro, o presidente Viktor Yanukovich foi deposto pelo Parlamento Ucraniano. A discussão aqui não é se foi “revolução” ou “golpe”. A questão é que o ex-presidente Yanukovich foi o responsável pela morte de 77 pessoas na semana de protestos anterior à deposição, inclusive utilizando snipers para assassinar cidadãos envolvidos em protestos.
Já é de conhecimento geral que a Ucrânia é um país bastante dividido no que se refere às preferências políticas e às influências étnicas. No entanto, a única região do país que não tem predominâncias de ucranianos étnicos é a Península da Crimeia, que conta com maioria de russos:
Na Crimeia, e em diversas outras partes do leste e sul da Ucrânia, não houve apoio à deposição de Yanukovich. Pelo contrário: assim que Yanukovich foi deposto, protestos começaram na região, que elegeu um novo Premier à revelia do governo de Kiev.
Paralelamente a isso, o governo russo, de Vladimir Putin, abrigou Viktor Yanukovich, que deu uma conferência na sexta-feira, na cidade russa de Rostov-on-don, dizendo que ainda se considera Presidente da Ucrânia. No dia seguinte, Putin pediu aval ao parlamento russo para invadir a Ucrânia (e enquanto isso já posicionava tropas na Crimeia)
A Criméia
Em relação a Crimeia, convém lembrar uma coisa: os russos mantém uma base militar na cidade autônoma de Sevastopol desde a época da União Soviética. A Rússia considera Sevastopol a “casa da frota do Mar Negro”, que dá, indiretamente, acesso da Rússia ao Mar Mediterrâneo.
Aumentar o efetivo dessas tropas na Crimeia foi muito fácil para a Rússia, que já tinha efetivo militar. Além disso, a Rússia conta com largo apoio da população da região e até mesmo com uma legião relevante de soldados ucranianos que mudaram de lado.
Dois eventos importantes do século XX ajudam a explicar a tensão na Crimeia. O primeiro deles, ocorrido em 1944, foi a deportação dos Tártaros, população original da região, pelo governo de Stálin. Com a alegação de que os tártaros “apoiaram os nazistas”, Stálin enviou o povo todo para campos de trabalhos forçados no Uzbequistão. Depois de muitos anos, eles foram autorizados a voltar para Crimeia (sem suas posses originais, no entanto)
O segundo evento ilustra bem a relação de amor e ódio que a Rússia tem com a Ucrânia. Em 1954, Nikita Kruschev, em comemoração aos “300 anos da união entre Rússia e Ucrânia”, incorporou a Crimeia ao território ucraniano, como uma espécie de “presente”. No entanto, a maioria da população da região seguiu sendo de etnia russa, até os dias de hoje.
Essa “doação” da Criméia para a Ucrânia exemplifica a relação entre russos e ucranianos, e se aplica a todos os povos que foram dominados pelos soviéticos. A Rùssia se comporta como uma espécie de irmão mais velho e mais forte, que pratica bullying contra todos os demais irmãos. Em algumas oportunidades, porém, concede favores. Esse tipo de postura histórica faz com que os povos ao redor da Rússia atual (especialmente os ucranianos) tenham postura ambígua: enquanto uma parte deles acha que a Rússia é o irmão mais velho que está ali para ajudar, outra parte acha que a Rússia só quer oprimir a Ucrânia e o certo mesmo é dar as costas pra eles, como os Países Bálticos fizeram.
Também é bom lembrar que a Criméia tem importância econômica, histórica e estratégica para a Rússia. Faz com que os russos possam exercer controle do Mar Negro, o que para eles é fundamental para a manutenção da estabilidade da região.
Possíveis agravantes
Dado o contexto, alguns fatos podem agravar a situação na região, internacionalizando o conflito:
A Ucrânia é o único país do mundo que renunciou voluntariamente ao seu arsenal nuclear (que era o terceiro maior do mundo em 1994, atrás apenas de EUA e Rússia). Essa renúncia foi formalizada através do Memorando de Budapeste. Esse memorando, assinado por EUA, Grã Bretanha e Rússia, garantia a segurança e a integridade do território ucraniano contra invasões de qualquer tipo. Ou seja: se a Ucrânia fosse atacada, os países signatários do acordo seriam obrigados a defendê-la. Como isso obviamente não se aplica à Rússia, EUA e Grã Bretanha, em tese, têm a obrigação de proteger o território ucraniano.
Independente do que vai ocorrer daqui em diante, um efeito negativo é certo: ninguém renunciará ao seu programa nuclear tão cedo. Desde a invenção da bomba atômica, na década de 40, NENHUMA potência nuclear do mundo teve seu território invadido. E a Ucrânia provavelmente não estaria sendo invadida se não tivesse renunciado ao seu arsenal atômico em 1994.
Além disso, países como Polônia, Lituânia e Grécia já declararam apoio à Ucrânia. A Polônia chegou a movimentar tropas para a região da fronteira. O poderio bélico desses países é irrelevante, mas o gesto é simbólico: são todos países membros da OTAN, em áreas fronteiriças, que não tolerarão nenhuma tentativa de avanço das tropas russas para a região.
Por que a Rússia preocupa?
Os motivos de preocupação com a Rússia são óbvios. O país é governado de forma quase ditatorial por um líder megalomaníaco com ambições imperiais que remontam ao regime soviético e à tradição dos czares.
Além disso, o regime de Vladimir Putin conta com outras características obscuras:
– Repressão às minorias, como os gays (que motivou protestos nas Olimpiadas de Inverno em Sochi)
– Inexistência de liberdade de imprensa: a Rússia não tem imprensa livre, e a situação se agravou nos últimos anos. Os órgãos que tinham postura crítica ao governo Putin foram fechados e só sobraram as agências oficiais de imprensa – ou que apoiam o regime de Putin. O levantamento anual da Freedom House mostra a Rússia como um dos países com mais restrições à imprensa no mundo:

Verde: países com liberdade de imprensa
Amarelo: países com liberdade parcial de imprensa
Azul: países sem imprensa livre
(Fonte: Freedom House)
– Sufocamento da oposição: a oposição russa é sistematicamente reprimida pelo governo de Vladimir Putin. Caso emblemático é o das Pussy Riots, que passaram dois anos presas por criticarem o regime de Putin. E um caso mais antigo, que mostra bem o poderio russo, é o envenenamento do ex-espião e crítico do governo russo Alexsander Livtinenko, com polônio.
– Corrupção: dentre os 177 países analisados pela Transparência Internacional para a construção do Corruption Perception Index em 2013, a Rússia está apenas na 127ª posição, atrás de países como Guatemala e Serra Leoa. (Fonte)
– Não reconhecimento do novo governo ucraniano: além de abrigar Viktor Yanukovich, o governo do Putin segue não reconhecendo o novo governo ucraniano e ignorando as diversas chamadas para negociação feitas pelo gabinete em Kiev. Uma declaração do primeiro-ministro Dmitry Medvedev no Facebook pode dar o tom da estratégia do governo russo: Medvedev falou que “com certeza haverá uma segunda revolução que tirará do poder esse governo ilegítimo”.
De acordo com a declaração de Medvedev, a estratégia russa pode ter duas frentes nos próximos dias: enquanto tropas invadem e dominam a Crimeia, protestos contra o governo ucraniano são fomentados no restante da Ucrânia. De fato, protestos massivos contra o governo vêm ocorrendo desde sábado em cidades do leste da Ucrânia, como Donetsk, Mariupol e Kharkhiv.
Por que a Ucrânia preocupa?
As preocupações em relação à Ucrânia, a rigor, são duas:
– Leniência com o neonazismo: é preciso deixar bem claro que o governo da Ucrânia não é neonazista “por si”. O gabinete do presidente Arseniy Yatsenyuk não tem tendências neonazistas ou algo do tipo. Mas o governo conta sim com participação de neonazistas. Especialmente do partido Svoboda, de Oleh Tyannybok. Tyannybok participou das negociações frustradas com Viktor Yanukovich juntamente com Yatsenyuk e com o ex-campeão de boxe Vitaly Klitshcko. E, após a deposição de Yanukovich, viu o Svoboda assumir três ministérios, após uma recusa inicial à entrada no governo. É o tipo de atitude que alimenta o discurso de ilegitimidade do governo por parte da Rússia e de Yanukovich.
Além disso, outros setores neonazistas, especialmente o “Right sector”, uma espécie de “carecas do ABC” da Ucrânia, tem feito ataques diversos sem nenhuma repressão governamental, inclusive em sinagogas, como nessa, em Simferopol (Crimeia):
– Corrupção: a Ucrânia é apenas o 144º lugar no Corruption Perception Index da Transparência Internacional para o ano de 2013, entre 177 países. Estima-se que, em três anos de governo, o presidente Viktor Yanukovich desviou US$ 37 bilhões de dólares do país. Para ter uma ideia do tamanho do rombo, isso é mais de 7% do PIB UCRANIANO do período (que é de aproximadamente US$ 523 bilhões, somando-se os três anos). Para se ter ideia da dimensão da corrupção no país, o filho de Viktor Yanukovich ganhou 50% dos contratos do governo federal ucraniano no mês de janeiro, antes da deposição do presidente.
Com isso e com a paralisação econômica proporcionada pelos protestos, a Ucrânia está à beira da falência. Com isso, o governo do país não consegue controlar a situação internamente, em situação análoga à vivida no país na crise econômica da década de 90. Essa falta de controle pode gerar uma crise de legitimidade, e essa é a aposta de Moscou: é bom lembrar que a Crimeia e o leste da Ucrânia, que são os locais onde está o maior apoio à Rússia, são as áreas mais ricas do país.
A aposta de Kiev está na ajuda externa. No entanto, EUA e União Européia não se mostraram muito dispostos a ajudar o país (ofereceram US$ 1 bilhão semana passada, um TROCO DE BALA perto dos US$ 35 bilhões que Putin tinha oferecido para Yanukovich em janeiro).
Próximos Passos
É impossível prever com precisão o que pode acontecer daqui em diante. Conflitos como esse criam efeitos dominó imprevisíveis. Mas as possibilidades imediatas são:
– Rússia ouve os apelos de EUA, ONU, União Européia e OTAN e sai da Criméia (hipótese absolutamente improvável)
– Ucrânia vê que não tem condições de lutar pela Crimeia, desiste e entra em tribunais internacionais pedindo uma pesada indenização pela perda do território (pouco provável também)
– Ucrânia luta contra os russos na Crimeia (hipótese mais provável – e de efeitos mais imprevisíveis)
Dadas essas hipóteses, quais os maiores receios daqui em diante:
– O envolvimento de outros países no conflito, especialmente após a tomada de posição por parte de Polônia, Lituânia e Grécia (que, repito, não tem muito efeito prático, mas é simbólica)
– O conflito atingir o resto da Ucrânia, especialmente após a ideia de “Segunda Revolução” de Medvedev, que sugere um esforço de desestabilização do atual governo ucraniano.
– O conflito se tornar letal, repetindo padrões de assassinatos em massa como os ocorridos, por exemplo, no conflito da Bósnia. O risco de limpeza étnica na Crimeia, onde existem minorias relevantes de ucranianos e tártaros, não deve ser desprezado.
– A invasão da Crimeia ser apenas mais um passo na política neoimperialista de Putin. Especula-se, por exemplo, que ele possa fazer o mesmo com o Quirguistão.
Até o momento, é isso. O conflito segue localizado, e ainda não ocorreram batalhas. A tensão entre Rússia e Ucrânia é crescente, tem raízes históricas e é o que separa, politica e geograficamente, a Ucrânia. E isso nunca deve sair do foco em qualquer análise envolvendo o país.
Outros textos interessantes sobre o tema:
“Ukraine crisis: No wonder Vladimir Putin says Crimea is Russian” – de Rodric Braithwite, no The Independent
“Ukraine crisis: what the next for both sides?” – de Bridget Kendall, na BBC News
“Here’s What’s Happening in Ukraine Right Now” – de Linda Kinstler, no The New Republic
“The Battle for Eastern Ukraine is Underway” – de Matthew Kaminski, no Wall Street Journal
Perfeito Léo parabéns cara
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Como sempre, show de bola suas análises, Leo! Como andam as coisas? Abração!
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Tudo ótimo aqui. Saudades, inclusive =)
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Por mais que uma limpeza étnica na Crimeia não deva ser descartada, essa opção, imagino eu, deva ser a última a ser pensada até pelos próprios russos e seus descendentes que moram na região.
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Concordo. Mas é esse “temor” que Putin está usando pra justificar a invasão.
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Excelente, Leo.
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