Estamos assistindo ao surgimento de uma geração extremamente individualista, que considera direitos consolidados, como o de greve, algo absurdo e prejudicial.
As greves existem para que trabalhadores possam reclamar de suas condições de trabalho, exigindo dignidade dos empregadores. Existem inúmeros casos, nos últimos dois séculos, de trabalhadores mortos ou feridos durante greves.
Até hoje, infelizmente, muitos empregadores consideram seus empregados como uma espécie de propriedade. Isso é mais grave nos países latinos, devido à herança histórica da escravidão. Por muito tempo, após a libertação dos escravos, os donos de empresas consideravam seus empregados como uma espécie de “escravos pagos”. Na prática, a relação era rudimentar: o trabalhador realizava seu serviço em troca da exploração mal remunerada por parte do dono da empresa.
No governo de Getúlio Vargas, no meio de uma situação de exceção, foi aprovada a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). É um marco tão importante na história trabalhista brasileira que dura até hoje, mesmo com aspectos completamente ultrapassados.
Por outro lado, os trabalhadores, organizados em sindicatos, seguem defendendo a CLT. Por um motivo simples: mesmo com a CLT, empresários cometem abusos e exploram funcionários. O ciclo de justificativas funciona assim:
– O governo cobra impostos dos empresários.
– Os empresários julgam que tais impostos são abusivos. Além de tentarem “jeitinhos” para não pagar os impostos (que de fato são mal distribuídos no Brasil, nosso sistema legislativo deveria ser muito simplificado – mas essa é outra discussão), os empresários colocam parte da conta nas costas dos funcionários. Acordos informais são frequentes, especialmente nas empresas de pequeno porte.
– Só que existem dois tipos de empreendedores: aquele que, apesar de suas limitações, , pensa na qualidade de vida do funcionário, , e, por outro lado, o que ainda vê o funcionário como um “escravo pago”, tentando explorá-lo ao máximo.
– Por causa especificamente desse segundo tipo de empresário, os sindicatos não admitem qualquer tipo de flexibilização nas leis do trabalho. Elas são consideradas conquistas inegociáveis e o empresário “explorador” é visto desde sempre como um inimigo dos trabalhadores.
– Rancor gera rancor e, da mesma forma que os trabalhadores enxergam os empresários com reservas, estes enxergam os trabalhadores com reservas, como “pessoas que querem arrancar o máximo de dinheiro dos patrões fazendo o mínimo”.
– Com a consolidação dessa relação de desconfiança mútua, cada vez mais empresários tendem a tratar seus empregados como “escravos pagos”, enquanto os trabalhadores tendem a trabalhar desmotivados e fazendo somente o necessário. É um círculo vicioso crônico de falta de produtividade.
– As empresas que fogem desse padrão comportamental e tratam seus funcionários com dignidade conseguem maiores índices de produtividade, na maioria dos casos. No entanto, essas empresas ainda são minoria no Brasil, tendo em vista que a Gestão de Pessoas no país ainda se desenvolve de forma rudimentar, sem grandes estímulos à criatividade e à iniciativa do trabalhador.
As Greves
Nesse contexto de relação conflituosa entre empregados e empregadores, as manifestações passam a ser as definidas pela lei. O diálogo entre as empresas e seus empregados é feito sempre com desconfiança e qualquer acordo precisa ser formalizado. Como os dois lados não cedem, ações extremas muitas vezes são necessárias.
As greves são um direito definido em Constituição. Os empregados param o trabalho, afetando negativamente o negócio do empregador e impedindo-o de obter lucro. Isso serve como maneira de forçar o empresário a aceitar melhores condições de trabalho para todos.
No entanto, o alcance e a reação às greves revelam uma transformação recente do povo brasileiro, mostrada pela contraposição das reações em relação a dois movimentos específicos.
a) A Greve das Universidades Federais
A greve das Universidades Federais durou quase quatro meses até sua suspensão definitiva na última segunda-feira. Alcançou praticamente todas as Universidades Federais do país. As Associações reivindicavam melhores condições de trabalho, reformulação das carreiras e melhores salários.
Depois de dois meses, o Ministério da Educação enviou a primeira proposta. Vinte dias depois, mandou a segunda. Assinou acordo com apenas uma das Associações, a PROIFES, responsável por apenas sete Universidades Federais. Ignorou reiteradamente os diversos pedidos de reabertura nas negociações por parte da ANDES-SN, responsável pelas Associações de Docentes das 52 Universidades Federais restantes.
A intransigência do governo não provocou nenhuma reação popular fora das Universidades. As poucas reclamações vindas da sociedade civil em relação às greves eram as de que “esses funcionários públicos vagabundos já ganham bem e querem ganhar ainda mais, tinha que se aventurar no mercado e blábláblá”. Típica reclamação sem pé nem cabeça de gente que aprende a valorizar o egocentrismo nas redes sociais.
O fato é que os quatro meses de greve não causaram manifestação popular por um motivo simples: a greve das Universidades fere a cidadania dos envolvidos, e não a capacidade de consumo. O fato da sociedade ignorar uma greve em um serviço primordial como a educação superior, voltada para o ensino, à extensão e à pesquisa científica, revela apenas que o Brasil é um país em que as pessoas não consideram a cidadania uma prioridade. Pelo contrário, ela é ridicularizada na maioria das vezes. Basta observar a insustentabilidade do atual modelo eleitoral brasileiro, que é relativamente recente (foi consolidado na Constituição de 1988).
b) A Greve dos Bancos e Correios
Bancos e Correios entram em greve quase todos os anos. E isso ocorre, em geral, por serem dois locais em que aquela relação de desconfiança entre empregador e empregado é mais nítida.
Nos Correios, os salários costumam ser muitos baixos. E tornaram-se ainda mais baixos, relativamente, com a política de aumento do salário mínimo adotada nos últimos dez anos. O salário inicial para um funcionário dos Correios está em torno de R$ 900,00. No caso dos Correios, a situação é agravada pela ausência de concorrência: a empresa é um monopólio em muitos de seus campos de atuação. Isso faz com que, historicamente, não haja tanta pressão para aumentos salariais.
No caso dos bancários, o problema é tão grave quanto. Os bancários brasileiros ganham cerca de dois salários mínimos de piso. Existem cerca de 508 mil bancários no Brasil atualmente (fontes: aqui e aqui), e os bancos tiveram R$ 25,8 bilhões de lucro apenas no primeiro semestre de 2012. Isso quer dizer que, apenas no primeiro semestre de 2012, cada bancário gerou quase R$ 51 mil de lucro aos bancos (Lembrando que já estão descontados aí os custos operacionais do bancário).
No entanto, mesmo com as situações descritas, as greves de correios e bancários incomodam a população. Os argumentos contrários, quase sempre rasos, são do tipo “se não está satisfeito, estuda e consegue coisa melhor”. E isso ocorre por um motivo específico.
As greves de correios e dos bancos não afetam a cidadania das pessoas, e sim a sua capacidade de consumo. A sociedade brasileira é cada vez mais consumista. Esse movimento, intensificado nos últimos anos, fez com que as pessoas se identificassem não mais como cidadãos, mas como consumidores. E, como consumidores, um direito inviolável passa a ser o de… consumir. A cidadania é colocada em segundo plano pela necessidade do consumo.
E essa identificação afeta negativamente as negociações entre empregados e empregadores. Em uma visão incompleta, tapada pelo desejo de consumir, as pessoas passam a colocar a culpa da greve nos funcionários, e não nos empregadores que os exploram excessivamente, naquela lógica de “escravos pagos”. Priorizar o consumo deturpa as relações.
Conclusão
Cidadania e consumo não são concorrentes entre si. Não deveriam ser, na verdade. São duas dimensões da relação social. Enquanto o cidadão se afirma na sociedade elegendo e fiscalizando seus governantes, lutando por seus direitos, por serviços públicos melhores e por uma sociedade mais justa, o consumidor luta pela justiça em uma relação específica: a de compra e venda.
Entretanto, o consumo é apenas uma dimensão da cidadania. É apenas uma parte do enorme escopo em que está envolvida a cidadania. Quando as pessoas se voltam contra direitos sociais pelo direito de consumir, há uma inversão de valores: o consumo passa a ser um valor mais relevante do que a cidadania. Essa inversão faz com que as relações sociais tornem-se insustentáveis, porque alimentam a sensação de desconfiança na relação entre empregador e empregado: enquanto o empregador tenta ganhar o máximo explorando o empregado, este tenta trabalhar produzindo o mínimo.
Priorizar o consumismo, em detrimento da cidadania, acaba sendo prejudicial para todo o país, no final das contas. Para o governo, que arrecada menos em impostos; para os empregadores, que sofrem com níveis ridículos de produtividade; e para os empregados, que ganham menos e sofrem assédio moral.
Paradoxalmente, a priorização do consumismo, que leva as pessoas a reclamarem das greves, acaba prejudicando, no médio e no longo prazo, as próprias relações de consumo. Por isso, lutar pela cidadania e defender os direitos sociais, como o direito de greve, é a única forma de promover uma relação minimamente sustentável entre empregadores, empregados e governo, rompendo o círculo vicioso da desconfiança e da opressão.
Isso me lembra de um texto que a Elaine Brum postou na coluna dela dia desses: http://glo.bo/Pl9U9N Isso trata exatamente do interesse do brasileiro consumir mais e mais e mais e mais, ignorando noções de cidadania. Dilma tem a popularidade alta por causa do estímulo à economia. E me parece uma característica recorrente nos BRIC. Veja a China. E a Rússia. E a Índia. Ambas querem ser grandes. Economicamente. Mas esquecem que, pra serem países do dito primeiro mundo, tem de trazer cidadania e melhores condições de trabalho. E é isso.
Excelente texto.
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Entendo o seu ponto de vista. Nunca tinha pensado por esse lado. Confesso que sou contra a maioria das greves (não todas). Acho que por ser de Brasília, esse sentimento de que as greves são uma afronta à sociedade é maior.
Entretanto, o que comentamos por aqui é que os salários dos servidores de Brasília já são muito altos. Um professor aqui ganha muito mais que o restante dos professores de outros estados (sem falar no nível extremamente baixo. O concurso para professor chega a ser vergonhoso) e faz greve todos os anos. Os policiais brasilienses (Um policial militar, de nível médio, entra ganhando mais de R$4000,00) também recebem salários fora do padrão nacional.
Meu questionamento é: até que ponto as categorias não abusam do direito de greve?
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Léo, em primeiro lugar, texto primoroso.
Concordo e muito com o que você diz. O único adendo que faço, é referente as greves que interferem diretamente no dia-a-dia do povo.
Greves em serviços ligados diretamente ao povo, jamais deveriam ser feitas com a paralisação total do serviço, exemplo a greve dos metroviários que atinge toda a população com a paralisação total. Se resguardam do direito constitucional, mas não respeitam as regras que exigem um minimo de funcionamento para atender a população.
Incoerência, não? (Quero ter o meu direito respeitado, mas não respeito o direito do outro)
Com os bancos é a mesma coisa.
Brigar pelos seus direitos é legitimo e tem o meu apoio!
Mas pera-la, todo ano?
Todo ano a mesma coisa?
Eu não consigo entender: Pq o “competente” sindicato não consegue chegar em uma posição definitiva quanto a esse problema? – 10 anos atrás, eu trabalhava como office-boy em sampa. E fui testemunha da atuação do sindicato, contra aqueles funcionários que não aceitavam a greve, tratando-os com truculência e autoritarismo na porta das agencias.
Oras, cade o direito da livre escolha? De querer ou não participar?
E 10 anos passados ainda é possível ver a mesma ação truculenta e autoritária por parte do sindicato e pasme, com as mesmas reivindicações…
Penso o seguinte:
Se querem fazer greve, que façam e cheguem a um consenso e solução definitiva. Definam regras com os banqueiros, com registro em cartório e penalização prevista caso não seja cumprido o acordo. Se no ano seguinte os banqueiros não seguirem o acordo, entra na justiça e exija o que foi acordado.
Mas isso com certeza não será feito, se até hoje não foi feito, não será agora.
E existe um outro ponto, que é fundamental mas acaba sendo esquecido nos argumentos politizados.
O principal fundamento de uma greve: Atacar diretamente os interesses e produção dos patrões.
Oras, só um tolo para achar que fechando as agencias, os bancos deixarão de lucrar. A fatia que realmente interessa aos banqueiros, não coloca os pés em uma agencia bancaria, a anos.
A paralisação total das agencias só afeta exclusivamente o povo. Aquelas pessoas que não possuem acesso e instrução digital, idosos que precisam sacar suas aposentadorias…
Ai eu pergunto: É legitimo, afetar diretamente a vida das pessoas que possuem menor condição? EU NÃO ACHO! A greve dos bancários é legal? É, mas tbm é imoral!
Quanto as greves de metalúrgicos (por exemplo), que paralisam sua produção e afetam diretamente os interesses dos patrões e apenas o interesse deles. Esse é o exemplo genuíno de uma greve e a constituição defende esse direito, exatamente tendo isso como base. Afetar o interesse dos patrões.
Jamais a constituição defenderia a paralisação de serviços fundamentais, que colocariam o direito do transporte do trabalhador e do acesso ao consumo de alimentos e remédios, em segundo plano, como legitimo.
Tudo que interfira diretamente na , já sofrida, vida dos trabalhadores, deve ser condenado.
Tirar o direito ao consumo e transporte do trabalhador é no minimo, falta de cidadania.
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Velho, baita comentário seu. Sério.
Concordo que os direitos das pessoas, que não tem nada a ver com a greve, não devem ser afetados.
Os sindicatos ainda agem, em muitos casos, da mesma forma dos anos 80. Defendendo as mesmas reivindicações, inclusive. É evidente que muitos movimentos são anacrônicos e ajudam inclusive a população ter uma visão negativa sobre as greves.
Vamos pegar dois casos em específico: os metroviários e os bancários, que você citou. Os metroviários só cogitaram esse ano, depois de muitos anos de paralisações, o advento da abertura das catracas. Foram prontamente impedidos pelo governo, que entrou com ação na justiça para responsabilizar criminalmente, por desvio de patrimônio público, os funcionários do Metrô que participassem da abertura de catracas.
Daí eles fizeram greve. O problema é que a justiça determinou que eles continuassem atendendo com 100% da capacidade em horário de pico e 80% da capacidade nos demais horários. O fato é que os Metroviários JÁ FAZEM isso, todos os dias, e a interpretaram como um cerceamento do movimento de greve deles. Daí deu a merda que deu.
No caso dos bancários, é um pouco diferente. O sindicato, em alguns casos, é truculento sim. Precisa sim repensar seus métodos. A negociação anual nunca chega nem perto do ponto desejado. e vou falar a verdade, eu acho aquelas reivindicações “absurdas” dos bancários justas. Porque daí você equipararia o Brasil, que tem o menor salário para os bancários na América Latina, ao patamar dos demais países latino-americanos. O que pessoalmente me irrita na greve dos bancários é que na primeira proposta um pouco melhor eles já aceitam e deixam o movimento pro ano que vem, mesmo estando muito longe das necessidades deles. E, acreditem, isso por si só é uma merda. Apesar da luta pela melhoria das condições de trabalho ser anual, essa estratégia melhora muito pouco a vida dos bancários no geral.
Vamos lá:
1) Eles precisam sim repensar os métodos. Mas a justiça não pode tentar impedir o movimento por todos os lados como vem fazendo.
2) Exceto greve e abertura de catraca, existe alguma outra opção possível? Sério, é algo a se pensar.
3) A greve dos metroviários foi traumática porque mostrou que SP de fato está no seu limite. Um dia sem metrô e a cidade virou um caos completo. É uma situação assustadora.
4) TUDO isso é por causa do que eu disse no começo do texto: o histórico de exploração faz com que a relação entre empregador e empregado seja de pura desconfiança. Sendo assim, a relação é negativa de ambos os lados. Não é uma relação bacana, bem construída, de respeito mútuo. E isso especialmente em setores como o bancário, em que o lucro é monumental, e os governos.
5) Os banqueiros são difíceis de negociar por motivos óbvios. Com os governos há um agravante terrível. Na Constituição de 1988 foi prevista a regulamentação em lei do dissídio anual para os Servidores Públicos, de acordo com a inflação, como já existe para o setor privado. O fato é que 24 anos depois, a lei ainda não foi aprovada, o que faz com que funcionários públicos só tenham reajustes salariais pela benevolência do Estado ou após greves. Isso gerou situações assustadoras, como os professores de SP sem reajuste por 10 anos entre 1994 e 2004. Sem REAJUSTE.
Enfim, é uma situação complicadíssima. A greve é o efeito, e não a causa. E qualquer coisa só vai dar certo se combatermos a causa de tudo isso, que são as relações entre empregador e empregado. Se elas fossem mais honestas e subordinadas à cidadania, ao invés de se sobreporem a ela, teríamos menos problemas com greves ou coisas do tipo.
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Qualquer bancário é “dificil de negociar” …
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Eu sou a favor de greves se elas não afetarem muito a população. Dos bancários sou a favor porque os bancos como foi dito no texto eles faturam muito dinheiro. No serviço público tem que ter uma regulamentação para não ter abuso.
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Tudo bem, mas não esqueça que também se trata de uma “parte da população” que organiza as greves.
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Ótimo texto!
Só uma observação: empresário e empreendedor não são a mesma coisa.
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Embora nem todas as greves façam sentido, qualquer uma delas é um ato político – no sentido literal da palavra.
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