O Golpe da Poupança

Ontem, dia 03 de maio de 2012, uma tradição de 151 anos, estabelecida por Dom Pedro II, foi quebrada.

Há 1861, no 2º Império, a poupança foi criada como modalidade de aplicação para que as pessoas mais pobres pudessem guardar seu dinheiro com uma rentabilidade mínima garantida por decreto do Imperador. Juntamente com a poupança, foi criada a Caixa Econômica da Côrte, que hoje é a Caixa Econômica Federal. Sempre com taxa anual nominal de 6% de rentabilidade. Em regime de juros compostos e rendimento mínimo de 0,5% ao mês, hoje a rentabilidade mínima gira em torno de 6,14% ao ano. Mais a taxa referencial, que, no cenário atual, raramente passa de 0,2% ao mês.

Ter mantido um investimento com a mesma taxa por lei por todo esse tempo é, para o Brasil, um golpe duro. Um choque de realidade. E o assunto do texto é esse golpe, uma chamada para que nós verifiquemos nosso fracasso histórico enquanto país.

Quando a poupança foi implantada, a intenção era valorizar o dinheiro do trabalhador, que naquela época já sofria desvalorização por conta da inflação. Posteriormente, outros mecanismos foram utilizados para manter o valor do dinheiro, como a correção monetária, criada em 1964. Sobre a correção monetária, cabe contar uma história que ilustra bem a inversão de valores existente em nosso país.

Antes de 1964, “compensava” sonegar impostos. Isso porque havia a Lei da Usura, que não permitia ai governo cobrar mais que o dobro dos juros estabelecidos como taxa base. A taxa base era de 6%, e o governo podia cobrar no máximo 12% de juros ao ano de seus devedores. Como podemos perceber no gráfico abaixo, em raríssimas oportunidades a inflação ficou abaixo de 12% ao ano entre 1945 e 1964:

Isso fazia com que, na época, as pessoas com dinheiro sonegassem seus impostos e ainda investissem na poupança, que rendia no mínimo 6% ao ano. Ou seja: além de não pagar o governo, cidadãos endinheirados ainda tinham rentabilidade sobre o que não pagavam para o governo, se investissem na poupança. Com o advento da correção monetária, em 1964, a carga tributária subiu de 17 para 26% do PIB em seis anos (entre 1964 e 1970), possibilitando aos militares esbanjarem dinheiro em investimentos faraônicos, como a Rodovia Transamazônica. Eu já abordei o assunto aqui no blog.

A lição principal que a poupança nos deixa é a de que o Brasil passou 151 anos sem amadurecer em sua política econômica. O rendimento de 6% ao ano, definido por lei, sempre foi admitido por dois motivos, em diferentes momentos:

1) A inflação sempre foi maior que os 6% ao ano no Brasil, até a década de 90: e daí devemos sim admitir o esforço de estabilização da moeda dos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. A verdade é que, até 1994, a rentabilidade de 6% ao ano era absolutamente irrelevante, perto de uma inflação que chegou aos 2708% (isso mesmo, dois mil setecentos e oito por cento) em 1993.

2) Os juros no Brasil, depois do fim da corrida inflacionária, tornaram-se astronômicos. E isso fez com que o Brasil adiasse por mais 18 anos a mudança nas regras da poupança. Na maior parte desse tempo, tivemos os maiores juros reais do mundo. O Brasil se tornou um paraíso para banqueiros, que passaram a ter, aqui, os maiores lucros proporcionais do mundo. Parte disso também por conta das tarifas, conforme abordado aqui no mês de outubro.

Portanto, a iniciativa da Presidente(a) Dilma Rousseff de atrelar o rendimento da Poupança à taxa Selic foi, para todos os efeitos, acertada. Permanecer 151 anos com uma aplicação com rendimento estabelecido em lei, sem alterações, só mostra que em TODO esse período nunca tivemos a conciliação de um cenário de inflação controlada e juros baixos, que impusesse a alteração da regra de rendimento da poupança.

Não creio que é um “momento único”, “oportunidade histórica” ou algo do tipo. Mas é hora de nos levantarmos e de fazermos uma autocrítica ao nosso projeto de país. Temos, de fato, um projeto de país? O que nosso país quer ser? Por que demoramos tanto para fazer algo que em tese é tão simples, como conciliar inflação sob controle e juros baixos?

E mais: por ainda se critica tanto tal iniciativa? A poupança, obviamente, é uma tradição bem estabelecida. Mas a rentabilidade estabelecida por lei, além de pressionar os juros para cima e remeter o brasileiro à época de hiperinflação, traz um efeito surpreendente: o de fazer com que o Brasil tenha uma das poupanças internas mais baixas do mundo, tornando-se dependente de investimentos do exterior.

Explico: a taxa de rendimento da poupança, quando pré-fixada em lei, passa a servir como referência para os juros do país, obrigando os demais investimentos a terem rentabilidade semelhante ou maior. Tal cenário é responsável por nossos enormes spreads bancários e favorece especulação em larga escala, atraindo investidores interessados nas altos juros de retorno de seus investimentos. A valorização da especulação, que é volátil, diminui o potencial de investimentos do país sem agregar valor à economia local, tornando o Brasil dependente de investidores estrangeiros.

E o elogio final fica para a forma como a mudança foi realizada, e de como seu mecanismo pegou o mercado de surpresa. Todos esperavam a tributação da poupança. Ao invés disso, o governo atrelou o rendimento da poupança à Taxa Selic. Isso dá margem para que o juro real caia a patamares internacionais e o investimento interno aumente. Há diversos problemas a serem superados. Mas abrir uma guerra contra o spread bancário e relativizar o rendimento da poupança, possibilitando maior queda nos juros reais da economia, foram as duas atitudes do governo Dilma com maiores impactos positivos no médio e longo prazo até agora.

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