O Art. 2º da Constituição Federal de 1988 diz:
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Existem diversas interpretações sobre o que seriam os conceitos de “independência” e “harmonia” no entendimento da lei. Como não sou jurista, não vou me aprofundar no assunto, mas basicamente deve ser algo como “não se mete no que é meu que eu não me meto no que é seu”.
No meu último texto, sobre cotas raciais, eu comentei que, em diversos casos, o Judiciário está assumindo o lugar do legislativo. E que isso só ocorre porque nosso corpo legislativo tem sido tão medíocre que não consegue nem mesmo se posicionar em relação a temas polêmicos para o país. E, mais grave do que isso, está revestido de um ranço político tão forte que não consegue admitir eventuais derrotas em votações, levando tudo para ser julgado no STF.
O STF julga tais casos de acordo com com a jurisprudência, criando padrões de acordo com a interpretação que os juízes fazem da lei. Tais interpretações são válidas apenas quando a lei é omissa, substituindo-as nesses casos. E, quanto mais o STF precisa julgar casos que nossa sociedade considera relevante, mais se revela a inépcia de nossos legisladores.
Daí, por não concordarem com o STF acerca de uma decisão específica (o aborto de anencéfalos), deputados da bancada evangélica (sobre a qual já falei aqui) sugerem que o Congresso Nacional tenha o poder de derrubar atos do STF. E, para completar, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Congresso aprova tal aberração. É óbvio que a lei é inconstitucional e não vai passar, mas a manobra denuncia o (baixo) nível de nossos congressistas.
Não sou elitista e creio muito que a democracia é algo sensacional em colocar no poder as pessoas que o povo realmente escolhe. Inclusive, acho que nosso sistema eleitoral proporcional é bem apropriado e só precisa de algumas adaptações, como a possibilidade de se disputar eleições sem se filiar a partido nenhum.
No entanto, creio que devam existir parâmetros mínimos para a proposição de leis. Propor uma lei que é uma afronta clara a uma cláusula pétrea da Constituição, autorizando a interferência do Legislativo no Judiciário, não é só um erro, é ignorância ou má intenção mesmo. É não saber (ou fingir que não se sabe) a função do legislador, expondo o Congresso, a casa de leis brasileira, ao ridículo perante a população.
Um deputado que propõe ou que aprova uma lei que vai contra qualquer cláusula pétrea da Constituição não deveria ser apenas exposto ao ridículo: deveria ter seu mandato cassado por quebra de decoro parlamentar. Um sujeito que propõe uma lei dessas está, como já disse, expondo todo o Congresso ao ridículo, perante o país todo.
Uma lei absurda é um desvio de dinheiro público. O deputado que a propõe, sabendo que a mesma é absurda e inaplicável, apenas para obter dividendos políticos, está desperdiçando recursos públicos para satisfazer objetivos pessoais. E isso é grave o suficiente para o deputado ter seu cargo cassado.
O legislativo brasileiro tem demagogia demais e atitudes de menos. É um reflexo perfeito da sociedade brasileira atual, maniqueísta, dualista, e cada vez mais conflituosa. Como disse sabiamente o Arthur Chrispin (e eu sempre digo aqui), tais coisas só se resolvem com educação. Só que investir em educação é um projeto de longo prazo.
Parte importante desse projeto é separar o joio do trigo na política nacional. Sou contra generalizações burras, como a que diz que todo político é corrupto, mas os maus políticos existem, ignoram suas atribuições, propondo leis absurdas, e, frequentemente, utilizam-se de seus cargos para fins pessoais. Esses (e apenas esses) devem ser punidos.
O Brasil tem um dos melhores sistemas legais do mundo. Nossa Constituição, mesmo sendo de 1988, é uma das cartas magnas mais completas e avançadas entre os países que adotam o sistema legal romano-germânico. Nossa falha está na fiscalização da aplicação das leis. E o respeito às leis é um valor cultural, que só pode ser aprendido, de fato, com investimento massivo em educação. Investimento sincero, como a maior prioridade do país. Enquanto continuarmos ignorando esse problema, como fazemos hoje, seremos apenas um país de bravatas. E já desperdiçamos tempo demais com demagogia.