Todos os anos ocorre, na zona norte de São Paulo, a Marcha para Jesus. Não cabe aqui questionar o mérito do evento, o que ele representa ou coisa do tipo.
A reflexão aqui é de outra natureza. Diz respeito à quantidade de pessoas que frequentaram o evento. Na última edição, em julho de 2012, os organizadores (a Igreja Renascer em Cristo) se apressaram em dizer que mais de 5 milhões de pessoas foram na Marcha para Jesus. Logo a Folha de São Paulo desmentiu a informação, dizendo que 335 mil pessoas passaram pelo evento durante o dia.
Mas, antes que algum desavisado me acuse ou acuse a Folha de perseguição ou coisa do tipo, devemos afirmar que esse número inchado não se restringe à Marcha para Jesus. Também realizada em julho, a Parada Gay, por exemplo, disse ter levado 4 milhões de pessoas à Avenida Paulista, mas levou apenas 270 mil, de acordo com o mesmo levantamento da Folha de São Paulo.
A história contemporânea da produção em sete frases
Existem vários motivos óbvios para um promotor de eventos, seja ele evangélico ou do movimento gay, inflar o tamanho do que ele faz. Isso tem a ver, essencialmente, com a dinâmica da sociedade atual. O capitalismo teve várias fases, e em cada uma delas precisou incorporar novos aspectos da sociedade à sua dinâmica para sobreviver.
No início do século XIX, a dinâmica do capitalismo era simples: você trabalhava praticamente o tempo todo para os outros (as aristocracias e a burguesia) consumirem o que você produzia enquanto trabalhador. Com isso, se justificavam as jornadas de trabalho extenuantes (até 18 horas por dia) e os salários miseráveis.
Com o tempo, a aristocracia e a burguesia passou a não ser uma base de consumo suficiente. E esse foi um dos motivos que motivaram o aumento dos salários e a diminuição da jornada de trabalho dos proletários. Obviamente, não foi só isso: as constantes e intensas revoltas dos trabalhadores ameaçavam constantemente a estrutura de produção criada pela Revolução Industrial.
Com isso, os trabalhadores foram se inserindo progressivamente na parcela da população que consumia o que era produzido nas indústrias. Esse movimento se consolidou com a 2ª Revolução Industrial e a disseminação do fordismo/taylorismo pelo mundo. Era uma época em que as pessoas dividiam o tempo de seu cotidiano em dois: o do trabalho, em que você se esforçava para fazer um serviço bastante especializado, em geral, e o da vida, em que você consumia, gastando o dinheiro que ganhou trabalhando. Pra muita gente as coisas funcionam assim até hoje.
Mas daí o fordismo entrou em crise e uma nova época de transformações começou. Em toda transformação o capitalismo se expande mais. E, nessa nova fase, a concorrência deixou de ser apenas entre empresas. A concorrência capitalista passou a se dar entre governos, com a mundialização da economia, e entre locais, com o avanço das redes de comunicação global.
Nesse contexto, as pessoas passaram a se identificar de forma mais intensa com base naquilo que elas consumiam. A identificação também passou a ser com o local em que essas consumiam. Isso fez com que os itens de consumo tivessem valor agregado não apenas pelo trabalho gasto na produção, mas também pelo local em que é vendido. Um produto comprado por um valor X em um comércio popular provavelmente custará 2 ou 3X em um shopping center, com ar condicionado e lojas “de grife” com as quais as pessoas se identificam.
O momento atual é esse. Estamos imersos em uma sociedade informacional, em que o principal ativo da sociedade não é mais a produção material, mas a produção imaterial através do trabalho com a informação. O que move a economia atual é a informação, e isso favorece a criação de novas identidades não necessariamente inseridas no território. A identidade se constrói com a experiência, e a agregação de valor a um produto parte daí: de se proporcionar uma experiência única para a pessoa, que proporcione a “identificação pelo consumo” e a retroalimentação do sistema. Toda a sociedade passa a estar inserida dentro de uma mesma lógica inescapável.
E os espetáculos?
Guy Debord é um autor extraordinário, e o situacionismo abriu umas portas para a reflexão na década de 60. Para ele, a sociedade capitalista é feita para o espetáculo e suas constatações, feitas na década de 60, mostram-se incrivelmente atuais em alguns aspectos.
O problema de Debord é mais ou menos o mesmo problema de Marx, Weber ou Von Mises/Hayek: todos eles construíram diagnósticos fantásticos sobre a sociedade, mas nenhum deles conseguiu construir soluções definitivas. E não porque não tentaram: tentaram aplicar o modelo de Marx por um século todo, tentaram fazer o mesmo com Weber e até hoje tem gente que tenta aplicar o modelo neoliberal. Todos as soluções tem a mesma falha: elas subestimam a capacidade do ser humano de ser um calhorda e estragar tudo, e superestimam a capacidade do ser humano em ser legal com os outros.
Vamos ser bem sinceros aqui: o ser humano é naturalmente egoísta e o consumismo se adaptou tão bem à sociedade justamente porque alimenta esse egoísmo. Nosso colaborativismo social é fruto apenas de convenções sociais mínimas para que as pessoas possam viver em paz umas com as outras, dividindo territórios contíguos e espaços comuns. Por isso é cada vez mais comum as pessoas se identificarem pelo que consomem, e não pelas suas características de caráter.
E isso tem tudo a ver com os espetáculos citados no começo do texto. Quanto mais pessoas se identificam com uma marca, seja ela o movimento gay ou a Renascer em Cristo, maior é a possibilidade dessa marca apropriar recursos e agregar valor naquilo que faz. A concorrência hoje não ocorre apenas entre produtos: ocorre entre locais, eventos, pessoas, estilos de vida. É a inserção cultural do consumismo na sociedade.
Debord diz que essa espetacularização de todos os aspectos da sociedade seria o ponto culminante do capitalismo. Que, sem capacidade de expansão, o capitalismo não teria como sobreviver. Que as pessoas teriam que tentar se libertar dessa lógica da identidade pelo espetáculo. Mas a libertação em si só tem a mesma perspectiva individual do materialismo de Marx ou do novo liberalismo de Von Mises e Hayek.
O problema está em enxergar a sociedade, seja ela vista como espetáculo ou reprodução, como algo em que a solução é a libertação individual. E acenar com soluções ineficazes coletivas, como a ditadura do proletariado.
A verdade é que ninguém tem uma solução para esse dilema. O capitalismo está esgotado e precisa de alternativas, mas ninguém conseguiu construir nada viável, que dê conta das relações econômicas, políticas e sociais na sociedade e das relações do homem com a natureza.
Vivemos falando que precisamos ser mais legais, mas não conseguimos. O individualismo é cômodo e viciante. A satisfação individual efêmera nos fascina. E a nossa sociedade segue como aquele fumante que fuma dois maços de cigarro por dia, não tem prazer nenhum naquilo, sabe que o cigarro causa problemas sérios de saúde, mas não consegue parar de fumar, de tão habituado que está.
Muito bom, Leo. Continuo acompanhando. Abraços.
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