O texto de hoje, mais do que uma reflexão, é uma proposta. O objetivo não é dar fórmulas prontas para qualquer coisa, porque elas não existem, mas levantar a discussão sobre o modelo de cidade necessário para todos nós.
A eleição municipal mexe com os ânimos das pessoas das pessoas de uma maneira diferente da que ocorre em eleições para outros cargos políticos. Enquanto as eleições para governador e presidente lidam com coisas supostamente distantes, a eleição para prefeito lida com as necessidades imediatas do cidadão. Problemas vistos no dia a dia, questões cotidianas, frutos diretos da percepção do morador sobre a cidade. Um prefeito é fiscalizado muito mais de perto do que um governador ou um deputado.
Além disso, há uma questão territorial-federativa aí. Enquanto o governador ou o presidente tem poder de decisão sobre áreas maiores e menor autonomia para decisões pontuais, o prefeito é o sujeito que cuida. Que busca parcerias do Estado e da União para fazer grandes obras e que cuida, como se fosse um jardim, de todo o território da cidade. A verdade é que o prefeito administra aspectos importantes da vida das pessoas que moram ou transitam pela cidade administrada e é diretamente responsável pelo bem-estar de todas essas pessoas.
Essa percepção é refletida nas campanhas eleitorais para prefeito. Todas elas querem convencer o eleitor de que são a melhor entre as opções possíveis. De que a política não é exatamente a coisa mais legal que existe, não há uma cidade “ideal”, e de que o cara que está ali tem um monte de defeitos e é financiado por gente muito suspeita, mas é “melhor que os adversários, porque fulano fez isso ou o partido de sicrano fez aquilo”.
A desilusão das pessoas com a política partidária no Brasil é evidente. E dá abertura para aventureiros sem planejamento tentarem a sorte. Esses políticos seguem sempre um mesmo script: criticam as administrações vigentes (muitas vezes com razão), não prometem nada e fazem um discurso que é baseado em duas coisas: “cuidar da cidade”, em contraposição ao prefeito atual, que “não cuida”, e se preocupar com os cidadãos, ou com o eleitor, ou com os consumidores. O nome fica a critério de cada um.
O fato é que as pessoas perderam a ilusão de que podem mudar de fato as cidades e a sociedade por meio da política. A política é coisa para “profissionais”, gente que, em geral, está atrelada a interesses de todo tipo. Prova disso é o fato de que os principais doadores de campanha na maioria das cidades são justamente os grupos mais interessados em interferir no planejamento urbano: as empreiteiras.
O fato é que o processo eleitoral está contaminado. Os candidatos que vencem são invariavelmente obrigados a se sujeitar a lobbies de grupos econômicos poderosos, especialmente nas grandes cidades. Essa perspectiva impede o cidadão de pensar no motivo mais óbvio pelo qual ele está votando: afinal, qual é a cidade que ele quer? Qual é a cidade ideal para todos os moradores?
A Cidade que Não Queremos
E difícil demais definir “o que queremos” para uma cidade. Não apenas difícil: é pretensioso. Porque não devemos levar em consideração nossos interesses individuais na hora de montar um conceito de cidade e, sim, os interesses coletivos. As ações que vão melhorar a vida de todos.
Nesse sentido, é muito mais fácil elencar aquilo que não queremos para uma cidade. As coisas que incomodam a todos. As coisas óbvias que aparecem nas propagandas partidárias. Violência, má qualidade nos hospitais e escolas, serviços públicos burocratizados e de má qualidade, mobilidade urbana terrível. Problemas óbvios, mas que não são resolvidos quando um prefeito apenas “cuida da cidade” e “se preocupa com os cidadãos”. Planejamento é necessário. E, nesse sentido, as grandes cidades são reféns dos interesses econômicos.
Vamos falar de São Paulo, por exemplo. A cidade acaba planejada para e pela especulação imobiliária, em um processo de gentrificação cada vez mais nítido: enquanto uma parte da cidade é higienizada, “limpa”, voltada para eventos e para o espetáculo, há um cinturão periférico em que as pessoas vivem em condições precárias, sem muitas oportunidades.
No entanto, a maioria das pessoas que vivem nessas regiões periféricas trabalha em regiões centrais. Esse deslocamento torna o trânsito insuportável. A situação é agravada pelo fato de que o transporte público é insuficiente e o investimento em transportes de alta capacidade foi pífio nas últimas décadas.
Na prática, o que não queremos são cidades projetadas para o interesse privado, e não para a convivência. Quando as cidades são modeladas por empreiteiras, como vem ocorrendo nos últimos anos, o interesse é a especulação imobiliária. A venda de imóveis com a menor contrapartida possível. É a inserção da cidade na lógica do consumismo. Ruas, casas, shopping centers, tudo é projetado para que as pessoas sejam identificadas pelo consumo. Nessa cidade, você não é mais o João, a Maria ou o Pedro: é o cara que mora nos Jardins ou freqüenta o Shopping Eldorado.
O Investimento e a Transformação
Tem sido comum os candidatos dizerem coisas do tipo “investimos mais de 1 bilhão de reais em Metrô”. O cidadão quer, sim, saber quanto dinheiro foi investido, mas quer saber, principalmente, o impacto mensurável do investimento, a sua efetividade, no que ele mudou sua vida. E os políticos, em geral, têm sido muito pouco efetivos diante dos vastos recursos investidos.
O voto secreto e individual tem um grande problema: ele pode ser hipócrita. Em uma sociedade como a nossa, cada vez mais voltada para os interesses individuais, é comum votar em um candidato a prefeito porque ele “é conhecido” ou “fez algo por você”. É essa natureza individual do voto, quase egoísta, que é explorada pelos candidatos. Eles fazem propagandas voltadas aos interesses individuais das pessoas.
Agora, imagine que o prefeito de uma cidade pudesse ser escolhido em uma grande Assembléia. Por mais que ela durasse vários dias, todos teriam direito a declarar seu voto e a defender sua posição em público. O voto, nesse caso, seria o mesmo que você depositará na urna eletrônica? Se não for, é hora de repensar algumas coisas. E de entender que não apenas o voto é importante, mas também toda a discussão que se dá em torno dele.
A cidade que queremos é uma utopia. Mas as utopias são apenas sonhos que ainda não descobrimos como realizar. O fato é que somos como jangadas no meio do oceano, e as utopias são como faróis que indicam para onde devemos remar. Não temos nenhuma garantia de que chegaremos em terra firme, mas sabemos em que direção devemos ir para chegar lá.
Dito isto, ficam os questionamentos. Se não queremos uma cidade que fique na mão de interesses privados, qual cidade queremos exatamente? Como fazer uma cidade livre, acessível, em que o objetivo seja a convivência e não o lucro? Essa é a discussão levantada aqui. Como a sua cidade pode se transformar em um instrumento para a felicidade, e não para o incômodo? Como a cidade pode se transformar em um lugar para as experiências de vida, e não para as experiências de consumo? Afinal, qual é a cidade que queremos? É hora de começarmos a construir esse conceito juntos.
“A cidade que queremos” não é um jogo virtual no Facebook. Ou, será que é isso mesmo?
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