Valores morais e críticas pessoais: o caminho para perder uma eleição

Um dos principais parâmetros para verificarmos a maturidade de uma democracia é a permeabilidade das pessoas às mentiras e críticas infundadas. E, no Brasil, vemos que essa permeabilidade é cada vez menor nos processos eleitorais.

A constatação é simples: nas últimas eleições, quem evocou “valores morais” e promoveu críticas pessoas perdeu. E quem perdeu o controle com tais críticas também perdeu. É possível verificar tal fenômeno analisando duas eleições presidenciais (2002 e 2010) e duas eleições municipais (2008 e 2012).

Em 2002, Ciro Gomes cresceu em meados de agosto e assumiu a 2ª colocação nas eleições presidenciais. Sofreu ataques pessoais, encabeçados pelo então situacionista José Serra. Perdeu o controle algumas vezes, e também a confiança da população. Serra passou para o 2º turno, para enfrentar Lula.

Quando tentou usar a mesma estratégia contra Lula, Serra perdeu a eleição. Porque Lula não reagiu como Ciro Gomes. A célebre entrada de Regina Duarte dizendo que tinha “medo” do Lula foi um dos maiores fracassos eleitorais de sempre. Lula respondeu à altura (foi aí que nasceu o slogan “a esperança que vence o medo”) e ainda ficou nacionalmente conhecido, naquela campanha, com o apelido coloquial de “Lulinha paz e amor”, em contraposição à posição combativa das três eleições presidenciais anteriores.

Em 2008, Marta Suplicy tentava voltar à prefeitura, que havia sido deixada por José Serra nas mãos de Gilberto Kassab. Kassab, com a equipe de Serra e um relativo desconhecimento por parte da população, cresceu muito, apesar da má impressão sobre a administração (que fez ele começar a campanha com menos de 10% dos votos), e passou Marta ainda no 1º turno.

No primeiro programa eleitoral do 2º turno, Marta coloca a pá de cal em sua campanha, questionando “se Kassab tem família e com quem ele vive”. Era uma insinuação acerca da orientação sexual do prefeito paulistano, que pegou muito mal e praticamente decidiu as eleições paulistanas em favor de Kassab.

Em 2010, José Serra usou o moralismo novamente, introduzindo o tema do aborto na campanha contra Dilma Rousseff e fazendo diversas acusações pessoais contra a atual Presidenta. Foi o suficiente para conseguir forçar um 2º turno, mas não para ganhar a eleição.

Em 2012, dois fatos devem ser levados em consideração. O primeiro é o ataque conjunto de Serra e Haddad a Celso Russomanno, que liderava as pesquisas e, à exemplo de Ciro Gomes em 2002, perdeu o controle. E saiu do jogo, de maneira surpreendente, ainda no 1º turno.

O segundo é o ataque de José Serra à Fernando Haddad no 2º turno, evocando temas como  o Kit Anti-Homofobia do MEC (chamado jocosamente de “Kit Gay”), e associando-o aos escândalos petistas, como o mensalão, que está sendo julgado no STF. Com um agravante: quem perdeu o controle, por diversas vezes, foi o próprio Serra. Enquanto isso, Haddad segue tranquilo em sua campanha.

O resultado, que não deve mudar,é desastroso: 17 pontos de vantagem para Haddad nas últimas pesquisas eleitorais.

Reflexões

Nenhuma campanha fica isenta de criticar os demais candidatos. A política é feita de estratégias que dão certo e de estratégias que dão errado. Mas é possível chegar a algumas conclusões que mostram que, ao contrário do que se supõe, o eleitor não é tão alheio e manipulável assim:

1) Existem críticas que funcionam: o discurso crítico, para funcionar, deve estar alinhado à percepção da população. Serra perdeu em 2002 porque o sentimento de “medo da mudança” que ele inseriu no debate eleitoral não refletia a percepção da população. Kassab conseguiu inserir, em 2008, um sentimento de “as coisas estão andando” na população, que fez as pessoas desejarem a continuidade. Dilma fez o mesmo em 2010. E Haddad se aproveita, em 2012, do anseio paulistano por mudança.

Em todos esses casos, as críticas que funcionam estão associadas às administrações, e não às pessoas. Por mais que Kassab tenha criticado Marta em alguns momentos, na campanha de 2008, ficou nítido que sua campanha era “positiva”, no sentido de exaltar realizações e propor algumas metas. Em 2012, essa lógica se voltou contra Kassab, que não conseguiu cumprir as metas estipuladas e ainda ficou conhecido pela população como prefeito que “odeia pobres”. Haddad só teve o trabalho de expor seu plano de governo, propositivo, e associar a imagem de Serra à imagem de Gilberto Kassab.

2) “Valores” e “críticas pessoais” aumentam a rejeição: toda vez que um candidato insere “valores morais” e critica pessoalmente o outro candidato, em um 2º turno, não sai apenas derrotado. Sai como o mais rejeitado. Foi assim com Serra em 2002, 2010 e 2012 e com Marta em 2008.

Essa estratégia pode ser eficiente para conseguir, no 1º turno, o voto de alguns setores específicos da sociedade (como os religiosos, por exemplo), mas, no 2º turno, é algo repudiado pela maioria da população. O que mostra que, no final, o eleitor não é tão “manipulável” assim como alguns políticos e religiosos querem fazer crer.

A maioria dos eleitores considera, ainda que de forma inconsciente, que focar a campanha eleitoral em valores e críticas rasteiras é um desvio. Só atrapalha. E é uma ameaça às liberdades.

3) Propostas devem estar alinhadas à percepção das pessoas: eleitores também não toleram mentiras. Quando um candidato infla suas realizações cai no ridículo. Foi assim com Maluf, no final da década de 90, com seu tradicional “Maluf que fez”, e é assim com José Serra hoje. O cidadão não acredita em qualquer proposta demagógica. As palavras que o candidato fala devem ser o mínimo de coerência com suas atitudes passadas.

Por isso é melhor ser sincero e admitir eventuais falhas do que tentar mascarar a realidade com discursos repetitivos e dados que não tem a ver com o assunto. O eleitor percebe isso, por incrível que pareça. E quando a percepção das pessoas detecta incoerências, a palavra do candidato cai em descrédito.

4) As redes sociais mudaram o processo eleitoral: antigamente, era mais fácil fazer discursos incoerentes com a prática. A mídia referendava esses discursos e uma campanha estava feita. O fato é que hoje as redes sociais já cumprem um papel de cidadania muito importante: o da conferência do discurso com a prática do candidato.

Incoerências são rapidamente espalhadas pelas redes sociais. O papel formador de opinião é inegável. As redes sociais apontam tendências. Antes de ser rejeitado por 52% da população, Serra já era rejeitado dessa forma nas redes sociais. Porque elas perceberam a incoerência primeiro. E compartilharam essa percepção com a população.

Conclusão

Focar uma campanha em “valores morais” e críticas pessoais é um caminho quase certo para a derrota. Existem casos de candidatos que vencem eleições utilizando esses artifícios? Sim, existem. A eleição presidencial colombiana de 2010 foi um exemplo. O atual presidente, Juan Manuel Santos, venceu o candidato Antanas Mockus após desferir críticas pessoais virulentas contra o mesmo. No caso, o discurso de “medo da mudança”, similar ao discurso serrista de 2002, funcionou.

Mas o caso colombiano é só uma exceção que confirma e regra. Moralismo em eleição é visto como hipocrisia pela população. Críticas pessoais são vistas como desvio de foco. E, no final, a conclusão é a de que o eleitor é muito mais perspicaz do que se pensa. E não admite ser enganado. Por mais que não acredite na política.

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2 comentários sobre “Valores morais e críticas pessoais: o caminho para perder uma eleição

  1. Não sou de São Paulo, não moro aí, porém sempre visito a cidade com uma certa regularidade e posso falar o seguinte: me mudaria amanhã se a São Paulo de Serra fosse verdade. O programa eleitoral dele é qualquer coisa, será que ele pensa que as pessoas são idiotas?

    PSDB é um partido cansado (que ironia!) na minha opinião, domina o estado a 20 anos e qual a grande melhora se viu?

    Eles são muito ‘tímidos’ ou ruins de serviço mesmo…

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  2. Pingback: A abordagem escalar para o desenvolvimento de discussões | Aleatório, Eventual & Livre

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