Ao contrário do que o título do texto pode sugerir, não sou um pacheco, apesar de já ter contado a história dele. E nem vou eximir a CBF de culpa pelo pífio desempenho da seleção brasileira nos últimos anos. Na verdade, a decadência do futebol brasileiro remonta à década de 90, quando formamos nossa última geração vitoriosa e quando foi promulgada a Lei Pelé.
A Lei Pelé, entre outras coisas, extinguiu o “passe” do jogador de futebol, que era um vínculo permanente do mesmo com o clube. Não sou à favor do passe, pois o mesmo, em certa medida, escravizava o jogador. O problema da Lei Pelé é, resumidamente, que não foi criada nenhuma contrapartida compensatória aos clubes pela extinção do passe. E isso gerou, juntamente com a mercantilização dos times e campeonatos de futebol, incentivada inclusive pela mídia, que gasta menos e tem mais retorno cobrindo apenas seis ou sete clubes ao invés de setenta, a decadência quase irreversível dos clubes ditos pequenos.
O que isso tem a ver com a decadência da seleção brasileira? Bem, os clubes pequenos eram os grandes celeiros de jogadores. Do time que estava na Copa de 2002, por exemplo: Edmílson foi revelado pelo XV de Jaú; Roque Júnior, pelo São José; Roberto Carlos, pelo União São João; Ricardinho, pelo Paraná; Gilberto Silva, pelo América Mineiro; Rivaldo, pelo Santa Cruz e pelo Mogi Mirim; Juninho Paulista, pelo Ituano. Poderíamos citar inclusive outros exemplos, mas o fato é um só: os clubes pequenos eram verdadeiros abastecedores do mercado interno de futebol.
Só que passou a não compensar mais para esses clubes revelar jogadores, sabendo que os mesmos poderiam ser “roubados” por um clube maior a qualquer momento. Isso porque uma característica essencial da mercantilização do futebol brasileiro foi o aumento do abismo financeiro entre times pequenos e grandes, que culminou no terrível acordo individual entre os clubes e a Rede Globo para a transmissão do Campeonato Brasileiro até 2015. Com isso, os clubes pequenos perderam em duas frentes: não podiam mais ganhar da mesma forma com seus craques, roubados por empresários interessados em repassá-los aos clubes grandes brasileiros ou ao exterior; e nas competições, não podendo mais competir contra os clubes maiores com a mesma intensidade e não atraindo mais a torcida, que em geral torcia para dois clubes (um pequeno, da cidade, e um “grande”). E, por razões óbvias, acabou ficando apenas com o clube de maior projeção. Com isso, a revelação de jogadores fica comprometida, e o país vive de meia dúzia de craques fabricados, empresariados por gente do ramo desde os doze ou treze anos de idade. Craques feitos desde o berço para fazer dinheiro.
Tudo isso teve sim culpa das administrações ridículas da CBF e das federações estaduais, que ajudaram a tornar os campeonatos estaduais modorrentos e desinteressantes no formato atual, repletos de “clubes-empresa” interessados apenas em negociar atletas após três meses de campeonato. Que elitizaram o futebol brasileiro, dando espaço para apenas uma dúzia de clubes sonhar com alguma coisa. Que estão envolvidos em casos absurdos de corrupção, envolvendo inclusive a sede brasileira na Copa do Mundo.
Mas não é esse o assunto. E não é por isso que o Brasil está em 18º no Ranking da FIFA. O Brasil está em 18º no Ranking da FIFA de janeiro exclusivamente porque o Ranking da FIFA é injusto com países que sediam eventos de grande porte.
O que países que sediam eventos de grande porte tem de desvantagem em relação aos demais? Simples: eles não participam das eliminatórias, por estarem automaticamente qualificados para os torneios que sediam. E a FIFA superestima, em seu ranking, o peso das eliminatórias. Vamos analisar exemplos dos últimos dez anos:
Portugal – sede da Eurocopa de 2004
Portugal estava em 7º lugar no Ranking de seleções da FIFA após a participação inexpressiva na Copa de 2002, quando foi eliminado ainda na primeira fase. Em junho de 2004, mês em que sediou a Eurocopa, havia caído vertiginosamente, para 22º lugar. Com o vice-campeonato, subiu 11 posições em um mês e ficou em 11º lugar no ranking de julho de 2004:
Alemanha – sede da Copa de 2006
Em junho de 2004, a Alemanha estava em oitavo no ranking. Após a eliminação precoce na Eurocopa (incluindo um empate com a Letônia), a seleção caiu para 12º lugar e chegou a ocupar a 22ª posição em março de 2006. Com o bom desempenho na Copa de 2006 (em que caiu nas semifinais para a Itália), voltou ao 9º lugar.
Áustria – sede da Eurocopa de 2008
A Áustria já não estava exatamente com uma seleção boa antes de sediar a Eurocopa de 2008. Tanto que ocupava a 60ª posição do Ranking da FIFA em julho de 2006. Com a ausência nas eliminatórias e uma Eurocopa pífia (um empate com a Polônia e duas derrotas, para Alemanha e Croácia), caiu para o 105º lugar em julho de 2008. Depois disso, nunca mais se recuperou completamente (está em 68º lugar no ranking de janeiro de 2013).
Suíça – sede da Eurocopa de 2008
A Suíça estava em 13º lugar no Ranking da FIFA em julho de 2006, após o feito incrível de sair de uma Copa do Mundo sem tomar gol. Com um desempenho ruim na Eurocopa de 2008 (ficou em último num grupo com Portugal, Turquia e Rep. Tcheca), caiu para a 45ª posição em julho de 2008.
África do Sul – sede da Copa de 2010
Os sul-africanos tem uma peculiaridade: apesar de sediar a Copa do Mundo, eles disputaram as eliminatórias da competição, tendo em vista que elas também valiam para a Copa Africana de Nações de 2010 (aquela do atentado dos separatistas de Cabinda contra a seleção de Togo). E fracassaram miseravelmente. Ocupavam a posição 67 do ranking em junho de 2008 e chegaram à 90ª posição em abril de 2010. Com o desempenho digno na Copa do Mundo (apesar da eliminação na 1ª fase), subiu para a 66ª posição no ranking de julho de 2010.
Polônia – sede da Eurocopa de 2012
A Polônia era a 56ª colocada no Ranking da FIFA em julho de 2010. Chegou a ocupar a 75ª posição em março de 2012. Com o desempenho digno na Eurocopa (apesar da eliminação na primeira fase), retomou a 54ª posição em julho de 2012.
Ucrânia – sede da Eurocopa de 2012
A Ucrânia era a 25ª colocada no Ranking da FIFA em julho de 2010. Chegou a cair para a 60ª posição em setembro de 2011. Com a eliminação na primeira fase do torneio, a subida foi modesta: em julho de 2010, os ucranianos ocupavam a 46ª colocação no ranking.
Brasil – sede da Copa do Mundo de 2014
O brasil era líder do ranking da FIFA até maio de 2010. Com a queda na Copa do Mundo, caiu para 3º. Em junho de 2012, antes das eliminatórias para a Copa começarem na Europa, ainda estava em 5º lugar. Em sete meses, caiu para 18º. E deve cair ainda mais até a Copa das Confederações, ao menos. resta saber se o desempenho na Copa do Mundo compensará essa queda.
Por que isso ocorre?
A explicação sobre as regras do ranking está no próprio site da FIFA:
A lógica por trás dos cálculos é simples: as seleções que se dão bem no futebol mundial ganham pontos que lhes permitem subir no ranking.
A pontuação total de uma seleção em um período de quatro anos é definida por meio da soma damédia de pontos ganhos em jogos disputados nos 12 últimos meses e da média de pontos ganhos em jogos que ocorreram há mais de 12 meses (a qual se deprecia anualmente).
Cálculo de pontos de uma partida
A pontuação que pode ser ganha em um jogo depende dos fatores a seguir:
• o resultado, desde que vitória ou empate (R);
• a importância do jogo (desde um amistoso até uma partida de Copa do Mundo da FIFA) (I);
• a força da seleção adversária com base na pontuação no ranking e na confederação continental à qual pertence? (S e C).
Estes fatores são conjugados na fórmula a seguir para a obtenção da pontuação total (P).
P = R x I x S x C
Os critérios a seguir são aplicados para o cálculo de pontos:
R: Pontos pelo resultado da partida
As seleções ganham três pontos por vitória, um por empate e nenhum por derrota. Em uma decisão por pênaltis, o vencedor leva dois pontos, e o perdedor, apenas um.
I: Importância da partida
Amistoso (e competições de pequeno porte): I = 1,0
Eliminatórias para Copa do Mundo da FIFA ou para o principal torneio de cada confederação: I = 2,5
Copa das Confederações da FIFA ou principal torneio de cada confederação: I = 3,0
Copa do Mundo da FIFA: I = 4,0
S: Força da seleção adversária
A força do adversário é definida por um número proporcionalmente inverso à sua posição no ranking, subtraindo-se de um total de 200 pontos o número correspondente à classificação. Ou seja, a seleção que ocupa a 14ª posição tem 186 pontos de força, a seleção que ocupa a 51ª posição tem 149 pontos de força, e assim por diante.
Como uma exceção à fórmula, a seleção líder do ranking sempre tem 200 pontos de força, e os países abaixo da posição 150 têm um valor mínimo de 50 pontos de força. A posição levada em conta é a publicada na edição mais recente do Ranking Mundial da FIFA/Coca-Cola.
C: Força da confederação continental
Para o cálculo referente a partidas entre seleções de diferentes confederações continentais, é usado o valor médio entre as confederações às quais pertencem as duas seleções. A força de uma confederação é calculada com base no número de vitórias das suas seleções nas três últimas edições da Copa do Mundo da FIFA. Os valores são os seguintes:
UEFA/CONMEBOL 1,00
CONCACAF 0,88
AFC/CAF 0,86
OFC 0,85
Vejam só: a grande desvantagem aí está na diferença de peso entre amistosos e eliminatórias. Enquanto a “importância” de um amistoso é “1”, a importância de um jogo das eliminatórias é “2,5”. Ou seja: ganhar de qualquer seleção mediana pelas eliminatórias vale mais do que ganhar da Espanha ou da Alemanha em um amistoso.
A ausência nas eliminatórias explica a queda nos rankings de todos os países-sede de Copas do Mundo ou Eurocopas nos últimos anos. Isso acaba sendo uma punição especialmente no caso europeu, em que os potes para sorteio dos grupos em eliminatórias de Eurocopa e Copa do Mundo são definidos de acordo com o Ranking da FIFA.
Com isso, a Polônia, por exemplo, acabou ficando atrás de equipes pouco expressivas na Europa, como Albânia, Geórgia e Lituânia, no sorteio para as Eliminatórias da Copa de 2014. Mas ainda assim caiu em um grupo equilibrado, contra Inglaterra, Montenegro, Ucrânia (outra seleção prejudicada), Moldávia e San Marino.
E o Brasil?
No caso da seleção brasileira, a interferência não é muito grande, além da óbvia questão da autoestima do país no futebol. Boa parte dos brasileiros considera alguns chavões, como o de que “somos o país do futebol”, como verdadeiros. E obviamente ser a 18ª força do mundo em um ranking de seleções não é o mundo dos sonhos para quem se considera o melhor país do mundo no futebol.
O problema, aqui, é um só: o fato do ranking da FIFA ser mal feito acaba ocultando, ao menos por algum período, a crise estrutural do futebol brasileiro, que se tornou carente na revelação de talentos diferenciados e perito na formação de jogadores medianos “para exportação”, por tudo o que foi falado no início do texto. A dúvida é uma só: para qual patamar o Brasil vai se reerguer depois de 2014? Com um cenário cada vez mais equilibrado na América do Sul, o Brasil será protagonista ou coadjuvante nas eliminatórias para a Copa de 2018? Existe um risco real do Brasil não conseguir se classificar para a Copa na Rússia?
Todas essas perguntas dependem não apenas do desempenho do Brasil na Copa de 2014, mas de nosso trabalho de base, que não está bom (como prova a eliminação precoce no sul-americano sub-20, a 1ª eliminação na fase inicial do torneio desde 1971), e da organização dos campeonatos de futebol no país, que tem se mostrado bastante negligente, especialmente com os clubes menores.
Em suma: o menor problema da seleção brasileira é a posição do país no ranking da FIFA. A questão é que a falta de credibilidade do ranking esconde que de fato ha uma crise no futebol brasileiro, sem nenhuma perspectiva de melhora imediata. E essa crise só será solucionada quando clubes, federações e imprensa começarem a colocar de fato o futebol brasileiro acima dos interesses pessoais e imediatos de grupos específicos. Como a Alemanha tem feito, com sucesso, desde 2006, quando sediou a Copa do Mundo tendo uma seleção sem muitas perspectivas, a exemplo da brasileira.
PS: em abril de 2012, montei um modelo de calendário para o futebol brasileiro, para que o maior número possível de times permanecesse em atividade o ano todo. o resultado foi esse: http://poucodeprosa.wordpress.com/2012/04/18/uma-formula-para-os-campeonatos-nacionais-no-brasil/
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