O brasileiro é apaixonado por carro. Bem, pelo menos isso é o que diz a propaganda dos Postos Ipiranga:
Na verdade, essa não é uma paixão. É um condicionamento. Em um país envolto numa história de desigualdade social, carros e casas próprias são símbolos de que você pertence a uma classe superior, símbolos de que você venceu na vida, de que você é trabalhador e superou todas as adversidades. Ou eram, até alguns anos atrás.
Mas esse conceito é uma questão cultural e ficou impregnado. Hoje, para a classe média brasileira, carros e casas continuam sendo sinônimos de status. Não mais de exclusividade, com o baixo desemprego e a popularização da compra através do crédito. Mas ainda de “sucesso”, sob a norma de os principais sinônimos de sucesso no Brasil serem o carro 0 Km e a casa própria.
O fato do carro ser um sinônimo de status inflaciona o mercado. Vamos recordar como a indústria automobilística chegou ao Brasil. Em janeiro de 1925, a primeira montadora estrangeira chegou ao Brasil: a General Motors, em São Caetano do Sul.
Depois de quase 30 anos e de uma guerra mundial, o Brasil recomeçou seu processo de substituição de importações, investindo com força na criação de um parque industrial. Nesse contexto, foi criada, em 1953, a Petrobrás, para suprir a demanda brasileira por Petróleo e nacionalizar as reservas do país. O próximo passo foi a atração de montadoras de veículos leves e pesados, capitaneada pelos governos Getúlio Vargas (até seu suicídio) e Juscelino Kubitschek. Com isso, o Brasil fez uma opção, privilegiando os investimentos em infra-estrutura no modal rodoviário. E permaneceu assim por 50 anos.
A cadeia produtiva das montadoras de veículos sempre foi uma grande geradora de empregos. Não apenas nas montadoras, mas nas empresas de autopeças, plásticos, químicas e petroquímicas que se instalaram ao redor das montadoras. O desenvolvimento do ABC paulista nas décadas de 60 e 70 é consequência disso. Para se ter ideia, no Censo de 1970 a cidade de Santo André havia se tornado a 10ª maior área urbana do país, com 415 mil habitantes.
Essa opção foi positiva para o desenvolvimento do país durante algum tempo. Mas, quando eclodiram as Crises do Petróleo de 1974 e 1979, que afetaram terrivelmente as contas nacionais brasileiras, o mercado automotivo obviamente sofreu. O Pró-Álcool foi criado nessa época, para satisfazer a demanda brasileira por combustível em um cenário em que ainda éramos dependentes do petróleo do exterior. Desde então, os combustíveis brasileiros levam obrigatoriamente uma porcentagem de etanol.
No entanto, 87 anos após a instalação da primeira montadora no Brasil, o cenário permanece. Existem 21 fábricas de automóveis instaladas no Brasil, todas elas estrangeiras. A Gurgel, única tentativa relevante de produção de veículos genuinamente nacionais, faliu em 1994.
Essas montadoras sempre contaram com os benefícios do poder político, na forma de incentivos. A justificativa sempre foi a mesma: o setor automobilístico gera empregos e é essencial para a economia. Tal justificativa orientou todos os governos, desde Juscelino Kubitschek, a privilegiar o modal rodoviário como catalisador do desenvolvimento econômico, sempre cedendo às pressões da indústria automobilística. Tais opções governamentais tem reflexo até hoje, com o Brasil mantendo uma malha ferroviária deteriorada, que só voltou a receber investimentos recentemente, e uma malha de Metrô insuficiente nas grandes cidades, fruto dos escassos investimentos até a década de 90.
Essa política é uma das grandes responsáveis pelos problemas logísticos do país e pelo trânsito caótico nas grandes cidades, que comprometem a competitividade nas mais diversas áreas (para entender mais sobre Custo Brasil, leia aqui). Sendo assim, a opção pelo automóvel é insustentável no médio e no longo prazo. Postergar a mudança de foco no crescimento econômico é perder tempo tentando evitar o inevitável.

Congestionamento na Av. 23 de maio, em São Paulo (Fonte: R7)
Mas há uma motivação por trás disso: o lobby das montadoras.
Como Funciona o Lobby das Montadoras?
O lobby das montadoras tem um ativo principal, que sempre as coloca em vantagem em relação aos governos: as ameaças de demissão.
Temos que compreender que, quando uma montadora demite 500 pessoas por queda na produção, não são apenas 500 pessoas que perdem seus empregos. Por serem o ponto central de uma complexa cadeia produtiva, quase sempre as 500 demissões em uma montadora geram o dobro de demissões em empresas fornecedoras (de autopeças, plásticos, químicas, petroquímicas, de máquinas e equipamentos, dentre outras), além de demissões no setor de serviços, com o esfriamento das vendas. Esse é um enorme capital político que permite às montadoras exigirem incentivos e, quase sempre, conseguirem o que desejam.
Normalmente funciona assim:
1) Por razões econômicas diversas, o número de veículos vendidos cai.
2) As montadoras reclamam e ameaçam demitir funcionários.
3) As montadoras negociam incentivos ao setor junto ao governo. Geralmente o governo cede, socializando as perdas para privatizar os lucros.
4) As vendas de veículos se recuperam e batem recordes.
5) Os montadores remetem seus lucros para o exterior. Nos últimos três anos e meio, foram US$ 14,6 bilhões remetidos às matrizes.
6) Apesar das boas notícias, as montadoras seguem pessimistas.
7) O governo prorroga incentivos e continua a socializar perdas para sustentar o lucro das montadoras, que é remetido para o exterior (muitas vezes para salvar suas matrizes, como foi o caso da General Motors americana entre 2008 e 2010).
Com isso, as montadoras:
– Manipulam o mercado para conseguir incentivos do governo.
– Praticam margens de lucro extorsivas, muito superiores às dos demais países. Com o agravante de que o preço de torna ainda mais absurdo em caso de financiamento, com nossos juros bancários exorbitantes.
– Impedem a criação de uma montadora genuinamente nacional, por pura questão concorrencial.
– Aumentam substancialmente o endividamento do brasileiro, impedindo o desenvolvimento econômico no médio e no longo prazo.
– Geram poucos empregos, caríssimos para a quantidade de incentivo que recebem (desde a crise econômica, cada emprego gerado custou R$ 1 milhão em incentivos governamentais).
Planejamento
É impossível virar as costas para as montadoras, tendo em vista que as mesmas são, de fato, importantíssimas no processo produtivo brasileiro. Ignorá-las é o primeiro prazo para produzir uma crise econômica séria no curto prazo. E épor isso que os governos semprecedem.
Uma forma de depender menos das montadoras é diversificar o parque industrial. O Brasil, até hoje, é muito dependente de algumas indústrias em específico, como as montadoras, e da exportação de commodities. O Brasil não vai conseguir mudar o seu perfil sócio-econômico em seis meses, obviamente. Mas pode começar agora a dar passos nessa direção.
O país tem um enorme déficit em educação, pesquisa e desenvolvimento. Nas universidades ou nas indústrias, o Brasil vive de ilhas de excelência rodeadas de um enorme mar de mediocridade. Os motivos históricos para isso são diversos, mas passam necessariamente pela carência de investimentos históricos no setor, além da ausência de um projeto de longo prazo, supragovernamental.
Investindo em novas áreas você cria novas fontes de emprego na sociedade, muitas vezes com maior valor agregado que o setor automobilístico, que é intensivo em investimentos. E essa é a única maneira do Brasil reverter, no médio prazo, a atual dependência de algns setores específicos da economia, como o automobilístico.
Conclusão
Obviamente, não é possível abandonar a indústria. Carros continuarão a ser fabricados e comprados, e isso é bom. Mas toda a economia de um país não pode depender disso em pleno século XXI. As cidades não podem ser reféns da indústria automobilística. O escoamento da produção agrícola e industrial também não.
O brasileiro pode ser apaixonado por carro? Sim, pode. O que ele não pode ser é mulher de malandro do carro: não pode deixar o incentivo ao carro atrapalhar o desenvolvimento do país como um todo. Não pode deixar as montadoras chegarem em casa bêbadas, contarem mentiras e extorquirem dinheiro de casa para sustentar eventuais amantes por aí.
O que o consumidor pode fazer a respeito? Apenas coisas simples, como não trocar de carro todo ano, por exemplo. Usar carro apenas quando for necessário. Evitar compras tolas (não apenas de veículos,que fique bem claro). E pressionar para que o governo pare de socializar perdas, dando dinheiro para que as montadoras maximizem seus lucros. Mesmo que isso não tenha grande efeito a curto prazo.
Não vejo que querer uma casa própria e um carro seja sinônimo de status e sucesso, nada mais normal do que querer sair do aluguel e não depender de ônibus para passear com família, amigos etc. O resto do texto é muito bem explanado.
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Pra gente, que é mais novo e não viveu tanto as décadas de 70 e 80, isso é mais relativizado. Mas quem cresceu naquela época tem isso bem mais forte, porque carro e casa não eram algo ao alcance de todos.
Eu não considero carro ou casa como sinônimo de status, e creio que você também não, pelo que falou. Mas, felizmente ou infelizmente, tem muita gente que ainda considera.
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Humm, é verdade, a idade explica isso, sou de 84 rs. Agora o que não tem idade é o pensamento de que carro é investimento, o 0km. Não consigo entender quem troca de carro todo ano achando que não está perdendo dinheiro. Tenho um a dois anos e não pretendo trocar tão cedo. Há quem diga que estou perdendo dinheiro, e quem diz troca de carro todo ano pagando diferenças absurdas (isso se tratando de carro 1.0 pelado).
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Agora sim Leo ! Melhorou a pauta dos assuntos ! Ótima abordagem !
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Muito bom artigo. Obrigado.
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Muito bom! Gostei e passei pro face. Explore mais esse assunto. Parabéns!
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bom texto
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