A maioria das pessoas ignora o fato de que a Zâmbia conquistou, ontem, a Copa Africana de Nações, sobre a Costa do Marfim. E mesmo as pessoas que viram alguma notícia a respeito do assunto não devem estar a par da importância do feito da seleção de Zâmbia, na noite de ontem, em Libreville.
Vamos contar um pouco da história do futebol africano aqui. Em menos de 20 anos (décadas de 70 e 80), a África passou, de um continente absolutamente inocente no futebol, a um continente que assombrava grandes seleções e causava espanto no mundo do futebol.
Existem duas grandes “escolas” de futebol na África. Uma era a da África árabe, que começou a evoluir antes, tendo basicamente quatro grandes expoentes: Egito, Argélia, Tunísia e Marrocos. Seleções como Sudão e Líbia tinham papel secundário nesse contexto. Essas seleções conseguiram os primeiros grandes feitos do continente no futebol: a Tunísia, na Copa de 1978, conquistou a primeira vitória africana em uma Copa do Mundo (3 a 1 sobre o México), e a Argélia, em 1982, venceu a seleção da Alemanha Ocidental, que viria a ser vice-campeã do mundo, por 2 a 1, empatando em pontos com Alemanha e Áustria e não conquistando a vaga na segunda fase da Copa do Mundo apenas no saldo de gols.

Seleção da Argélia que bateu a Alemanha Ocidental na Copa de 1982
Nas últimas duas décadas, no entanto, as seleções da África branca não conseguiram realizar boas participações em torneios mundiais, apesar de continuarem fortes na disputa local. O Egito continua sendo o maior vencedor de Copa Africana de Nações, com sete conquistas, e, antes da decisão de ontem, a África branca havia vencido os últimos 4 torneios continentais (com a Tunísia, em 2004, e com o Egito, em 2006, 2008 e 2010). Os únicos feitos dignos de nota das seleções do norte africano nas últimas duas décadas foram uma vitória do Egito sobre a seleção italiana, na Copa das Confederações de 2009, e a razoável participação de Marrocos na Copa de 1998, em que a seleção só perdeu a vaga na segunda fase após uma surpreendente derrota da seleção brasileira para a Noruega.
A segunda escola africana de futebol é a escola da África Negra. E essa será melhor abordada no texto.
A África subsaariana virou símbolo de inocência no futebol após a patética participação da seleção do Zaire (atual República Democrática do Congo) na Copa de 1974. A seleção encerrou a Copa de 1974 com três derrotas, incluindo um 9 a 0 contra a Iugoslávia, e, no jogo contra a seleção brasileira (sim, eles jogaram contra nós, e perderam de 3 a 0), ainda proporcionaram um dos momentos mais ridículos já vistos na história do futebol:
No entanto, a evolução do futebol na África subsaariana foi rápida e notável. O primeiro grande feito de uma seleção da África negra foi proporcionado por Camarões, em 1982. A seleção terminou a Copa do Mundo invicta, com três empates, e foi eliminada pela Itália, que seria campeã, apenas no número de gols marcados. Tudo isso em um grupo que ainda contava com a Polônia, que ficou em 3º lugar na Copa, e com o Peru, que até a década de 80 era forte no cenário sul-americano.
No entanto, a seleção camaronesa de 1982 não foi o principal expoente do estilo de jogo praticado na África subsaariana. O estilo de jogo alegre e arrojado da África negra, repleto de jogadores habilidosos e de jogadas bem construídas, mas sem tanta disciplina tática, assombrou o mundo seis anos depois, no torneio olímpico de futebol de Seul. E a responsável por isso foi a seleção de Zâmbia.
Após estrear com um empate em 2 a 2 com o Iraque, Zâmbia iria jogar com a Itália, no dia 19 de setembro de 1988. O que aconteceu no jogo assombrou a todos no mundo do futebol:
Depois, nas quartas de final, Zâmbia foi eliminada pela Alemanha Ocidental. Mas o jogo de velocidade envolvente, de toques rápidos, com alegria e irresponsabilidade acabou encantando o mundo do futebol. E inspirou outras seleções da região que fizeram história, como a de Camarões na Copa de 1990 e a da Nigéria nas Copas de 1994 e 1998.
A seleção africana a fazer história na Copa de 1994 poderia ser a própria seleção da Zâmbia. Mas 18 deles sucumbiram na maior tragédia aérea da história do futebol africano, em 28 de abril de 1993. A seleção, que disputaria seu primeiro jogo na fase final das eliminatórias africanas, contra Senegal, partiu de Lusaka rumo à Dacar, passando por Libreville, no Gabão, para reabastecer. Logo após o reabastecimento, o avião que conduzia o time caiu no mar, próximo à costa da cidade, e os dezoito jogadores, além da comissão técnica e da tripulação, morreram. A tragédia ficou marcada como um dos grandes desastres aéreos da história do futebol.
O único sobrevivente foi o astro do time, Kalusha Bwalya, que embarcaria para Dacar direto da Holanda, onde atuava pelo PSV Eindhoven. O jogo, que seria em 02 de maio, foi realizado apenas em 07 de agosto. Com uma seleção completamente nova. Que foi eliminada da Copa de 1994 apenas na última rodada, com uma derrota de 1 a 0 para Marrocos em Casablanca (o empate classificaria a seleção de Zâmbia para disputar a Copa, nos EUA).

Seleção de Zâmbia em 1993
Essa mesma seleção, destroçada, ainda foi vice-campeã da Copa Africana de Nações em 1994, perdendo apenas para a poderosa seleção nigeriana, que alguns meses mais tarde teria ótimo desempenho na Copa do Mundo. Depois disso o futebol zambiano passou por um hiato imenso, e foi reconstruído, em vários capítulos, pelo único sujeito que sobreviveu ao desastre de 1993: Kalusha Bwalya.
Bwalya jogou profissionalmente até o ano de 2000, encerrando sua carreira no futebol mexicano. Em 2003, ciente de seu papel no futebol de Zâmbia, assumiu o cargo de técnico da equipe. Como técnico, ainda atuou em mais uma partida como jogador, diante da Libéria, em 2004, completando 100 jogos e 50 gols pelos Chipolopolo. E levou a seleção zambiana à Copa Africana de Nações de 2006, após ausência na edição de 2004. Desde então Zâmbia participou de todas as edições da CAN.
Em 2006, assumiu o cargo de vice-presidente da Federação zambiana de futebol. E em 2008 assumiu a presidência, cargo que ocupa até hoje. Uma de suas primeiras medidas foi contratar como técnico da seleção o francês Hervé Renard, auxiliar técnico da seleção de Gana.
Desde então Zâmbia tem evoluído bastante. Nas eliminatórias da Copa de 2010, sucumbiu em um grupo protagonizado por Argélia e Egito. Na Copa Africana de Nações de 2010, fez boa campanha, perdendo nos pênaltis para a Nigéria, nas quartas de final. E se classificou com tranquilidade para a Copa Africana de Nações, que seria disputada no Gabão e na Guiné Equatorial.
O Gabão era o local em que, 19 anos atrás, a seleção de Zâmbia viu uma geração inteira de jogadores sucumbir à tragédia. Mas o sorteio e o desempenho da seleção de Zâmbia na competição fizeram com a os Chipolopolo fossem a única das 4 semifinalistas da Copa Africana de Nações a atuar na Guiné Equatorial em todas as partidas. Se o time vencesse a favorita seleção de Gana na semifinal, poderiam enfim voltar ao Gabão, para tentar reescrever a história, no local da maior tragédia do esporte do país.
E foi o que aconteceu. Com muita garra, Zâmbia bateu Gana, por 1 a 0, contando com um pênalti perdido por Asamoah Gyan. E, além de garantir vaga na final, a seleção ainda comemorou com um Haka:
A partir daí, vocês já conhecem a história. Já foi contada de forma brilhante por sujeitos como o Leonardo Bertozzi. Assim que chegaram à Libreville, para disputar a final contra a favoritíssima seleção da Costa do Marfim, os jogadores de Zâmbia e a comissão técnica, acompanhados de Kalusha Bwalya, fizeram uma homenagem aos heróis que se foram em 1993.
A final era um confronto de Davi contra Golias. Como tantos que vemos no futebol. Mas a mágica do futebol é a de que sempre pode haver a superação, sempre pode vencer o que mostra mais vontade e caráter. Em um jogo exemplar, repleto de demonstrações de amor ao futebol, Zâmbia segurou a Costa do Marfim e venceu nos pênaltis. Coisas como o pênalti perdido por Drogba são irrelevantes perto das grandes demonstrações de caráter vistas durante o jogo.
Pelo próprio Drogba, que foi abraçar o lateral Musonda, de Zâmbia, enquanto ele saia machucado. De Hervé Renard, que carregou Musonda, depois do jogo, para comemorar com o restante dos jogadores. De todos os jogadores, sem exceção, que se entregaram de maneira limpa ao jogo, absolutamente conscientes de que, independente do resultado, estavam fazendo história.
Abaixo, a decisão por pênaltis que consagrou Zâmbia a nova campeã africana:
A cidade que foi palco da maior tristeza do esporte de Zâmbia, há 19 anos, também foi palco da maior alegria, ontem. Uma das maiores histórias de redenção já vistas no futebol. Uma história de homens de caráter, de vidas e de um continente todo, que prestou a maior homenagem possível aos jogadores que representavam Zâmbia em 1993. Uma história de redenção na vida de Kalusha Bwalya, que viu os homens de seu país realizarem o seu sonho pessoal, no mesmo lugar em que ele havia sofrido sua maior perda.
A comemoração de Zâmbia foi merecida, épica, histórica.
O futebol é muito mais do que 22 homens correndo atrás de uma bola. Forja o caráter das pessoas, ensina valores e conta belas histórias. O título de Zâmbia, em Libreville, é mais uma dessas histórias. Que mostram não apenas que um time mais fraco pode vencer um time mais forte, mas que o espírito de luta e a vontade podem vencer o dinheiro, os prognósticos e todo o restante.
O esporte pode destruir os homens. Isso nós vemos acontecer todos os dias. Nos desiludimos com demonstrações de racismo, demonstrações de que o dinheiro está acima de tudo, pessoas que se vendem e vendem partidas, dirigentes corruptos. Disso já estamos cansados.
Mas o futebol também transforma homens em gigantes. E, nesse domingo, os homens de Zâmbia foram os maiores do mundo. E tocaram o céu com as mãos.
Parabéns, Zâmbia!
otimo texto…retrata bem o q penso, se n se importar vou propagar…faltou dizer pros leigos a diferença tecnica entre zambia e costa do marfim..zambia tem 2 jogadores na europa enquanto a costa tem inumeros.e tb q zambia triturou os 3 favoritos ao titulo.gana, senegal e costa do marfim
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Opa, pode propagar sim. E essa questão da diferença técnica entre as seleções é bem verdade também.
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Muito bom o texto, parabéns.
Essa reviravolta é o tipo de coisa que parece ser arquiteta pelo destino.
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Como fui ler esse texto apenas hoje?
Quase escorreu uma lágrima, Léo.
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História sensacional essa do time de Zâmbia.
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