O Aspecto Mental da Bolha Imobiliária

O tema “Bolha Imobiliária” nunca esteve tão em voga. Enquanto analistas ligados ao setor, como Ricardo Amorim¹, defendem que não existem indícios de uma bolha imobiliária no país, outras análises dão conta de que a bolha imobiliária não apenas existe, mas também já estourou.

Em meio a todo esse cenário, uma série de análises já foram realizadas sobre o tema. A maioria delas dando conta de aspectos econômicos do fenômeno e algumas poucas dando conta dos aspectos sociais. E pouquíssimas dando conta do aspecto mental de uma bolha imobiliária (ou de qualquer bolha de crédito).

Uma bolha especulativa, sob o ponto de vista mental (sob o ponto de vista econômico existem outras definições), é basicamente uma distorção de expectativas e de senso de realidade, provocada por uma quebra temporária na lógica das relações econômicas, com a atribuição de valores em determinados produtos que vão muito além do que seria o “valor agregado” daquele produto. E essas bolhas especulativas são especialmente graves no setor imobiliário, por dois motivos específicos além dos tradicionais motivos econômicos já explanados:

1) Casas são ativos de alto valor relativo. Ninguém compra uma casa, em um cenário normal, como se estivesse comprando pão no mercado. Comprar uma casa implica, normalmente, em uma dívida que consome anos de salário. E é por isso que a grande maioria dos compradores de imóveis os financiam.

2) Casas são “imóveis”, no sentido de que elas não podem se mover (a não ser que você more em um trailer). É uma constatação óbvia, mas que traz implicações. Ao comprar uma casa, você não compra apenas a alvenaria: você se apropria do terreno onde a casa foi feita, do relacionamento com os vizinhos, dos serviços, facilidades e dificuldades de acesso proporcionados pelo espaço ao redor e das obrigações condominiais (IPTU, taxa de condomínio no caso de apartamentos, contas de água, luz, gás, telefone). E também se apropria da “identidade” do imóvel. Em nossa sociedade, a localização, a condição e os equipamentos do imóvel em que a pessoa mora acabam dizendo muito sobre a condição social do indivíduo.

Dito isto, é bom tentar compreender a mente do morador da cidade, suas intenções, aspirações e relações sociais. Georg Simmel, há 110 anos, falou sobre os fundamentos psicológicos do comportamento individual na cidade. E se manteve atual:

O fundamento psicológico sobre o qual se eleva o tipo das individualidades da cidade grande é a intensificação da vida nervosa, que resulta da mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores. O homem é um ser que faz distinções, isto é, sua consciência é estimulada mediante a distinção da impressão atual frente a que lhe precede. As impressões persistentes, a insignificância de suas diferenças, a regularidade habitual de seu transcurso e de suas oposições exigem por assim dizer menos consciência do que a rápida  concentração de imagens em mudança, o intervalo ríspido no interior daquilo que se compreende com um olhar, o caráter inesperado das impressões que se impõem. Na medida em que a cidade grande cria precisamente estas condições psicológicas — a cada saída à rua, com a velocidade e as variedades da vida econômica, profissional e social —, ela propicia, já nos fundamentos sensíveis da vida anímica, no quantum da consciência que ela nos exige em virtude de nossa organização enquanto seres que operam distinções, uma oposição profunda com relação à cidade pequena e à vida no campo, com ritmo mais lento e mais habitual, que corre mais uniformemente de sua imagem sensível-espiritual de vida. (SIMMEL, G., 1903, pp. 577-578)

O que o texto de Simmel diz é que as cidades nos tornam mais individualistas, criando em nós uma carapuça mental que impede nosso contato colaborativo com as outras pessoas de forma sistemática. Isso é uma defesa contra um tecido social que, em tese, é mais poderoso que os impulsos individuais das pessoas. E, quanto maiores as cidades, maior o tamanho desse tecido social. Por isso, para o autor, as áreas rurais ainda conservam um modelo mais simples de vida, sem tanta importância para a afirmação individual.

Também é bom salientar que Simmel escreveu esse texto em 1903, e o mundo sofreu mudanças fundamentais desde então, especialmente após o advento e a popularização das tecnologias de comunicação em escala global, como a telefonia, o  rádio, a TV e a Internet. A distinção entre individualidade urbana e rural já não é a mesma, porque os mesmos meios de comunicação são acessíveis a quase todos, seja na metrópole ou nas áreas mais afastadas. Ainda existe uma diferença de intensidade de impulsos proporcionada pelas experiências da vida urbana, mas parte desses impulsos é reprodutível no cenário atual, em que o acesso à informação parece cada vez mais globalizado.

Os Imóveis e a Afirmação da Identidade

Uma Bolha Imobiliária, mentalmente falando, é fruto de uma visão distorcida das relações econômicas. Essa distorção das relações econômicas se relaciona enormemente com a experiência urbana individualista preconizada por Simmel. É decorrência dessa experiência individualista. Porque a subversão das regras econômicas se origina justamente no desejo de obter uma maior vantagem individual numa negociação, demandando menor esforço para a obtenção de um maior lucro.

Nesse sentido, uma das características fundamentais da geração atual é a necessidade de “segurança econômica”. A segurança econômica é a garantia de que tem subsídios para continuar exercendo suas trocas econômicas e para obter um pacote mínimo de recursos para viver (alimentação, vestuário e outros itens de consumo).

A posse de um imóvel é um elemento decisivo de segurança econômica, porque em momentos de crise, historicamente os pensamentos mais comuns são:

“Se eu perder tudo, ainda terei minha casa para morar, pelo menos”
“Se a gente ficar sem dinheiro, ainda pode vender a casa e comprar uma pior”
“Tudo pode desmoronar na economia, mas as casas sempre terão o seu valor”

Nesse ambiente urbano em que as individualidades precisam ser reafirmadas frente a um tecido social fortalecido e difuso, a posse de um imóvel representa, antes de qualquer outra coisa, o afastamento de qualquer risco de indigência. O maior medo oculto da grande maioria das pessoas nas cidades é o da indigência. E isso não vem de hoje: até a década de 70, as tinham mais medo de ir para o “pinel”, os manicômios em que as pessoas eram tratadas como indigentes, do que para as prisões, onde você apanhava e corria riscos, mas pelo menos era catalogado e tinha um número que te identificava.

Esse medo da indigência sempre alimentou o “sonho da casa própria” no Brasil. Por conta desse receio e pela necessidade de segurança econômica, o brasileiro de classe média sempre fez todo o esforço possível para comprar a sua casa, em um cenário histórico em que as linhas de crédito eram escassas.

A Bolha Imobiliária e a percepção das pessoas

Com a expansão das linhas de crédito, o fortalecimento das construtoras a partir de aberturas de mercado bem sucedidas na Bovespa e a expansão da classe média, o cenário era perfeito para a formação de uma bolha imobiliária. Essa bolha efetivamente se formou e está em vias de estourar, se já não estourou. Mas qual é o efeito do estouro dessa bolha na mente das pessoas?

Quando falamos de “segurança econômica”, não podemos subestimar o efeito dominó desse conceito. Se as pessoas na cidade se sentem seguras, economicamente falando, elas ficam mais propensas consumir e a realizar empreendimentos. O imóvel é o principal elemento de segurança econômica para a maioria das pessoas da classe média, porque é o ítem de maior valor individual que uma pessoa de classe média, em um país como o Brasil, pode ter.

Por tudo isso, o que acontece quando uma bolha imobiliária estoura é catastrófico. Porque, devido ao ajuste dos valores para patamares aceitáveis e à falta de liquidez (os preços emperram a compra e a venda de imóveis), o imóvel deixa de ser visto como ítem de “segurança econômica”. E sem os imóveis como item de segurança econômica, as pessoas ficam muito menos propensas a consumirem e a empreenderem.

Mais do que isso: sem a “segurança econômica” do imóvel, as pessoas tem a sua individualidade comprometida. Porque o risco da indigência volta, o risco de não ter uma casa pra morar, de se tornar um “cidadão de segunda classe”, de empobrecer. O empobrecimento coletivo é um dos fenômenos que destroem mais rapidamente a coesão social.

Caso clássico é a da Ucrânia na década de 90, que viu seu PIB encolher, em 2000, a 41% do PIB do ano de 1991, quando o país conquistou sua independência. As consequências? Emigração expressiva de ucranianos para a Europa Ocidental, aumento da violência urbana e o recrudescimento de rivalidades políticas que causaram da Revolução Laranja, em 2004, aos protestos atuais no país.

Sem a posse de um imóvel, a capacidade de quitá-lo ou a liquidez para vendê-lo, o cidadão de classe média perde seu maior mecanismo de segurança econômica. Sem segurança econômica, ele passa a ter uma percepção muito negativa sobre o cenário econômico do país, e retroalimenta o cenário recessivo já criado pelo próprio estouro da bolha.

Há um outro aspecto da vida mental que é mensurável em uma bolha: o da reação às más notícias. O Modelo de Kübler-Ross, criado na psicologia para verificar os padrões psicológicos de pacientes terminais ou de pessoas em situações extremas, é dividido em cinco fases: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação.

Modelo de Kübler-Ross em gráfico

Modelo de Kübler-Ross em gráfico

No caso de uma bolha imobiliária, esse processo se aplica justamente à perda de segurança econômica:

– No começo a pessoa nega o risco de perder essa segurança;
– Logo depois, se apercebe que a perda é inevitável e sente raiva;
– Depois, barganha para tentar de alguma forma evitar a perda. Tenta dar algum “jeitinho” para que a perda não aconteça. Faz concessões.
– Depois, percebendo a inevitabilidade da perda, entra em depressão. Perde-se na frustração de sua individualidade, no medo da indigência, na sensação de derrota.
– E, finalmente, aceita a situação, se reveste de resiliência e começa a remar de novo para reconquistar, de alguma forma, a segurança econômica perdida.

Conclusão

Todo o processo mental de adaptação a um novo paradigma de segurança econômica varia de pessoa pra pessoa. No entanto, uma coisa é certa: no final dele, o sentimento individualista estará amortecido. A noção de afirmação individual como elemento de proteção à natureza aglutinadora do tecido social, enunciada por Simmel, ficará profundamente abalada, porque a perda de segurança econômica em uma bolha imobiliária frustra uma das formas mais poderosas de afirmação individual em uma sociedade: o poder econômico.

Sem segurança econômica, as pessoas tornam-se mais dependentes das outras. E isso pode ser bom ou ruim. Essa perda coletiva de segurança econômica que uma bolha imobiliária traz pode trazer solidariedade, mas também pode trazer violência. Tudo depende, basicamente, de como as pessoas vão lidar com todo esse processo negativo, se elas vão direcionar sua raiva positivamente, se elas vão tentar dar “jeitinhos” para se safar da situação, e se elas vão conseguir sair fase de depressão sem cometer suicídio ou algo do tipo.

Outros textos sobre o assunto “Bolha Imobiliária”:

A Bolha Imobiliária
A Bolha Imobiliária – Parte II
Explosões Estelares e Bolhas Especulativas
O Que Ocorre Quando uma Bolha Imobiliária Desinfla

Notas:

1. Ricardo Amorim não é insuspeito. Além de colunista, é consultor da fundos de investimento imobiliários, como a Cyrela Invest

Referências:

SIMMEL, G., “Die Großstädte und das Geistesleben”. In: SIMMEL, Georg. Gesamtausgabe. Frankfurt: M. Suhrkamp. 1995. vol. 7. pp. 116-131. Tradução de Leopoldo Waizbort.

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4 comentários sobre “O Aspecto Mental da Bolha Imobiliária

  1. Tudo o que espero é que, tento estourado ou esteja por estourar, não sobre para mim. Óbvio, meu apartamento, felizmente, já está quitado (ou melhor, ele e o consórcio que me permitiu comprá-lo já estão quitados), o que deve suavizar bastante o impacto para mim, especialmente se considerarmos que não planejo sair dele nos próximos anos — if ever. Mas conheço muita gente que está no cenário que você descreveu naquele texto sobre o que acontece quando a bolha desinfla.

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  2. Mas num cenário como o nosso, o que os bons especialistas recomendariam? Estou pensando seriamente em comprar um apartamento e tenho lido muito sobre a bolha imobiliária.

    Ajuda a gente aí! 🙂

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    • A maioria dos especialistas está recomendando esperar. Mesmo que pareça desperdício pagar mais um ou dois anos de aluguel, os preços de imóveis estão em um patamar insustentável e a torneira do crédito está fechando. Então é melhor esperar que em algum momento a falta de liquidez vai forçar as pessoas a baixarem o preço dos imóveis.

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      • Entendi. Então, eu não sei quanto isso ainda vai durar. Queria comprar algo até o final do ano que vem, mas por enquanto vou guardando uns trocados pra ter pelo menos uma boa quantia pra dar de entrada lá na frente. Não sou adepto dessa coisa de ficar 25 anos pagando prestação de casa.
        Mas valeu pelas dicas e pelos textos. Pra mim foram bem válidos.

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