O servidor público é o vilão?

O Brasil, assim como boa parte dos países ocidentais, conta com uma certa tradição em considerar servidores públicos incompetentes e corruptos. A tradição é justificada pelos diversos casos de incompetência, corrupção e serviços precários, prestados por diversos agentes públicos, noticiados largamente na mídia. A reclamação a respeito do tema no Brasil não é algo novo, como comprova essa capa da Veja de 20 de junho de 1990:

A “tragédia brasileira” do funcionalismo público, que é uma tragédia quase global, na verdade, é algo que existe e é grave. Não vamos esconder os olhos ao fato de que existem sim muitos funcionários públicos ruins, corruptos, que não prestam bons serviços. No entanto, existe uma generalização estúpida em relação ao assunto. Vamos destrinchá-lo:

1) Serviços ruins ocorrem em ambientes sucateados ou sem propostas de modernização no atendimento: é muito claro que o investimento governamental é fator preponderante na excelência de um serviço. Esse cenário faz com que a maioria do governo seja composto por ilhas de excelência em meio a uma multidão de serviços sucateados.

Todo governo escolhe prioridades. O gerenciamento dos governos acaba impondo isso. Tem a ver com o marketing político para a próxima eleição, mas também tem a ver com as prioridades do governo e com quem ajudou no financiamento de campanha. Um governo que se elegeu com apoio de empreiteiras vai fazer obras públicas que beneficiem essas empreiteiras, em boa parte dos casos. O objetivo, obviamente, é o financiamento para o próximo processo eleitoral. O Leonardo Sakamoto fala sobre o assunto com mais propriedade.

As ilhas de excelência são usadas no marketing político. Os demais serviços públicos são alvo de maquiagem. E o cidadão é obrigado a arcar com serviços ruins na maioria dos órgãos públicos. Que, na prática, estão abandonados pelos governos, sobrevivendo com os esforço dos próprios funcionários públicos. Que, em boa parte das vezes, são mal remunerados e não contam com um plano de carreira adequado, com reajustes salariais constantes e possibilidade de crescimento.

Tal situação facilita muito a corrupção. Pois o abandono do governo incorre não apenas na falta de incentivo ao funcionário público: incorre também na falta de fiscalização. E servidores públicos não são apenas corruptores: na maioria dos casos, eles são corrompidos.

Uma ferramenta que auxilia nesse processo de corrupção é a burocracia. Com mais procedimentos burocráticos, maior é a chance de procedimentos ilegais furarem o processo. O abandono do governo e o sucateamento dos serviços públicos fazem com que os órgãos, através de uma aprcela corrupta de funcionários, passem a criar dificuldades para vender facilidades. E isso é, de fato, uma tragédia.

2) A má fama dos servidores públicos junto à sociedade desestimula a honestidade: os servidores em geral são os alvos preferenciais das operações de transparência dos governos. Exemplo disso são as divulgações de salários dos servidores, que viraram uma política quase consensual nos portais de transparência.

Não haveria nenhum mal em divulgar os salários dos servidores, se isso não prejudicasse a segurança deles, em vários sentidos. É perigoso qualquer um ter acesso aos dados de vencimento de um servidor. E isso em todos os aspectos: desde chantagens familiares até assaltos e sequestros.

Mas a verdade é ainda mais grave: a eficiência de tal procedimento é questionável. Pois todos sabem que a revelação dos salários visa acabar com eventuais supersalários, além de revelar funcionários fantasmas. As indicações políticas e os funcionários comissionados não serão atingidos por isso. E o motivo é simples: a grande maioria desses contratos é feita através de manobras que possibilitam a contratação desses comissionados por agentes externos fiscalizados de maneira diferenciada pelos Tribunais de Contas, como as empresas públicas e os conselhos diretivos da autarquias. Isso permite com que a pessoa continue sendo uma funcionária fantasma ou continue tendo um supersalário tranquilamente, pois autarquias e empresas públicas não obedecem aos mesmos requisitos da administração direta no tocante à fiscalização.

Nesse aspecto, a transparência é mais uma caça às bruxas, com pouco resultado prático, do que um mecanismo eficiente de controle dos gastos públicos.

3) Desvalorizar o serviço público é um caminho para a inserção de empresas privadas no setor: é uma estratégia antiga e que sustentou movimentos de privatização por todo o mundo. Ao sucatear um órgão público, o passo seguinte é sempre endeusar o livre mercado e falar que “o mercado faria melhor”.

Se um serviço público é ruim, a solução imediata para o mesmo não é a privatização, é a racionalização. A discussão sobre o tamanho do Estado é muito antiga e obviamente não deve ser definida nesse espaço. Mas, independente disso, algo que todo governo deve fazer é quantificar os custos e os serviços que ele quer realizar. E, dentro desse pacote de serviços, verificar quanto dinheiro é necessário para que, de fato, todos eles sejam feitos adequadamente, e não apenas alguns, em um universo de serviços medíocres.

E há um agravante aí: se existem empresas privadas dispostas a prestar serviços públicos, é porque tais serviços dão lucro. Nenhuma empresa privada tem vocação missionária, doando dinheiro para o Estado. Pelo contrário, todas tentam se relacionar com o Estado visando o lucro.

E aí reside algo mais grave que a privatização, no contexto atual: a terceirização. A maioria das concorrências públicas e licitações por serviço tem como um dos principais parâmetros o menor preço. É louvável que os governos queiram gastar menos nos serviços prestados, delegando-os a terceiros. No entanto, lembremo-nos que o objetivo das empresas que se relacionam com o governo é o lucro. E, com esse objetivo em vista, elas prestam o pior serviço possível depois de contratadas, pagando salários miseráveis ou fornecendo produtos de qualidade pífia (no caso das compras públicas). Tais procedimentos sucateiam ainda mais um Estado que já sofre com o gerenciamento inadequado de recursos. E pior: transferem o ônus da incompetência do setor privado para o setor público.

Assim como o setor público não é sinônimo de incompetência, o setor privado não é sinônimo de competência. Exemplos de boa e de má gestão existem de ambos os lados. Só que os objetivos devem ser diferentes: enquanto o setor privado invariavelmente visa o lucro, sendo regulado pelo governo para não fazê-lo de forma predatória, o setor público deve visar sempre o melhor serviço para o cidadão.

Conclusão

A corrupção é algo pernicioso no serviço público. Não há justificativa para a sua existência, assim como não há justificativa para alguém que resolve se tornar um estuprador, por exemplo, mesmo que ele tenha sido vítima de abusos na infância, por exemplo.

No entanto, o funcionalismo público, na maioria dos casos, acaba sendo tão vítima quanto o cidadão que é submetido a um serviço ruim. O serviço prestado é reflexo do governo, do tratamento que o governo dá a questão. Uma educação ruim, por exemplo, é o reflexo direto de sucessivos governos que tratam o tema com desleixo. Um sistema de transporte inadequado é reflexo de sucessivos governos que não souberam lidar com a questão.

O servidor público, no final, é apenas isso: um servidor. Um sujeito que está ali para servir, para acompanhar, para tentar fazer o seu máximo com as condições que tem. E, em boa parte dos casos, eles fazem o possível, com o que tem na mão.

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4 comentários sobre “O servidor público é o vilão?

  1. Cara. Na moral, parabéns pela postagem.
    Excelente.
    Cada vez mais nós servidores públicos somos vítimas dessa “perseguição” da sociedade e da mídia. Tem muito servidor público vagabundo sim, mas a maioria é formada de bons servidores que estão dispostos a fazer o máximo para executar um serviço de qualidade, mas passam por inúmeras dificuldades para isso, com estruturas precárias, falta de material e, principalmente, de apoio dos governantes.
    Isso sem falar nos servidores que entram cheios de disposição, mas acabam cansando de dar murro em ponta de faca.
    De qualquer forma, parabéns pelo post.

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  2. QUANTAS VEZES CHEGUEI NUMA REPARTIÇÃO PÚBLICA FALTANDO ALGUNS MINUTOS PARA ENCERRAR O EXPEDIENTE E FUI INFORMADO DE QUE SOMENTE SERIA ATENDIDO NO DIA SEGUINTE? NA INICIATIVA PRIVADA ISSO JAMAIS OCORREU…

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