Algumas Considerações Sobre a Crise na Ucrânia

A praça da Independência, em Kiev, na quinta feira 19 (Fonte: Wall Street Journal)

A praça da Independência, em Kiev, na quinta feira 19 (Fonte: Wall Street Journal)

A Ucrânia vive uma das piores crises institucionais de sua história. Os protestos, que ocorrem desde novembro, deixam um rastro de sangue, violência e destruição no país. O próprio Ministério da Saúde do país confirmou que existem ao menos 77 mortos e 577 feridos desde o acirramento dos confrontos, na última terça feira.

A situação no país é catastrófica, mas não merece análises simplistas. O país está em uma localização geográfica estratégica entre a Europa e a Ásia. Para compreender o que está acontecendo na Ucrânia é necessário se debruçar sobre a história e as motivações existentes no país.

O Contexto Histórico

As raízes da Ucrânia atual estão na Rus Kievana – o principado de Kiev. A Crônica de Nestor nos diz que o viking sueco Rorik fundou, em 862 a.D, o condado de Novgorod, no mesmo lugar onde se encontra, hoje, a cidade de nome similar. Em 880, aproximadamente, a capital do condado foi transferida para Kiev.

A primeira observação importante precisa ser feita aqui: essa data também é considerada a data de fundação da Rússia como Estado. Ucrânia, Rússia e Bielo-Rússia consideram essa data o marco originário de seus Estados nacionais. Com a dissolução do Principado de Kiev,  no século XII, parte da herança cultural eslava acabou indo para Moscou. O fato é que muitos russos ainda consideram Kiev (e a Ucrânia, como um todo) como parte histórica de seu território, tendo em vista que o país se originou do Principado de Kiev.

A região de Kiev esteve, até o século XVII, sob domínio de lituanos e poloneses. Nessa época, os cossacos organizaram uma rebelião contra o reino polonês, que impunha um regime de servidão aos habitantes das margens do Dniepre (rio que corta a Ucrânia e passa por Kiev). Esse momento histórico é importante porque, em 1648, o Império Russo se aliou aos poloneses para reprimir a rebelião cossaca. E, como recompensa, se apropriou do território.

Nesse período, russos e ucranianos já eram povos distintos, inclusive no idioma. Enquanto os russos levaram consigo a herança do Principado de Kiev para expandir seu Império após o recuo dos mongóis, no século XIV, os ucranianos tiveram mais contato com a cultura bizantina e com os povos do Cáucaso.

Essa compreensão não era compartilhada pelo Império Russo. No século XIX, os czares implantaram uma política de “russificação” intensiva no território ucraniano e proibiram a utilização do idioma ucraniano em lugares públicos. Qual a importância disso? Essa “russificação” começou a mudar o perfil demográfico do leste e do sul da Ucrânia, tornando predominantes na região os habitantes de etnia russa.

Com a Revolução Russa e a anexação da Ucrânia pela União Soviética, o processo se agravou. Stálin combateu o nacionalismo ucraniano por todo o seu governo. Na década de 30,  a arma de Stálin foi a coletivização forçada que causou a grande fome de 1932-1933, conhecida como Holodomor, reconhecida como genocídio étnico por mais de 20 países. Após a 2ª Guerra Mundial, o exército soviético combateu milícias nacionalistas até esmagá-las definitivamente, em 1955. Tudo isso serviu para alimentar o ressentimento histórico dos nacionalistas ucranianos contra a opressão dos russos.

A Independência

Com a derrocada do bloco soviético, a Ucrânia declarou independência em 24 de agosto de 1991. O processo político de independência foi relativamente tranquilo, com a Rússia enfraquecida. Mas o processo econômico não foi. Na década de 90, a Ucrânia passou pelo maior processo de empobrecimento que um país “em paz” sofreu, durante o século XX. Foram DEZ anos seguidos de recessão econômica. No final de 2000, o valor do PIB ucraniano representava apenas 41% do valor do PIB ucraniano em 1991. Reparem na insanidade dos dados de crescimento econômico ucraniano no gráfico abaixo:

Crescimento do PIB ucraniano 1990-2014 (Fonte: wikimedia commons)

Crescimento do PIB ucraniano 1990-2014 (Fonte: wikimedia commons)

Existem dois problemas nesse processo de empobrecimento. O primeiro é o mais óbvio: nenhum país empobrece de tal forma sem consequências catastróficas. O empobrecimento provocou o aumento da violência, a emigração em massa de ucranianos para outros países da Europa, como Portugal, e o enfraquecimento do governo do país, que já era débil.

O segundo problema é o de que nenhum empobrecimento dessa dimensão ocorre naturalmente. A Ucrânia foi espoliada na década de 90. A economia nacional sofreu na mão de diversas máfias, que contrabandeavam tudo o que podiam de um país caótico, sem um governo exercendo um mínimo de controle. De armas a produtos agrícolas, as perdas enfrentadas pela Ucrânia na década de 90 foram inestimáveis. E inserem um novo componente de ressentimento nacionalista aos ucranianos: a grande maioria dessas máfias era de origem russa, muitos “mafiosos” da época se apropriaram depois de empresas russas e até mesmo tomaram parte em governos como o de Vladimir Putin.

Estava armada a bomba.

O Contexto Atual

Um país empobrecido, em crise econômica e dividido politicamente. Era assim que a Ucrânia adentrava o século XXI. Nesse cenário, a divisão política na Ucrânia oscila entre o nacionalismo extremo e os “russistas” extremos, que querem ver o país sob comando russo de novo. O resultado dos últimos dez anos de eleições mostra claramente a divisão política e étnica do país:

Mapa eleitoral ucraniano 2004-2012 (Fonte: geocurrents.info)

Mapa eleitoral ucraniano 2004-2012 (Fonte: geocurrents.info)

Na eleição de 2004, Viktor Yushchenko (pró-ocidente) foi envenenado e a eleição foi fraudada pelo presidente da época, Viktor Yanukovich (sim, é o mesmo presidente de hoje). A fraude e o envenenamento culminaram na “Revolução Laranja”, pacífica e de caráter nacionalista. Yushchenko assumiu o poder em 2005.

É bom lembrar que a Rússia não vê com bons olhos a aproximação da Ucrânia com o ocidente. Exemplo disso é o das crises no fornecimento de gás natural da Rússia para a Ucrânia, em 2006 e em 2009. Durante governos ucranianos pró-ocidente. É bom frisar que o gás natural é essencial para o aquecimento das casas durante o rígido inverno do país, e que, durante a crise de 2006, em que o fornecimento de gás chegou a ser cortado pela Rússia, foram registradas diversas mortes por conta do frio na Ucrânia.

No entanto, os governos pró-ocidente da Ucrânia, de Yushchenko e Yulia Tymoshenko, foram marcados pela corrupção e pela crise econômica de 2008 (reparem nos 15% de queda do PIB ucraniano em 2009, no gráfico acima).

Nesse cenário de crise, Viktor Yanukovich ganhou as eleições presidenciais de 2010 e promoveu uma aproximação com o regime de Putin. Além disso, promoveu o que a oposição julgou como “perseguição política” de seus adversários: a Justiça da Ucrânia prendeu Yulia Tymoshenko em 2011, por corrupção e abuso de poder em contratos de gás natural, com base em leis existentes na época da União Soviética. O parlamento ucraniano só aprovou a sua libertação da prisão hoje (sim, 3 anos depois, em meio à crise institucional).

O estopim das manifestações foi a recusa de Yanukovich em assinar um acordo de aproximação do país com a UE, em novembro de 2013. O problema é que a reação de Yanukovich às manifestações foi a pior possível: reprimiu os protestos e conseguiu incentivos de R$ 36 bilhões do governo Putin. Isso inflamou os nacionalistas do país. E deu protagonismo aos setores mais extremistas, com ligações com a extrema direita.

Aliás, o conceito de esquerda e direita é muito OBTUSO na Ucrânia, que passou mais de 70 anos sob uma ditadura de esquerda. Em um cenário de opressão histórica, de luta por afirmação nacional e de crise econômica quase permanente, o nacionalismo ucraniano adquiriu caráter fortemente anti-comunista.

E, sim, existem muitos neonazistas entre os nacionalistas ucranianos, por uma razão histórica bizarra: nostalgia da luta nazista contra a União Soviética, na 2ª Guerra Mundial. Historicamente, foi a última vez em que a Ucrânia não esteve sob poder soviético por algum período, antes da independência.

É uma espécie de Síndrome de Estocolmo política: os nazistas e comunistas eram genocidas iguais. Mas para os nacionalistas de extrema direita ucranianos, QUALQUER COISA parece ser melhor que a Rússia.

Para piorar, Yanukovich promulgou em janeiro uma lei “anti-terrorismo” pra reprimir manifestações nos moldes da que está tramitando em nosso Congresso. Daí a situação degringolou de vez. Os protestos se tornaram mais violentos, a repressão policial também, e a coisa chegou no estado atual, beirando uma guerra civil. A revogação da lei, duas semanas depois, não teve nenhum efeito prático sobre as manifestações.

O presidente Yanukovich perdeu legitimidade dentro do país e também no exterior. A reivindicação geral é a da renúncia imediata de Yanukovich e de todo o seu gabinete. A sensação na Ucrânia é a de que não existe mais negociação política possível com Yanukovich. Qualquer coisa só pode ser feita sem ele.

Yanukovich, por sua vez, se recusa a deixar o poder. Ao mesmo tempo em que chama os líderes opositores para negociar, reprime os protestos violentamente e coloca o exército em prontidão. Líderes da oposição, como Arseniv Yatsenyuk, Oleh Tyahnibok e o ex-campeão de boxe Vitaly Klitschko, perdem credibilidade entre os jovens do país ao sentar na mesa de negociação com o presidente Yanukovich, que não é mais considerado um governante legítimo pela população.

Com isso, surgem lideranças mais extremistas protagonizando os protestos na rua, como o  partido ultranacionalista Svoboda (de Oleh Tyahnibok) . Além dessas lideranças, há uma massa imensa de jovens ucranianos apartidários e desiludidos com a política protestando em diversos lugares.

O foco dos protestos está em Kiev, mas também há manifestações permanentes em cidades como Lviv e Odessa, além de outras menores. Alguns prédios públicos, como delegacias de polícia, seguem ocupados por manifestantes em diversas cidades no oeste do país.

Consequências e Implicações

Ninguém sabe qual é o futuro das manifestações e nem no que vai dar. Mas qualquer cenário tende a ser catastrófico se não tiver a devida atenção da comunidade internacional.

60% do gás que a Rússia transporta para a Europa passa pela Ucrânia, incluindo as rotas para Frankfurt e Milão. Além disso, a Ucrânia conta com a maior produção agrícola da Europa em ítens essenciais, como trigo e milho.

Uma guerra civil generalizada, que parece ser a pior possibilidade no momento, colocaria em risco a produção agrícola do país e, em uma situação mais extrema, até mesmo os gasodutos que passam pelo país.

A Rússia tem muito interesse na situação ucraniana. O acordo de Putin com Yanukovich, no final do ano passado, mostra isso. Mas, no momento, parece impensável da parte da Rússia uma invasão territorial como a que ocorreu na Geórgia, em agosto de 2008, para apoiar o movimento de independência da Ossétia do Sul e da Abkházia. Um movimento desses amaeaçaria o próprio governo de Putin, que perderia legitimidade junto à comunidade internacional com a invasão de um país independente.

Com o banho de sangue dessa semana, a situação é imprevisível. Os confrontos seguem ocorrendo em Kiev, apesar da assinatura de um acordo de paz nessa tarde entre Yanukovich e a oposição. Talvez seja tarde demais para conter a fúria dos opositores radicais do regime, que querem, no limite, extirpar toda a influência russa existente na Ucrânia, da mesma forma com que czares russos e líderes soviéticos como Stálin tentaram fazer com os próprios ucranianos até meados do século XX.

ATUALIZAÇÃO – no sábado, 22 de fevereiro, ocorreram algumas coisas importantes:

– Victor Yanukovich deixou Kiev, e o Parlamento ucraniano votou por sua deposição, por 328 votos a zero. Os parlamentares do partido de Yanukovich se retiraram antes da votação (o Parlamento ucraniano tem um total de 450 deputados). Eleições gerais foram marcadas para 25 de maio. O oposicionista Vitali Klitschko e o líder do Svoboda Oleh Tyahnibok já se lançaram candidatos.

– Yanukovich não reconheceu sua deposição, continua se considerando presidente do país e acusa o Parlamento de promover um golpe de Estado. Não se sabe o seu paradeiro atual,  massuspeita-se que ele esteja em Kharkhiv, no leste do país, com sua guarda pessoal. Ele tentou subornar guardas da fronteira do controle aéreo de Donetsk para sair do país, sem sucesso.

– A líder da oposição e ex-primeira ministra Yulia Tymoshenko foi libertada da prisão, e fez um discurso emocionado na Praça da Independência. Ela admitiu que também pode se candidatar à presidência da Ucrânia nas eleições de maio.

– Cresceram os protestos pró-Rússia na Criméia, especialmente em Sevastopol. Grupos da região, que é predominantemente russa e não apoiou os protestos, sugerem secessão caso a deposição de Yanukovich seja realmente confirmada.

Outros Textos Interessantes sobre o tema:

“What’s Happening in Kiev Right Now is the Vladimir Putin’s Worst Nightmare”, no The New Republic

“Ucrânia Cruzou Linha Sem Volta”, de Fiodor Lukianov, na Gazeta Russa

“Qual é o futuro da Ucrânia?”, do José Antônio Lima, na Carta Capital

“Análise: por que a crise na Ucrânia é importante?”, da BBC Brasil

“Facism, Russia and Ukraine”, do New York Review of Books

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8 comentários sobre “Algumas Considerações Sobre a Crise na Ucrânia

  1. Os nacionalistas ucranianos não ficaram assistindo a invasão nazista. Apoiaram-na e participaram de massacres de judeus, pois o antissemitismo é ima de suas marcas históricas. Não adianta escander coisas na Internet, chimangada!

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