Carros Sujos e a Cimentação da Vida

Até bem pouco tempo atrás, um ritual se repetia diariamente em minha vida: eu estacionava o carro em frente à casa de minha noiva, em frente à arvore de quase três décadas, entortada pelas diversas podas. Quando eu voltava, o carro invariavelmente estava sujo com os excrementos de algum passarinho.

No começo, era bem irritante ter que limpar aquilo todos os dias. Cheguei a estacionar um pouco acima ou um pouco abaixo da árvore para evitar essa rotina. A mãe da minha noiva, aproveitando a costumeira “bondade” dos políticos às vésperas da eleição, solicitou a retirada da árvore, que estava cheia de cupins e oferecia algum risco. Nessa semana, a árvore finalmente foi retirada.

Pouco antes da retirada da árvore, passei algum tempo olhando as casas ao redor. Em um bairro de classe média (classe média mesmo, quase classe média baixa), vi que as árvores, em toda a extensão da rua, eram cada vez mais raras. Na rua da minha casa, no mesmo bairro, elas praticamente sumiram de 20 anos pra cá.

Há algumas décadas, em Santo André, existia uma lei municipal que obrigava as pessoas a plantar uma árvore em frente de sua casa quando fossem construir. As ruas eram arborizadas, tinham muita sombra, era muito comum descansarmos depois do futebol debaixo da sombra delas. Dessas sensações maravilhosas da vida, de quando não tínhamos preocupação com os projetos a entregar ou com as contas a pagar. Mas, naquela época, era muito raro ver algum passarinho cagando em nossa cabeça. Quase nunca ocorria.

Então entendi por que meu carro ficava sujo todos os dias. A árvore em frente à casa da minha noiva era praticamente a única de grande porte que havia sobrado na rua. Todos os pássaros, que em outras épocas ficavam espalhados em 10 ou 15 árvores, tinham se mudado para lá. E agora, com a derrubada da árvore, eles teriam que se abrigar em árvores menores ou em alguma rua mais arborizada.

A árvore de fato precisava sair dali, de acordo com os especialistas da prefeitura. Não estava saudável. Estava morrendo por dentro, sendo atacada por cupins, e alguns galhos poderiam cair e machucar alguém em pouco tempo.

De fato, as árvores não foram concebidas pela natureza para viverem cercadas por uma cobertura de concreto impermeabilizando o chão. Para sobreviverem nessas condições adversas, são obrigadas a fincar raízes mais fundas em busca de água. Só que a água buscada nos lençóis freáticos das cidades frequentemente está contaminada com toda a sujeira produzida pela cidade. Além disso, o ar absorvido pelas árvores, na fotossíntese e na respiração, é poluído a ponto de prejudicar a sobrevivência da árvore em longo prazo. É como se todas as árvores fossem fumantes.

As árvores são prejudicadas pela cidade. Mas a cidade também se considera prejudicada pelas árvores. As calçadas não podem mais ter árvores, pois elas “atrapalham a circulação”. Ou porque suas raízes crescem, em busca de água, e quebram nossas inabaláveis estruturas de cimento, tornando as calçadas e ruas “feias”. Elas são inadmissíveis no parâmetro urbano de admiração do cinza e do impermeável.

Trafegue pelos calçadões no centro de São Paulo, pela Rua 25 de Março, pela Rua Santa Ifigênia, até pela Avenida Paulista. Quantas árvores encontramos nesses locais? Desconfio que a resposta seja muito próxima de zero. As árvores ficam confinadas em parques assépticos, como o Trianon. Enquanto isso, nos subúrbios, as árvores, mal cuidadas e cercadas de concreto por todos os lados, são extirpadas da cidade, como se fossem um câncer.

No lugar as árvores, crescem novas casas, ou sobrados, em que as pessoas constroem oito apartamentos de 50 m² cada, em um espaço onde antes havia uma casa humilde, às vezes sem reboco , com teto construído em estuque, mas com um belo jardim e um enorme quintal, em que as árvores, além de fornecer frutas saborosas, ainda serviam como local de descanso. Tudo isso é passado. O progresso, ao invés de fornecer vida com qualidade, nos espreme em prisões de cimento.

O cimento tem uma característica muito peculiar: é um tipo de cerâmica que, em contato com a água, inicialmente forma um material viscoso, que sofre um rápido processo de cristalização. Depois que endurece, torna-se um material extremamente sólido, quebrável apenas com muito esforço. Quando o cimento se torna mais importante para a vida da cidade do que as árvores, confinando-as aos parques, não temos apenas um problema ecológico: temos a impressão de que a cidade torna-se cada vez mais inerte, cada vez mais triste, cada vez mais cinzenta e sem sentido. As vidas das pessoas tornam-se uma armadilha imobilizadora de cimento, da qual é impossível sair.

As cidades são frutos de escolhas coletivas, feitas por diversas gerações. Essas escolhas têm consequências mensuráveis. Privilegiamos os ratos em nossos esgotos, enquanto os pássaros somem junto com as árvores. Os sons que escutamos pela manhã não são mais deles cantando: são as buzinas dos carros, repletos de pessoas que correm sem nem saber para aonde.

E, no final, minha irritação era apenas mais uma babaquice egoísta. Agora eu chego na casa da minha noiva e sinto falta de algo. É muito melhor ter um carro que é sujo todos os dias pelos pássaros do que uma vida cimentada e sufocada pelo ritmo avassalador da metrópole, que faz a vida passar por nós sem que tenhamos o privilégio de vivê-la.

5 comentários sobre “Carros Sujos e a Cimentação da Vida

  1. Nas últimas semanas, pratiquei minhas corridas em horários pouco convencionais, tipo 5:30 hs da manhã. Nesse horário, quando passo embaixo de alguma das (não muitas) árvores que têm no caminho – e olha que moro em Florianópolis, cidade grande, mas longe de ser a metrópole que é São Paulo – sempre escuto vários pássaros cantando. É uma sensação muito boa, pois o som da natureza é muito mais agradável do que aquele produzido pelos carros. E esses dias até pensei algo parecido com o que está no texto: “em breve, não ouviremos o sons dos pássaros, pois o concreto e o aço das cidades acabará com essas espécies”

    Fiquei feliz quando li esse texto. Na minha classificação, um bom texto é aquele sobre o qual pensamos: “puxa, era exatamente isso o que eu estava pensando”. E não digo isso em tom de inveja, pelo contrário; o sentimento é de satisfação, por alguém ter conseguindo expressar àquelas ideias que aparecem de maneira desconexa em nossas mentes. Muito obrigado!

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  2. Adorei o seu texto.. Com o preço dos terrenos valendo milhões.. uma árvore não tem espaço devido a especulação imobiliária. Sinto saudades de árvores frutíferas.. nas calçadas.. coisa que não vejo há anos.

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