A abordagem escalar para o desenvolvimento de discussões

Um dos melhores efeitos da democratização da informação é o aumento exponencial no número de discussões entre diferentes pontos de vista. E isso é bom, apesar da exposição recorrente a opiniões que variam do polêmico ao inaceitável, como muitas das postadas em redes sociais ou comentários de notícias.

Qual é o objetivo das discussões? É a aprendizado mútuo, com a inserção de novas informações e pontos de vista a um cenário prévio. Discussões são boas pois enriquecem conceitos e consolidam ou derrubam conclusões prévias. Em todas as áreas do conhecimento, a grande maioria dos avanços e insights é motivada por discussões prévias. Discussões servem como a busca de uma solução ótima para questões abordadas com diferentes pontos de vista e ocorrem desde tempos remotos. As discussões em Atenas, na Grécia antiga, são exemplo. Um exemplo é o ideário do cientista Christopher A. Fuchs, do Instituo Perimeter, em Ontário, Canadá, em defender que “a ciência é essencialmente uma atividade pública e que insights profundos são obtidos apenas por meio de acirrada disputa intelectual”

Mas boa parte das pessoas não sabem como lidar com as discussões, e elas frequentemente terminam em impasses. Eis alguns motivos pelos quais boa parte das discussões não atingem todo o seu potencial e não chegam a lugar algum:

Introdução: evolução das discussões em uma sociedade individualista

É notório que, desde o século XVIII, a sociedade, em escala global, tem passado por mudanças como nunca antes na História. Revolução Industrial, Revolução Francesa, Imperialismo, Independências em massa nas Américas, Ásia e África, duas guerras Mundiais, desenvolvimento tecnológico sem precedentes.

Por outro lado, nossa sociedade está cada vez mais dependente do consumo e baseada nele. O consumo é um instrumento que promove a satisfação individual, limitada no tempo. E o aumento da ênfase de nossa sociedade no consumo acaba promovendo o aumento do individualismo, porque o consumo tem um caráter quase invariável de promoção da satisfação individual. Mesmo em situações de “satisfação coletiva”, como em um show ou em um jogo de futebol, por exemplo, o que ocorre é a potencialização indefinida da satisfação individual pela replicação.

Essa potencialização do individualismo, provocada pela ascensão do consumo, dentre outros fatores, acabou provocando uma mudança no comportamento das pessoas. A visão de mundo delas é condicionada de acordo com o índice de satisfação das mesmas em relação ao consumo em uma sociedade marcada pela competição. E isso potencializa um dos grandes males que já existiu: a necessidade de afirmação individual.

A necessidade de afirmação produz coisas tão diversas quanto a depressão e a arrogância. É óbvio que tudo isso (necessidade de afirmação, depressão, soberba) sempre existiu, porque sociedades existem há milênios, assim como a morte, a fome, as pestes, os momentos de tristeza, as desigualdades sociais, a violência e tudo o que ajuda a tornar o mundo menos humano. O que ocorre é que tudo isso foi catalisado em um contexto em que a necessidade de auto-afirmação das pessoas atinge níveis extraordinários.

Com toda essa necessidade represada de auto-afirmação, qual é o reflexo disso nas discussões? É simples: boa parte das discussões perdeu aquele sentido original de aprendizado, de acúmulo de conhecimento coletivo em busca de uma solução comum. “Vencer” a discussão, no sentido de impor seu argumento em detrimento do argumento alheio, tornou-se mais relevante para uma parte considerável das pessoas do que ouvir o argumento alheio, refletir sobre ele e formular uma réplica embasada, à altura. Boa parte das discussões consiste mais em desmerecer os argumentos alheios do que em rebatê-los com argumentos melhores. Exatamente como diz essa tira sensacional do Willtirando:

Resumo da vida, em uma tira

Nesse contexto, existem diversos fatores que atrapalham o andamento de discussões, mas convém abordar três deles:

1) Tomada de críticas argumentativas como ofensas pessoais – e ofensas pessoas propriamente ditas

Nesse mundo repleto de pessoas tentando se auto-afirmar em uma sociedade competitiva, é frequente a tomada de contestações argumentativas como críticas pessoais. E isso, via de regra, esvazia o conteúdo conceitual da discussão. O problema de tomar a crítica argumentativa em tom pessoal é que isso, via de regra, faz com que a pessoa que se considera ofendida – e não criticada – responda com uma ofensa pessoal, desvirtuando a discussão.

No entanto, existem os casos em que as ofensas pessoas tomam de fato o lugar das críticas argumentativas. Exemplos clássicos disso são alguns processos eleitorais, em que candidatos em situação desfavorável nas pesquisas tentam criar factóides questionando aspectos morais e pessoais da vida dos candidatos mais bem colocados – geralmente sem sucesso.

2) Criação de falácias para tentar submeter o outro lado da discussão

Uma discussão consiste, via de regra, no lançamento de uma alegação e no lançamento posterior de argumentos que confirmem ou refutem essa alegação.

Uma falácia, por sua vez, pode ser definida como um “argumento inválido ou falho na capacidade de provar eficazmente o que alega”. E todos os tipos de falácia estão descritas de forma extremamente didática nesse texto sensacional do Júnior Bonfá.

Resumidamente: utilizar falácias é jogar sujo. É priorizar a “vitória na discussão” ao invés do aprendizado na discussão. E o efeito é igualmente o da deturpação do objeto da discussão, tendo em vista que ele passa a ser calçado sobre argumentos falsos.

3) Tratar discussões como dicotomias

Isso é uma falácia específica do texto do Junior Bonfá (a falsa dicotomia), mas, no contexto atual de evolução histórica das discussões, merece ser tratada à parte. E isso porque a abordagem dicotômica das discussões limita substancialmente a capacidade das mesmas.

O que é uma dicotomia? É uma divisão exata em duas partes opostas entre si e que não se misturam. Em uma discussão, é uma relação de oposição lógica entre as duas partes baseada no pressuposto “Se eu estou certo, LOGO, você está errado. Se eu estou errado, LOGO, você está certo”. Não há meio termo em relação a isso.

Nossa sociedade foi construída sobre dicotomias, é verdade: Deus x Diabo, Capitalismo x Comunismo, Futebol-arte x futebol de resultados, e mais um monte de outras dicotomias que poderiam ser citadas aqui. Mais do que isso: a maioria das competições esportivas tem um caráter de dicotomia, quando opõe dois times ou jogadores para definir um único vencedor entre eles.

O problema da discussão dicotômica é que a argumentação conceitual é empobrecida até o limite binário, tornando-se infrutífera. E uma discussão infrutífera não traz aprendizado algum.

Solução: a abordagem escalar para o desenvolvimento de discussões

Imagine que uma discussão não tem caráter pessoal, não deve ser recheada de falácias e não é uma dicotomia.

Agora, imagine que não existem lados certos ou errados em uma discussão que opõe dois lados distintos. Imagine que eles nem mesmo são completamente opostos. Imagine que existe uma variável em qualquer discussão chamada “nível de plausibilidade do argumento” e que ela não é definitiva, mas medida em uma escala de zero a dez, como a feita no desenho abaixo de forma tosca no Paint:

Escala

Agora, imagine que o “nível de plausibilidade do argumento” faz com que seu argumento na discussão possa ser colocado em qualquer lugar nessa escala, de zero a dez. E que o argumento de seu “adversário” na discussão também seja colocado nessa escala. Lembre-se sempre: em uma discussão, argumentos não são necessariamente opostos entre si.

Como definir o “nível de plausibilidade do argumento”? Não há uma fórmula específica e eu nem teria a presunção de tentar fazer uma, mas imagino que seja algo como perguntar ao lado oposto da discussão “em uma escala de zero a dez, o quanto esse argumento pareceu plausível para você?”

Nesse sentido, como definir se uma discussão valeu a pena? Somando-se as duas percepções de “plausibilidade do argumento” do lado oposto da discussão:

De 0 a 4: a discussão está sendo prejudicial às duas partes.

De 5 a 9: a discussão está sendo prejudicial a pelo menos uma das partes.

10: a discussão está sendo prejudicial para uma das partes e benéfica para a outra. Ou não está tendo efeito.

De 11 a 15: a discussão está sendo benéfica a pelo menos uma das partes

De 16 a 20: a discussão está sendo benéfica às duas partes.

Mas o que fazer se a discussão não está sendo benéfica? Revise o argumento. Ou tente compreender o argumento alheio. Parar e pensar é a melhor forma de se inserir em discussões de qualidade. Por isso o nível das discussões na Internet parecia ser bem melhor quando as pessoas não tinham acesso à rede 24 horas por dia e tinham a “hora” específica em que liam e-mails, refletiam sobre o conteúdo deles e formulavam respostas à altura.

Conclusão

O grande problema dessa abordagem é que ela exige uma dose razoável de humildade para quem está discutindo. E é difícil encontrar gente capaz de ser humilde e revisar os seus pontos de vista em um mundo em que tanta gente utiliza discussões para auto-afirmação, principalmente nas redes sociais.

As redes sociais ainda contam com um agravante para a manutenção do bom nível das discussões: o “anonimato” da rede, aliado à impossibilidade de agressões físicas, ampliaram o limite para as ofensas e favoreceram a eclosão de posições extremistas e fechadas à argumentação. O caráter de boa parte das discussões na Internet é panfletário, e não argumentativo.

A lição que fica é a de que as discussões SEMPRE devem ter como objetivo principal o aprendizado, e não a “vitória”. Elas nunca devem ser utilizadas como forma de auto-afirmação ou de subjugar alguém. Foi com essa ótica do aprendizado que as ciências e a filosofia evoluíram durante séculos. Foi com uma quantidade imensa de discussões, entre diversas gerações de pensadores.

Todos eles, invariavelmente, dispostos a ouvir as argumentações do outro lado. Pois, para participar de qualquer discussão, temos que ter a humildade de perceber que sempre seremos menores do que o conhecimento que ajudamos a produzir.

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4 comentários sobre “A abordagem escalar para o desenvolvimento de discussões

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