Política é a discussão saudável de idéias. Na Grécia antiga, as pessoas discutiam política não apenas para marcarem posição, mas, principalmente, para refletirem e adquirirem mais conhecimento. Embora existissem grupos rivais, a discussão era tido como algo sagrado e engrandecedor. No entanto, na Grécia não havia a noção atual de respeito à vida. A guerra era um elemento legítimo, e as diversas batalhas entre as cidades-estado, que enfraqueceram a Grécia como um todo, permitindo a dominação grega por persas e, depois, por romanos, são prova disso.
Hoje, felizmente, o respeito à vida aumentou. Principalmente após o trauma incurável proporcionado à humanidade com as duas Guerras Mundiais, na primeira metade do século XX, e com o risco real de uma catástrofe nuclear, proporcionado pela Guerra Fria. Existem muitos massacres ocorrendo ainda, em diversas partes do mundo. Para muitos, a vida ainda não é um valor absoluto. Só para citarmos os últimos 20 anos, Bósnia, Ruanda, Serra Leoa, Sudão, Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria são lugares em que ocorreram (ou ocorrem, ainda), guerras e matanças desenfreadas.
No entanto, a história do respeito á vida está intimamente relacionada a um elemento importante que mudou a história da humanidade: a urbanização. Com um processo contínuo e inacreditavelmente rápido de urbanização, no século XX, impulsionado, dentre outras coisas, pela modernização das malhas urbanas e pela necessidade demão-de-obra oriunda do modo de produção fordista/taylorista, as cidades nunca foram tão povoadas. E esse povoamento, feito de forma desordenada, traz consigo problemas de toda ordem, especialmente com a associação da desigualdade social (afinal, quase todas as cidades estão segregadas em “bairros ricos” e “bairros pobres”).
Um dos principais problemas é a violência urbana. Que se agrava progressivamente nos cenários em que a desigualdade se torna mais aguda, como no processo de estagnação da economia brasileira durante os anos 80 e 90. Para se ter ideia, estatísticas dão conta de que, nos 9 principais centros urbanos do país, morreram cerca de 1,3 milhão de pessoas assassinadas entre os anos de 1980 e 2000. Mais do que em qualquer um dos conflitos citados no início do texto.
Tal situação de segregação e falta de planejamento gerou alguns “prêmios” incômodos para cidades brasileiras. Especialmente para cidades periféricas, no entorno dos grandes centros. No final da década de 70, Cubatão era considerada a “cidade mais poluída do mundo”. Na década de 80, Belford Roxo era considerada “a cidade mais violenta do mundo”. A vida nesses ambientes, degradados pela segregação, deixa marcas tão impactantes nas pessoas quanto as marcas deixadas por guerras, ao longo da história.
A segregação, nesses ambientes desprezados, está em todas as esferas. A maioria das construções, além de ilegais, são ignoradas pelos governos. Que faz isso conscientemente, evitando investimentos em saneamento, loteamento e na solução de problemas de toda ordem. Isso faz com que:
1) Surjam governos paralelos: traficantes de drogas e milícias não surgem por acaso, mas são frutos do desprezo dos governos com regiões periféricas. E isso traz efeitos nocivos à metrópole como um todo, aumentando a violência a níveis alarmantes, e atraindo muitas pessoas, sem outra perspectiva, para a criminalidade. Esses “lugares ilegais” passam a ter legislação própria, geralmente determinada pelo traficante que comanda a região. E tais posturas reativas só afastam mais os investimentos do Estado da região.
2) As regiões desprezadas pelos governos sofram degradações de toda ordem, principalmente ambientais. E isso devido a problemas de saneamento, a ausência ou deficiência na coleta de lixo e às instalações industriais que poluem o solo, o ar e a água continuamente. Isso faz com que a cidade toda seja poluída. Faz com que os rios, o solo e o ar da cidade sejam poluídos como um todo, afetando negativamente toda a qualidade de vida da população. Além disso, acarreta problemas de gravidade semelhante, como a ocupação de áreas de manancial.
3) Os fluxos de transportes na cidade sejam irremediavelmente comprometidos: a maioria dos empregos está na região central, pelo fato de que, com o “esquecimento” das regiões periféricas, a maioria dos investimentos governamentais acaba controlado, por diversas formas que não merecem explicação mais detalhada, pelo capital atrelado à especulação imobiliária. A maioria das pessoas mora na periferia, ignorada pelo governo, é obrigada a fazer longos trajetos todos os dias, na maior parte das vezes em transportes públicos deficitários, oferecidos de forma insuficiente, com infra-estrutura inadequada (número de vias férreas ou rodoviárias insuficientes, carência de pontos de integração, inexistência de planejamento efetivo de longo prazo visando a descentralização dos serviços na área). Tudo isso compromete a qualidade de vida das pessoas, que, em São Paulo, passam em média 2 horas e 49 minutos no trânsito diariamente. Mais de 10% do dia.
Tais dificuldades impedem não apenas uma vida com melhor qualidade nessas áreas. Impedem a ascensão social. Em uma sociedade competitiva, uma pessoa sem saneamento adequado, convivendo com problemas ambientais e que é obrigado a dispender 10% de seu dia se locomovendo, quando não mais, acaba em grande desvantagem em relação aos afortunados que não sofrem desses problemas. Mais do que isso, a cidade torna-se caótica, cheia de debilidades, longe de qualquer parâmetro de sustentabilidade. E sustentabilidade, aqui, pode ser definido como “fazer as coisas com o objetivo de eternizar ou prolongar a duração dos espaços urbanos”. Ou seja, evitar o colapso, a curto ou a longo prazo, do espaço urbano.
Conclusão
As grandes cidades passam por um momento de crise. Uma crise em várias esferas, ocasionada pela história de desigualdade social transportada para o ambiente urbano. Essa desigualdade, antes dispersa, acabou se concentrando em um ambiente só, aguçando as tensões sociais e produzindo uma situação urbana que beira o colapso. A situação em São Paulo é tão grave que a maioria das pessoas mudaria de cidade, se pudesse.
O problema não é apenas a falta de planejamento urbano. É o privilégio aos interesses do mercado por parte dos governos, com investimentos mais expressivos na região central. Reparem na rede de transportes metropolitanos paulista (Fornecido pelo EACH/USP):
Percebemos, olhando para a imagem, uma estrutura radial. Isso quer dizer que todos os caminhos conduzem ao centro, lugar onde se encontram a maior parte dos serviços urbanos. Essa estrutura é prejudicial ao desenvolvimento urbano, pois, ao mesmo tempo que promove uma superconcentração prejudicial nas regiões centrais, não promove o desenvolvimento nas regiões periféricas, tratando-as apenas como entrepostos para a locomoção em direção às regiões centrais. E isso não se verifica apenas no transporte, mas no número de empregos e nas opções culturais e de lazer, por exemplo.
Tal paradigma deve ser modificado urgentemente. A solução, além da descentralização, é o investimento massivo dos governos em recuperar o déficit histórico de desenvolvimento da periferia e tornar as cidades, além de mais habitáveis, mais justas. E, para isso, o primeiro passo é olhar com prioridade para as regiões das cidades que sempre foram desprezadas.
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Engraçado que desde os anos 90, eu, como um ex-morador da ZL que trabalhava na ZS e estudava na ZO, vejo a necessidade desses grandes centros comerciais espalhados por toda a cidade e não só na ZS. Deveria ter mais Centros Empresariais em Itaquera, Tremembé, Lapa… O único acerto que vi até hoje foi a USP ZL, mas que a mentalidade paulistana logo tratou de “zoar móinto, meu” e ridicularizar.
Hoje eu moro ao lado de um metrô da ZS e demoro “apenas” 50 minutos para o meu trabalho, mas, como vê nas aspas, isso tá longe de ser o ideal. Mas aí caí no problema do aluguel e agora pra sair… é outra novela.
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