Existem algumas coisas que são bem óbvias. No entanto, quase sempre precisamos repetir obviedades para que elas não sejam esquecidas nesse momento da humanidade em que as informações se encavalam e a opinião pública tende a ser modificada muito rapidamente, catalisada por todo o conteúdo compartilhado nas redes sociais.
No contexto de uma nova ocupação da reitoria da USP, causada, entre outros motivos, pela demanda dos alunos pela paridade nas eleições para reitor economista Marcos Fernandes G. da Silva escreveu um texto cretino na Folha de São Paulo. Ele começa dizendo que a universidade não deve ser democrática por ser uma instituição baseada na “meritocracia” e termina dizendo que as Universidades Públicas não deveriam mais ser gratuitas, afinal elas são um enclave elitista financiado pelo patrimônio público.
A primeira pergunta que deve ser feita é a seguinte: as eleições para reitor em Universidades Públicas devem ser paritárias? Para responder isso, é necessário relembrar que a eleição na USP é indireta – e esse é o grande motivo pelo qual os alunos mantém a reitoria da USP ocupada. Nesse ano, representantes de diversos órgãos votarão e definirão os três nomes apresentados ao governador, para que esse escolha pessoalmente um deles.
Este é outro motivo de confusão. Sempre existiu uma tradição informal do governador do Estado respeitar a escolha das universidades e sancionar o nome do candidato mais votado. No entanto, a escolha de João Grandino Rodas para presidir a USP pelo governador José Serra, em 2009, quebrou essa tradição e provocou protestos da comunidade universitária. Protestos perfeitamente justificáveis, tendo em vista o autoritarismo e as diversas denúncias envolvendo o reitor em seus quatro anos de mandato.
O ideal, para uma universidade como a USP, seria um modelo democrático não-paritário de eleição. Não há nenhum problema em toda a comunidade universitária se envolver em uma eleição de reitor. É necessário que todos exponham suas opiniões, e não apenas as representações, muitas vezes mais ligadas a grupos políticos do que aos que participam da vida cotidiana da USP. No entanto, essa eleição não pode ser completamente paritária, por um motivo simples: enquanto o aluno está vinculado à universidade por um período limitado de tempo, até a formação, professores e funcionários, na condição de contratados da universidade, estão vinculados à mesma por um período indeterminado. Eles terão suas vidas profissionais muito mais afetadas por uma escola de reitor do que os alunos, e é justo que eles tenham maior participação nisso. E a partir desse pressuposto iniciar uma discussão séria sobre a atual generalização dos grupos “professores” e “funcionários” em grupos únicos, sendo que, dentro da própria universidade, esses grupos são extremamente heterogêneos.
Voltando a argumentação do texto publicado na Folha, é realmente lamentável perceber a insistência de alguns teóricos nesse endeusamento da meritocracia como mola propulsora da ciência e da pesquisa nas instituições de ensino. Esse discurso remonta a uma discussão antiga, que contrapõe duas facetas da pesquisa científica: a primeira delas percebe a ciência como instrumento de progresso da humanidade e tem bases históricas entre os séculos XVI e XVIII, enquanto a segunda percebe a ciência e a tecnologia como instrumentos de vantagem competitiva em um mercado capitalista e teve origens no final do século XIX.
É utópico achar que os dois tipos de abordagem científica são excludentes entre si. Na verdade, eles são complementares e foram a base de todo o progresso científico e de todas as tecnologias desenvolvidas no século XX. Por isso mesmo é um erro crasso tentar impor uma abordagem exclusivamente meritocrática, baseada nas diretrizes do mercado, para a educação superior, para a formação de pesquisadores e para a pesquisa científica.
Infelizmente, não é só uma corrente dentro da academia que pensa assim: o próprio governo federal pensa dessa maneira. Prova disso é a exclusão de 20 cursos de humanas do programa Ciência Sem Fronteiras, em que alunos de universidades públicas podem fazer intercâmbios em outros países durante suas graduações. Também depõem nessa direção a própria declaração de Dilma Rousseff, parafraseando o Ministro Aloízio Mercadante, de que “advogado é custo e engenheiro é produtividade”, que gerou até nota contestatória da OAB. (em que pese o Brasil ter o maior número de bacharéis em Direito do mundo, mas essa é outra discussão)
Uma prova dos efeitos negativos dessa política educacional baseada na meritocracia, por incrível que pareça, é o ocorrido na Coréia do Sul. Sim, a Coréia do Sul, que é tida por muitos pesquisadores liberais como um exemplo de “Revolução na Educação”, juntamente com a Irlanda e a Espanha (que pararam de ser citadas como cases no setor após a crise de 2008). No entanto, um grande exemplo é sempre ignorado: o da Finlândia, que fez sua “revolução na Educação” sob outras premissas, incentivando a curiosidade, a pesquisa científica e preceitos como a liberdade e o senso crítico. O resultado? A Finlândia produz, na média, os melhores cientistas do mundo. E a Coréia do Sul, com seu foco em tecnologia, produz ótimos matemáticos. A grande curiosidade é que, como é possível ver no ranking abaixo, o investimento global em ciência faz com que até os matemáticos finlandeses acabem sendo melhores do que os coreanos (mais informações sobre a diferença entre os dois sistemas aqui)

Ranking global de educação (Fonte: http://drclarkjensen.com/)
No entanto, a pior parte do texto publicado na Folha foi o final, com a defesa tácita da cobrança de mensalidades em universidades públicas, sob o argumento de que “A USP é um patrimônio paulista, financiada regressivamente, com recursos arrecadados dos cidadãos de São Paulo.” Ou seja, o autor parte do pressuposto de que o sistema das universidades públicas é elitista (o que é uma meia verdade) para defender o fim do modelo de universidade pública gratuita, o que só aumentaria o elitismo, por barrar todo e qualquer meio para que cidadãos de baixa renda frequentassem a universidade.
Em resumo, durante todo o texto há uma defesa clara da transcrição do modelo de ensino norte-americano no Brasil, ignorando, por exemplo, a política de bolsas de estudo amplamente praticada no país, indo da pesquisa científica à pratica desportiva, bem como a cultura de filantropia existente entre os americanos há quase cem anos, que engatinha no Brasil.
Na prática, só há uma forma da Universidade Pública ser menos elitista: com o fortalecimento da educação básica. Mas isso não deve acontecer tão cedo. Os mandatários de entidades privadas de ensino, que tratam o ensino público como concorrente, ditam as cartas inclusive na definição das políticas educacionais. Uma prova é o fato de que a maior parte dos membros do Conselho Estadual de Educação de São Paulo é vinculado a entidades de ensino privadas.
No Brasil, as entidades de ensino privadas funcionam sob duas lógicas: no ensino básico, são superiores ao ensino público, mas ainda assim medíocres, em sua maioria. No ensino superior, em que a entrada nas universidades públicas é limitada pelo vestibular, são péssimas, verdadeiras fábricas de diplomas. O resultado disso? A geração de “formados para o mercado” nas universidades particulares conta com diplomas, mas dá péssimos resultados.
Além disso, nosso setor privado é um dos que menos investe em pesquisa científica. As universidades privadas no Brasil produzem pouquíssima ciência, e o Brasil é um dos únicos cinco países do G-20 em que o setor público investe mais em pesquisa científica do que o setor privado (os outros são Argentina, Indonésia, Rússia e Índia)
E é justamente esse o sentido da Universidade Pública gratuita. Além de ser um instrumento de mobilidade social, proporcionando formação para ricos, sim, mas também formação para pessoas de baixa renda, a Universidade Pública (e especialmente a USP, a maior delas em escala nacional) tem como função promover a pesquisa científica com autonomia, naquele sentido original do século XVI em que o sentido maior da ciência, em qualquer área de atuação, é o de obter uma compreensão melhor do mundo, visando o progresso da humanidade. E isso deveria ser algo óbvio, como dito no início do texto.
Esse argumento de que não deve ser paritário porque os professores são muito mais afetados profissionalmente é bem (MUITO) fraco. Seguindo a mesma premissa só votariam para presidente os funcionários públicos, que ” na condição de contratados da universidade, estão vinculados à mesma por um período indeterminado. Eles terão suas vidas profissionais muito mais afetadas…”
Só o fato de o número de professores ser extremamente menor que o de alunos, a paridade delegada de votos nas classes professores/funcionários e alunos já é bem ponderante em relação ao peso relativo de cada voto do professor/funcionário, muito maior que o do aluno.
Acontece, que já não basta o peso relativo deles serem muito maior, a classe (a exemplo da minha universidade – UTFPR) também tem peso maior. Resultado: candidato a reitor ganhou com proposta de redução da carga horária, e nada se discutiu de plano de ensino, qualidade das aulas, de professores, estrutura física, etc… O foco principal da universidade está desvirtuado, não é a qualidade do ensino, mas sim a “qualidade” da administração.
Eles não estão escolhendo o melhor reitor, estão escolhendo o melhor chefe. E o melhor chefe é aquele que mais dá benefícios a seus funcionários, Não ao “cliente”, que no caso são os alunos (e quem paga a conta de todos eles, afinal a faculdade pública é financiada por todos.)
Estudo numa universidade federal onde todos as ambientes administrativos e o auditório (quase nunca usado) têm ar-condicionado, as salas de aula não. O conforto é dado a quem está, trabalhando, mas não a quem está estudando (que são passageiros e não tem tanto tempo canalizar a raiva em deposição do reitor, ou simplesmente poder de voto para escolha).
As universidade brasileiras não se preocupam com o aprendizado e conforto do aluno. Conforto e qualidade do ambiente de ensino, sim, fazem parte do aprendizado.
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Eu entendo que não dá pra forçar a barra pra nenhuma das duas direções. Não dá pra falar que a universidade, como instituição, tem que ter chefias nomeadas por terceiros, como a vertente liberal quer forçar, mas também não dá pra falar que professores, funcionários e alunos são grupos de atores políticos definidos e que contam com exatamente com o mesmo peso na Universidade. Pra falar a verdade, eu acho que determinar qualquer peso, seja de 1/3 pra cada ou de 60/20/20, por exemplo, é extremamente arbitrário. Mas esse seria um assunto menor se as reitorias de universidades no Brasil não aproveitassem a autonomia universitária (que é necessária) para centralizar as decisões.
Infelizmente, existem casos como o que você citou, mas isso é muito mais decorrência do excesso de poder das reitorias do que propriamente da questão da paridade. Pra mim, essa questão segmenta muito as universidades e e faz com que ela negligencie outras coisas extremamente importantes, como o acesso dos alunos às pesquisas já na graduação, por exemplo. O próprio modelo de contratação de professores deveria ser revisto. Um exemplo: qual é o sentido do contrato de dedicação exclusiva para professores? Em alguns casos eles fazem sentido, mas em boa parte deles são um passo para a estagnação profissional do professor, principalmente em um mundo em que o intercâmbio com outras setores da academia no dia a dia faz uma enorme diferença, em razão do desenvolvimento das comunicações.
Enfim, são muitas questões envolvidas e, depois de tudo isso, nem sei mais se a questão da paridade é uma das mais importantes entre elas. Talvez ela pudesse ser testada em algumas oportunidades. O que me causa algum temor é que isso torne a relação entre professores e alunos pouco amistosa em alguns casos, com os funcionários pendendo para “quem der mais”.
Como já percebemos, a discussão é enorme (e agradeço o comentário)
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Só entrei no mérito da paridade porque é a única que, por ser simples e ter sentido na pele, sinto confortável para discutir. Ao me ver funcionário (administrativo), nem deveria votar; escolher chefe já é sacanagem. Quem deveria votar, ao me ver (sempre é bom lembrar) seria apenas gente em relação a comunidade educacional, como professores, pesquisadores, alunos e talvez um grupo de egressos. Num sistema que equilibra os educadores e educados, a comunidade interna e a externa, para tentar evitar, ou pelo menos mitigar, as influências casuais.
Quanto ao sistema educacional, fujo da discussão, é tão complexa quanto reforma tributária e política. Todo mundo sabe que o modelo atual é falho, mas cada um tem uma proposta diferente e cada um enxerga pontos catastróficos na proposta alheia.
Sei que se não discutir, também nada vai mudar. Eu, formando de engenharia numa federal, acho o modelo que estudei uma merda. Experimentei o modelo americano (de metodologia no ensino superior, não estou falando do modelo econômico do ensino superior deles que também é uma merda) e achei muito mais razoável. Mas toda vez que faço uma crítica ao nosso modelo de ensino na minha universidade, ouço “mas isso na cultura deles funciona, na nossa não funcionaria”. É frustrante como as pessoas são derrotistas com esse tipo de argumento inerciante.
E realmente considero que a paridade não é o cerne da questão, mas sempre que evitamos pequenas mudanças porque não são tão “mudantes” em relação a grandes mudanças, que simplesmente não há consenso, trocamos a evolução lenta pela a promessa de uma evolução rápida, mas para o futuro de um consenso que nunca chega. Vide todas as reformas que todo mundo sabe que precisamos no Brasil e não são realizadas.
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Bom, sobre se as universidades públicas deveriam ser pagas ou não. A minha resposta seria: depende.
Uma das grandes distorções do modelo educacional brasileiro é que ele é sim, em boa parte, elitista. Em grande parte (para não dizer a maioria), os alunos que tem acesso as melhores universidades públicas do país são aqueles que vêem das escolas particulares. Ou seja, eles já são de famílias que puderam financiar o estudo médio. Até aqui, escrevi obviedades, eu sei. Mas o fato é que, eu acho que, dependendo da renda familiar, eu seria a favor da cobrança de uma taxa. Não seria uma taxa absurda, bem inferior a que as universidades particulares.
Eu seria a favor de uma universidade pública 100% gratuita para aqueles alunos que são de famílias mais humildes, abaixo de um certo limite a ser imposto. Sei lá, 3 ou 4 salários mínimos, apenas chutando. Esses sim, oriundos de famílias com menor renda ou aquele aluno, aluna que acaba de perder o chefe de família, por exemplo, deveriam ser isentos de mensalidade.
O Brasil já investe mais do que a maioria dos países da OECD em educação. O problema é como esses investimentos estão sendo feitos.
Só duas pequenas notas em relação ao seu texto. Construtivas, espero…
1. Coréia do Sul: não entendi o seu argumento contra o sistema de meritocracia deles. Difícil comparar o Brasil com eles, por eles serem um país bem mais homogêneo que o nosso. Se tiver paciência, poderia explicar melhor? Sigo achando a Coréia do Sul um exemplo de sucesso: país que era atrasado até os anos 60 mas que alcançou níveis extraordinários de desenvolvimento através da educação e consequentemente da progressiva modernização de sua economia. Nesse segundo quesito, seria um ótimo exemplo para o Brasil.
2. “nosso setor privado é um dos que menos investe em pesquisa científica”. Fato. Aliás, os outros exemplos (Indonésia, Argentina, Rússia e Índia) não acho grandes exemplos. Tanto que, exceção feita a Índia, todos esses são sobretudo países produtores de matéria prima e não exportadores de tecnologia. Pois é, até na China, o setor privado investe mais. Por quê não parcerias entre os setores público e privado?
Saudaçôes do Dick Vigarista.
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Bem…meu e-mail é (retirado)….não precisa falar que meu texto é cretino…basta debater…na boa
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De antemão já peço desculpas pela parte jocosa do comentário, o “cretino”, mas posso discutir sobre o tema por e-mail sim, será um prazer.
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