Em 11 de setembro de 1990, uma lei caiu como uma bomba na sociedade brasileira: era o Código de Defesa do Consumidor, que visava proteger o cidadão de eventuais abusos em relações comerciais, com garantias mínimas de que o consumidor não sofreria prejuízos de empresas mal intencionadas.
Desde então, o direito do consumidor passou a ser parte importante da vida do brasileiro. Políticos como Celso Russomanno fizeram suas carreiras com o marketing de “defensor dos direitos do consumidor”, e é inegável que nas últimas duas décadas os direitos do consumidor avançaram muito mais que os direitos sociais.
O avanço dos direitos do consumidor não é necessariamente ruim. É óbvio que as relações de consumo devem ser reguladas e o consumidor deve ter de fato os seus direitos respeitados, e isso é algo que, em alguns setores, não acontece nem até hoje. Exemplo notório é o das empresas de telefonia, que oferecem até hoje serviços caros e ruins, e as taxas abusivas cobradas por bancos e em financiamentos de casas e veículos, por exemplo.
A Cidadania
Algumas pessoas encaram o consumo como um substituto da cidadania. Estão erradas. Ouras encaram o consumo como parte da cidadania. E estão certas. Eu mesmo dei uma definição sobre o assunto em setembro do ano passado, que resume bem o tema:
Cidadania e consumo não são concorrentes entre si. Não deveriam ser, na verdade. São duas dimensões da relação social. Enquanto o cidadão se afirma na sociedade elegendo e fiscalizando seus governantes, lutando por seus direitos, por serviços públicos melhores e por uma sociedade mais justa, o consumidor luta pela justiça em uma relação específica: a de compra e venda.
Entretanto, o consumo é apenas uma dimensão da cidadania. É apenas uma parte do enorme escopo em que está envolvida a cidadania. Quando as pessoas se voltam contra direitos sociais pelo direito de consumir, há uma inversão de valores: o consumo passa a ser um valor mais relevante do que a cidadania. Essa inversão faz com que as relações sociais tornem-se insustentáveis, porque alimentam a sensação de desconfiança na relação entre empregador e empregado: enquanto o empregador tenta ganhar o máximo explorando o empregado, este tenta trabalhar produzindo o mínimo.
Priorizar o consumismo, em detrimento da cidadania, acaba sendo prejudicial para todo o país, no final das contas. Para o governo, que arrecada menos em impostos; para os empregadores, que sofrem com níveis ridículos de produtividade; e para os empregados, que ganham menos e sofrem assédio moral.
Paradoxalmente, a priorização do consumismo, que leva as pessoas a reclamarem das greves, acaba prejudicando, no médio e no longo prazo, as próprias relações de consumo. Por isso, lutar pela cidadania e defender os direitos sociais, como o direito de greve, é a única forma de promover uma relação minimamente sustentável entre empregadores, empregados e governo, rompendo o círculo vicioso da desconfiança e da opressão.
Até aí tudo parece harmônico e relativamente fácil de compreender. O problema de priorizar os direitos do consumidor é que, quando ele ofusca as demais dimensões da cidadania – que passam por direitos e deveres essenciais, pelo respeito à vida e pelas necessidades básicas das pessoas, para ficarmos numa definição simplista – acaba gerando uma sociedade de consumidores. Uma sociedade consumista. E isso é absurdamente prejudicial, em vários aspectos.
O Consumidor
Falar de Direitos do Consumidor é fácil. Existe uma extensa literatura a respeito, o Código de Defesa do Consumidor, órgãos governamentais e privados especializados na defesa do consumidor e um amplo espectro legal para que de fato os direitos do consumidor sejam respeitados.
Agora, quando falamos de “deveres do consumidor” você praticamente não encontra literatura. E isso ocorre por um motivo simples: o único direito do consumidor é o de pagar pelo que consome. É uma relação fácil demais, em que o consumidor passa a considerar que, munido do dinheiro, pode todas as coisas. E cada vez mais esquece que é um cidadão e que também tem deveres que sobrepõem as relações de compra e venda.
O problema é que, nos últimos vinte anos, cultivamos uma sistema educacional de baixíssima qualidade, especialmente em relação à formação do senso crítico nos alunos. E, junto com isso, cultivamos uma cultura de defesa ardorosa dos direitos do consumidor.
Como era de se esperar, foi montada uma bomba-relógio, que começa a estourar agora, com a emergência de uma geração mimada a ponto de achar que os seus “direitos de consumidor” estão acima de qualquer coisa, inclusive da vida e da morte das pessoas, como prova o recente caso dos torcedores do Corinthians que conseguiram liminares para assistir um jogo que deveria ser feito com portões fechados, porque um guri morreu na semana anterior. Mas esse não é o assunto do texto, e sobre o assunto eu recomendo o brilhante texto do Thiago Arantes.
O grande problema não é apenas as pessoas específicas acharem que o “direito ao consumo” está acima de qualquer coisa. Isso é normal, pessoas egoístas sempre existiram. O problema é esse tipo de pensamento encontrar eco na sociedade, ser reverberado, ser considerado normal. O egoísmo é prejudicial a todos, no final das contas.
Sociedades só existem porque, como Hobbes disse no Leviatã, o homem se privou de seu “estado de natureza” egoísta e fez concessões sociais para poder conviver com outras pessoas e aproveitar as inúmeras vantagens dessa convivência social. A ciência se desenvolveu nesses aglomerados sociais, em que as pessoas, de forma quase inconsciente, colaboram umas com as outras para que a vida de todas seja melhor. Se você rompe esse ciclo de colaboração, todos perderão no médio e no longo prazo, inclusive você.
O egoísmo humano, associado ao consumismo (o estilo de vida da nossa sociedade atual, baseado no consumo), está matando a sociedade em três vertentes: 1) está destruindo os recursos naturais em níveis inéditos, trazendo problemas sérios para a nossa e para as próximas gerações 2) está afrouxando as relações de coesão social, tornando as pessoas mais individualistas e auto-suficientes 3) está contestando toda a base de direitos que a nossa sociedade construiu durante séculos em nome de uma perspectiva baseada na satisfação e na segurança individual em torno de todo o resto.
Torcedores entrando com liminares são só um aspecto disso. Hoje em dia, até a militância política bem intencionada tende a ser individual, como ocorre, por exemplo, com Isadora Faber, que fez, de forma absolutamente individual, uma página no Facebook para denunciar os problemas nas escolas públicas. A descrição diz tudo:
Eu Isadora Faber que tenho 13 anos, estou fazendo essa página sozinha, para mostrar a verdade sobre as escolas públicas. Quero melhor não só pra mim, mas pra todos.
Ela faz questão de falar que está fazendo a página sozinha. A iniciativa é ótima, mas será que um monte de militâncias fragmentadas até o individual vão resolver o problema de nossa sociedade? Provavelmente não. Provavelmente só vai aumentar o abismo entre as pessoas e tornar a sociedade ainda mais autista, ainda mais centrada em seu próprio umbigo.
A Conclusão
Uma sociedade individualista, baseada em um estilo de vida consumista, gera dois tipo de pessoas: os arrogantes e os deprimidos.
Os arrogantes são os que vão atrás de seus direitos, consideram-se melhores que os outros, dizem que “estamos numa competição e eu tenho que vencer”. Não hesitam em passar por cima dos outros para conseguir seus objetivos. Exemplo típico de arrogância são os quatro “torcedores de liminar” que assistiram o jogo entre Corinthians e Millonarios na Libertadores mesmo com o estádio estando com portões fechados.
Os deprimidos, por sua vez, estão inseridos na mesma lógica, mas, como não conseguem seus objetivos e não conseguem se impor com a crueldade dos arrogantes (e se conseguissem não hesitariam, estejam certos disso), autocomiseram-se se em busca da atenção alheia. Se consideram os perdedores do consumismo, afogam-se em suas frustrações, querem sempre mais.
Arrogantes e deprimidos são duas faces da mesma moeda. Duas faces do individualista que baseaim a sua vida em algo tão vazio quanto o consumo. Tão vazios quanto os pedaços de papel que Douglas Adams disse, no Guia do Mochileiro das Galáxias, serem as causas dos humanos serem tão infelizes.
Os direitos do consumidor não podem estar além dos direitos do cidadão. E isso porque as relações financeiras não podem estar além das relações humanas. O que você consome não pode determinar as pessoas que você vai amar, seus amigos sinceros ou sua atitude perante o mundo. Como disse Douglas Adams, duas frases depois de dizer que o problema do mundo eram os pedaços de papel:
“Um homem foi pregado num pedaço de madeira por ter dito que seria ótimo se as pessoas fossem legais umas com as outras pra variar”
Independente de sua crença (ou não crença), uma coisa é verdade. A única forma de mudarmos essa realidade, em que o cidadão é consumidor e só pensa em si mesmo, é sendo, a partir de hoje, “legais uns com os outros pra variar”. Quem sabe assim, daqui vinte anos, não façamos uma geração em que as pessoas de fato se respeitam, se gostam, tem atitudes legais com as outras e não ficam tentando colocar o direito individual acima de todas as outras coisas.
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