Recentemente, temos tido inúmeros exemplos de como a sociedade está se tornando fundamentalista e deixando de lado toda e qualquer racionalidade.
Afinal, o que é fundamentalismo? Vamos à definição do dicionário, pai dos burros como eu:
1. RELIGIÃO manutenção e defesa dos princípios religiosos tradicionais e ortodoxos, como a infalibilidade dos textos sagrados, e sua aceitação como verdades fundamentais imprescindíveis para a formação da consciência
2. atitude mental caracterizada pela defesa intransigente de princípios de carácter conservador; integrismo
fundamentalismo In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013. [Consult. 2013-03-07].
Disponível na URL: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/fundamentalismo
Dito isso, vamos discutir os assuntos do momento:
1) Morte de Hugo Chávez
Na terça-feira, dia 05 de março, exatamente 60 anos após a morte de Joséf Stálin, morreu Hugo Chávez, que comandava a Venezuela desde 1999. Hugo Chávez sempre foi uma figura controversa, dessas raras que tornam a indiferença algo impossível.
Sua política antiamericanista e seus quatorze anos no poder, ratificados por cinco eleições (incluindo a do final do ano passado, em que Chávez não assumiu oficialmente o cargo por conta de sua doença), fizeram com que ele colecionasse muitos amigos e inimigos.
Os amigos usam como argumentos dados sobre a diminuição da miséria na Venezuela e suas posições contundentes contra o imperialismo americano na América Latina. Os inimigos chamam ele de ditador, baseados nas premissas de que “nenhum presidente democrático ficaria no poder desde 1999” e no fato de que Chávez realmente tentou dar um golpe de Estado em 1992.
Uma coisa é fato: por mais que tenha colada em si a pecha de “ditador” por alguns grupos de oposição, Chávez conseguiu dar uma “aparência de legalidade” convincente aos seus mandatos. Tanto que Jimmy Carter classificou o processo eleitoral venezuelano como “o melhor do mundo” em 2011 e todas as decisões tomadas nos vários plebiscitos ocorridos na Venezuela durante os anos do chavismo foram respeitadas. Inclusive a do plebiscito de 2007, em que a oposição impediu a reforma na Constituição venezuelana que daria mais poderes ao Executivo do país, representado na figura do próprio Chávez.
Por outro lado, a oposição do país tentou um malfadado golpe de estado em 2002, no qual Chávez foi de fato deposto por dois dias, até retornar ao poder com intenso apoio popular. Esse golpe deu espaço para Chávez radicalizar as ações da “Revolução Bolivariana”, perseguindo todos os que apoiaram a sua deposição.
Chávez é uma figura histórica riquíssima, e o Bob Fernandes explicou, em dois textos (aqui e aqui) a amplitude das reações à morte dele. No entanto, a maioria das reações passou longe da ponderação. A morte catalisou tanto a idolatria quanto o ódio por Chávez, e foram exatamente essas manifestações apaixonadas e fundamentalistas que deram o tom nos últimos dias.
2) Marco Feliciano na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara
Para quem ainda não conhece, o Pastor Marco Feliciano é um daqueles caras que refletem bem o estereótipo negativo que os não-evangélicos fazem dos evangélicos: já demonstrou racismo e homofobia, afirmando que “os africanos são alvo de uma maldição feita por Noé a Canaã pelo que provavelmente é o 1º ato de homossexualismo da história”. E insiste no tema, falando que há uma maldição sobre Canaã.
Já que Marco Feliciano disse que é um “fato teológico” e só entende o que está na Bíblia, vamos usar a Bíblia pra acabar com o argumento dele. Em Gênesis 9, Noé bebeu demais e ficou nu em sua tenda. Seu filho Cam entrou na tenda, viu Noé sem roupas e saiu rindo e contando pros seus dois irmãos, que ficaram envergonhados e foram cobrir Noé, que, estressado com toda aquela história, resolveu amaldiçoar Cam dizendo que o filho dele, Canaã, serviria a Sem e Jafé.
Como vocês perceberam, nenhuma referência à cor da pele ou ao local para onde Canaã migrou. Para terem ideia do absurdo da situação, Marco Feliciano se apropriou de uma teoria inventada pela Ku Klux Klan, no século XIX, para justificar o preconceito racial aos negros do sul dos Estados Unidos.
Para confirmar que essa teoria do Marco Feliciano não tem pé nem cabeça, o próprio livro de Gênesis diz que Canaã, filho de Cam, gerou vários povos: jebuseus, amorreus, girgaseus, heveus, arqueus, sineus, arvadeus, zemareus e hamateus. E que eles povoaram lugares tão diversos como Cartago (na Tunísia), o Egito, a Fenícia (atual Líbano), a Síria, a Babilônia (Estado que se espalhou por Iraque, Jordânia, Síria e parte da Turquia), o Cáucaso (atual Azerbaijão, Armênia, Geórgia e partes de Rússia, Turquia e Irã) e, para alguns historiadores, até a China. Ou seja, é mesmo racismo puro e simples.
O problema nem é apenas o racismo, a conhecida posição contra os gays, similar a de outros ícones do preconceito como Silas Malafaia (que inclusive o parabenizou pela indicação) ou o fato dele pedir a senha do cartão de um fiel para eventuais ofertas. É a intransigência. O deputado-pastor Marco Feliciano, bem como muitos de seus fiéis, não admitem ser contrariados, julgam-se enviados de Deus e crêem que toda oposição a eles é “armadilha do maligno” ou coisa do tipo.
Esse tipo de postura faz com que toda crítica seja encarada como “perseguição religiosa“. Pior do que isso, acaba com toda e qualquer possibilidade de debate. A autorreferência de Marco Feliciano (e de outros líderes evangélicos na Câmara) como “enviado de Deus” faz com que eles se tornem completamente fechados para mudanças. É o tipo de arrogância bem comum em algumas igrejas neopentecostais, inclusive.
É por isso que, no formato e com a ideologia atual, a bancada evangélica deve ser combatida com todas as forças por qualquer cristão. E, além disso, todo cristão deve ter consciência de que a mistura de política e religião só traz prejuízos ao cristianismo.
3) Vandalismo de torcidas organizadas

Kevin Espada, 14 anos, morto por um sinalizador atirado pela torcida do Corinthians em Oruro (fonte: http://andrebarcinski.blogfolha.uol.com.br/ – 07/03/2013)
Em 20 de fevereiro, o garoto Kevin Espada foi morto em Oruro, dentro do estádio, por um sinalizador atirado pela torcida Gaviões da Fiel durante a partida entre San Jose e Corinthians pela Copa Libertadores da América. A Conmebol puniu o Corinthians, fazendo com que o jogo contra o Millonarios, da Colômbia, fosse realizado com portões fechados, mas quatro torcedores, que se consideravam antes de tudo “consumidores do espetáculo”, conseguiram liminares e assistiram ao jogo dentro do estádio, em uma cena lamentável, sob todos os aspectos. Tudo em meio a uma novela que ainda conta com doze membros da Gaviões da Fiel presos na Colômbia e uma confissão muito suspeita de um garoto de 17 anos de idade, membro da torcida organizada.
Hoje foi a vez da Mancha Verde agir de maneira tão patética quanto a Gaviões da Fiel, agredindo os jogadores do Palmeiras em Buenos Aires. E não é uma “atitude isolada de duas torcidas”: vemos inúmeros exemplos de torcidas organizadas de times de futebol que agem da mesma maneira. Pra falar a verdade, vemos essa agressividade inclusive em outros esportes.
Há uma espécie de competição informal e estúpida entre torcedores para saber “quem é mais torcedor”. Para isso vale agredir os adversários, “cobrar” os jogadores quando a fase é ruim, fazer todo tipo de barbaridade. É um estilo de vida baseado em leis próprias, à margem da sociedade, que invalida todo o discurso de alguns torcedores organizados que de fato tentam agir pacificamente enquanto apoiam seus times. O fato é que as torcidas organizadas tornaram-se redutos para alguns elementos extravasarem seus instintos mais agressivos, enquanto os elementos pacíficos que ainda sobraram ficam de mãos atadas. A atitude extrema sempre prevalece.
Então quer dizer que estamos mais fundamentalistas?
Sim, estamos. Se tomarmos novamente as duas definições do início do texto, a religiosa e a laica, temos que:
1) O que ocorre no cristianismo e em outras religiões hoje em dia convém ser chamado de “fundamentalismo distorcido”. Ou seja: ao mesmo tempo em que se usam literalmente alguns princípios bíblicos, da Torá, do Livro do Mórmon ou do Alcorão, quando se é conveniente, se distorcem as informações desses livros para justificar preconceitos ou vantagens indevidas. Foi o que o deputado-pastor Marco Feliciano fez quando acusou africanos de “terem uma maldição sobre si”.
Infelizmente a atitude de Marco Feliciano é comum. A eleição dele para a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara prova isso. Atitudes extremas são cada vez mais comuns e aceitáveis, e isso tem muito a ver com o momento atual de nossa sociedade, em que a informação é democratizada e chega a todos sem filtro.
2) A definição “laica”, que fala de “integrismo” e defesa de ideias de caráter conservador, é necessária um pequeno aprofundamento. Conservadorismo implica necessariamente em “manutenção do status quo”. O fundamentalismo, no sentido da defesa íntegra de ideias, significa a admissão da defesa apaixonada de ideias. Como ocorria com as ideias de Hugo Chávez, defendidas pela via política, e como ocorre com as ideias das torcidas organizadas, defendidas por atos de violência.
Mais uma vez, isso parte do pressuposto básico de que a informação, disseminada, chega sem filtro às pessoas. E isso torna as atitudes extremas comuns e aceitáveis para muitas pessoas. O que vemos, na sociedade laica, é apenas o espalhamento desse tipo de atitude extrema como um elemento ideológico, mas também como uma forma de chamar a atenção atraindo audiência.
E agora?
Com a informação chegando “sem filtro” às pessoas, o destaque não é mais pela relevância, e sim pela audiência. E as opiniões polêmicas ou extremas geralmente geram mais audiência, seja para a concordância ou para a crítica. Isso explica a consolidação do fundamentalismo como um estilo de vida, para cada vez mais pessoas e grupos sociais.
O fundamentalismo não está apenas na emissão de opiniões extremas. Ele transcende isso e passa a influenciar quase tudo, principalmente na Internet. Desde as notícias feitas com manchetes polêmicas para “caçarem cliques” até as pessoas que se expõem demais na Internet, com aquela postura babaca “eu tenho opiniões fortes e falo mesmo”, que geralmente é usada mais como salvo conduto para a manifestação de preconceitos.
Os defensores e detratores de Hugo Chávez são apenas uma faceta disso, assim como os torcedores organizados. O fato deles estarem aparecendo mais (e assumindo posições importantes na sociedade, como no caso do deputado-pastor Marco Feliciano) só nos mostra que a ponderação ainda é o melhor caminho para combatermos essa tendência fundamentalista que tem crescido nos últimos anos, especialmente nas redes sociais. Porque é certo que um preconceito não se combate com outro preconceito, mas com o pensamento aberto e com atitudes propositivas, que mostrem para as pessoas que é melhor ser legal com os outros do que ser fundamentalista.
E, com isso, chegamos à definição final: o fundamentalismo nada mais é do que uma manifestação exacerbada e doente do individualismo. Só toma posturas fundamentalistas quem está disposto a ir até as últimas instâncias em nome de seus interesses individuais. E a verdade é que a sociedade só está ficando mais fundamentalista porque está ficando mais individualista também. E a melhor forma de combater o fundamentalismo, seja na religião, no esporte ou na política, é combatendo o individualismo exacerbado em todos os ambientes em que vivemos.
mto bom!!!!
CurtirCurtir
Reblogged this on Brunopavan's Blog.
CurtirCurtir
Pingback: Marco Feliciano e os Direitos Humanos | Aleatório, Eventual & Livre