Recentemente, Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo, tem sido alvo de críticas por suas opiniões completamente descoladas da realidade. Em junho do ano passado, deu nota dez ao seu pífio governo. Em dezembro, novamente deu nota dez, mas à implosão de um prédio que permaneceu parcialmente de pé. E, recentemente, disse que “o Carnaval de SP melhora a cada ano”, mesmo com o lamentável incidente ocorrido na apuração do dia 21/02.
Kassab, enquanto político, eleva a falta de noção da realidade a níveis ridículos, mas não é um exemplo único. A política brasileira, como um todo, sofre uma crise de representatividade sob a qual já me declinei várias vezes nesse espaço, abordando vários aspectos, como você pode conferir aqui, aqui e aqui, por exemplo.
A crise de representatividade da política brasileira conta com vários aspectos e uma dinâmica muito própria, que será explicada adiante.
1) Os partidos políticos brasileiros são parte de um regime democrático ainda em consolidação. Não vamos nos enganar, achando que somos exemplares e que nosso regime político está consolidado. O ódio político é recorrente no país. E essa polarização política, no entanto, não resiste ao fisiologismo partidário, em que partidos tomam posturas completamente contraditórias em nome de vantagens pontuais. O PSB, por exemplo, apóia a presidente Dilma e apoiará a candidatura de Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo, mas faz parte da base aliada do governo estadual paulista, comandado pelo PSDB. E ainda conta com uma secretaria estadual com atribuições importantes nos próximos anos, a de Turismo, chefiada pelo ex-deputado federal Márcio França. Existem exemplos assimem inúmeros partidos.
2) Esse ódio político, acompanhado do fisiologismo partidário, faz com que os partidos tenham uma dificuldade quase sobrenatural de assumir seus erros, sob a prerrogativa de “não dar munição para seus adversários”. Isso é um sintoma grave da completa imaturidade de nosso sistema democrático. Em sistemas democráticos consolidados, em que existe uma agenda suprapartidária, que será cumprida independente que quem estiver no poder, isso não é necessário. Assumir erros é uma postura normal em regimes democráticos.
3) Essa completa ausência de autocrítica descola os políticos da realidade. Kassab foi citado no início do texto, mas isso ocorre com qualquer político de qualquer partido. Eles desenvolvem algumas estratégias de defesa para evitarem a autocrítica. São elas:
a) Sempre partidarizar a discussão: críticas são sempre infundadas, e fruto de manipulação por adversários políticos. Tais adversários políticos frequentemente usam a imprensa, que “é ligada a certos grupos políticos”, para “plantar inverdades”. Aliás, o uso de eufemismos também é recorrente, afinal a discussão sempre precisa ser em “alto nível” (e a hipocrisia também).
b) Usar eufemismos faz parte de uma estratégia também: a de tergiversar. Políticos dão voltas em torno do assunto sem abordá-lo, de preferência com dados aleatórios, nesse estilo (o diálogo é fictício, mas poderia ocorrer na realidade)
Repórter: “Prefeito, São Paulo tem o pior transporte público do país de acordo com os usuários”
Prefeito: “Isso é uma inverdade. Recapeamos 1200 Km de vias esse ano, e diminuímos a idade média da frota de 12,2 para 11,7 anos”
Repórter: “Mas o cidadão continua achando o transporte ruim e caro”
Prefeito: “Considero que nosso transporte é nota dez, visto que melhoramos o serviço e ainda diminuímos o valor gasto com subsídios em 43%”
c) Investir em publicidade: governos de qualidade não necessitam de investimento pesado em publicidade. Originalmente, a publicidade de governo serviria para alertar o cidadão para e existência de serviços públicos. Imaginem, por exemplo, se o governo construisse e inaugurasse um hospital ou uma escola sem fazer nenhuma publicidade do mesmo. Seria um equipamento público subutilizado, um gasto desnecessário de dinheiro público. Por isso a publicidade é necessária.
No entanto, a publicidade, especialmente em governos ruins, é uma arma política, que muitas vezes manipula dados. Diversos estudos concluem que quanto mais mal avaliado um governo, maior o gasto com propaganda nos dois anos anteriores à eleição. Existem casos extremos, como o de José Serra no governo paulista:com a clara intenção de se candidatar a presidente, o ex-governador gastou, de 2007 a 2010, 222 milhões de reais com contratos de publicidade (fonte). Mais, por exemplo, que os R$ 157 milhões gastos pelo governo no período com Ciência e Tecnologia (exceto, obviamente, o orçamento destinado às universidades públicas paulistas e à Fapesp, que contam com dotação própria).
Tal lógica é perversa, pois faz o cidadão ter uma impressão irreal acerca de um governo. E essa impressão irreal será refletida mais adiante, na próxima eleição.
Conclusão
Com tudo o que foi explanado, há um claro descolamento entre a falta de autocrítica dos políticos e a realidade. Esse descolamento produz o principal efeito negativo que a falta de autocrítica pode gerar: os políticos perdem completamente a sua credibilidade junto à população. E a falta de autocrítica, aliada a outros problemas que denotam uma dificuldade impressionante dos políticos brasileiros em falar a verdade (como a corrupção, por exemplo), faz com que o cidadão tenha uma impressão negativa geral da política.
Infelizmente, a maior parte dos cidadãos ainda não consegue separar a política, como instrumento de mudança da sociedade, dos políticos, como figuras que, muitas vezes, mais prejudicam do que ajudam. A política é um instrumento legítimo de transformação social. Mas o cidadão médio prefere o afastamento da política, por não suportar o quantidade de ilegalidades que os políticos proporcionam.
O político, na verdade, é reflexo da sociedade que o elegeu. Não fiscalizar os políticos, deixando-os livres para atuar sem nenhuma autocrítica, sem respeito aos bens públicos e frequentemente obtendo favorecimentos ilícitos, só reflete o que a boa parte da sociedade quer para ela mesma: viver sem a necessidade de autocrítica,, sem a necessidade de se repensar, sem nenhuma fiscalização e atenta apenas aos interesses e favorecimentos pessoais, muitas vezes à margem da lei.
No final, é essa lógica que precisa ser mudada. O Brasil só vai romper o ciclo político atual quando a população, e não apenas os políticos, romper com seus vícios e com sua ótica de valorizar o “jeitinho”.
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